Trecho de
Estar
sendo. Ter sido
de
Hilda Hilst
Pensar
que isso sou eu. e o morto que há em mim. o roto. o decomposto.
alguém lá dentro me diz que estou sendo injusto. que há
mortos muito mais putrefatos, a cara expelindo ranço e desgosto,
que aquele, o Oscar, o Fingall, o O'Flahertie Wills, aquele, o Wilde,
quando morreu, tudo estourou dentro dele, que o estômago explode,
é o que dizem quando se está na pira, na Índia talvez,
e ouve-se uma explosão a muitos passos dali. eu e minha "intensa
fisiose", como dizem os médicos, o que você come, hen, um
saco de ventos? engoliste, Vittorio, o fole de pele de boi onde Éolo
guardava os ventos? palavras é o que guardo no meu fole. cabeludas,
glabras, macias umas, outras enfezadas, duras, arames eriçados
iguaizinhos aos pêlos do púbis de Licina-Juno, sim porque
a essa altura já lhe vi inteira, uma pomba espetada entre as coxas
gordas. foles, púbis, eu ofegante soprando na cabeluda. em seguidinha
cansei. pedi que se masturbasse à minha frente e ao mesmo tempo
fingisse que lia. que livro devo ter nas mãos? o código
penal, naturalmente. que eu gostava assim, ver a mulher como se ela estivesse
mesmo a sós, largadona distraída...
ela:
nunca fico largada
ah,
é? nunca mesmo?
nem
fico distraída
nem
quando caga?
ofendeu-se
como se eu a tivesse espancado. fui vestindo a cueca, as calças,
a camisa e ia me mandando quando Licina
por
favor, não vá
eu
inteiro vestido reclamei, ah, não, vou sim, tenho horror de ficar
me despindo a toda hora. atirou-se aos meus pés. fiquei pasmo.
há muitos anos mulher nenhuma me fazia isso. só duas o fizeram,
eu aos trinta. não era pela minha pica, não, era aquele
saco de dinheiro que eu já costumava dar. mas Licina-Juno ainda
não tinha visto o meu dinheiro. como qualquer rábula, deve
lhe ter sentido o cheiro. e aproveitando o perfeito dela já estar
no chão, só desabotoei a braguilha e enfiei-lhe o lambaio
na boca. estrebuchou um pouco mas ordenou-se em seguida, ritmada e nobre.
que grosseria! tal pai, tal filho. meu deus, vou escrever a Dom Deo, meu
amigo bispo. no colégio era só Deozinho, magrela, espinhudo,
triste. o cajado de Deozinho era mínimo, uma bimbinha de nada.
no banho sempre depois de ver o meu lambaio ele chorava e dava uns taponas
na bimbinha dele: fedelho, tu nào serve pra nada. chegou a amortalhar
a bimba num trapo roxo, olhava lúgubre para o grão de milho
e dizia solene: non habeo usum. era inteligentíssimo. e
que memória! sabia Vieira de cor. enquanto ele dizia non habeo
usum, eu que nada sabia (e só para atormentá-lo) colocava
um espelhinho frente ao meu lambaio e radioso declamava: speculum et
lambaius majestatis. ele ria-se a valer. um dia um novato quis lhe
comer o macio, e Deozinho disse-lhe solene: amigo, meu rosquete é
minha cidade, e de início: non ingredietur urbem hanc, nec mittet
in eam sagittam et nec circumdabit eam munitio, e tudo isso era Vieira
e queria dizer que ele não entraria na cidade, que não lançaria
dentro dela as suas setas e que não a poria a cerco. o Dinhas,
o novato massudo que lhe queria o zenóbio, ficou ali aparvalhado,
a mandíbula caída, a linguona em ponta no palato e Deozinho
ria, ria, e nós todos também. com o tempo Deozinho foi ficando
Dom Deo. era lírico, suave com todos e severo consigo mesmo. hoje
é bispo. nos confins do país. lá em Itiquira. dizem
que o Vaticano lhe tem horror. Dom Deo só cria problemas. penso
que está lá para morrer. agora me veio o poema que ele jovenzinho
a todo instante declamava, os olhos cheios d'água: "Morreu. Deitada
num caixão estreito, pálida e loira muito loira e fria.
O seu lábio tristíssimo sorria, como num sonho virginal
desfeito. Tinha a cor da rainha das baladas, e das monjas antigas maceradas,
no pequenino esquife onde dormia. Levou-a a morte na sua garra adunca,
e eu nunca mais pude esquecê-la, nunca. Pálida e loira muito
loira e fria". um dia eu disse esse poema ao Dantas e ele achou que era
Cruz e Souza. não sei. todos nós o sabíamos de cor.
um dia perguntei a Dom Deo, o poema te lembra alguém? sim, Vittorio,
uma irmãzinha, não irmãzinha de sangue, uma irmãzinha
da alma que se foi. era teu amor? era eu mesmo, Vittorio, se o lá
de cima me tivesse feito fêmea.
Carta
de Dom Deo
Só
vejo o dorso de Deus, Vittorio. tem listras. nunca lhe vejo o rosto. certa
vez tentou acariciar-me, e fez-me uma ferida. aqui em Itiquira tudo é
fome. o lugar foi esquecido. eu e meus pobres também. há
um leprosário a 5Km daqui e plantamos o dia inteiro numa terra
que não é nossa. ajudamos os doentes. há uma pequena
capela. e gentes e muitos cães, todos magros e tristes. eu canto
às vezes. a canção do sol. diz o estribilho que "o
sol ilumina aquele que capina". quando há fome a poesia é
também pobre. por que me escreves? dizes que precisas da minha
benção. minha alma é mais magra do que a tua, Vittorio.
Deus ama a indiferença e a aspereza. descobri há pouco.
também é possível domar Deus dentro de nós.
blasfemando somos um pouco santos, sabias? excitamos o OUTRO para que
não durma tanto. tu és melhor do que eu. acaricio tanto
a meu Deus, tanta volúpia que hoje tenho as mãos feridas
e muitas vezes sangro. temos a mesma idade, Vittorio, eu e tu, eu e Deus.
é um velho também, Ele. mas forte como um tigre-menino.
tem horror que se lhe saiba o nome. certa noite, intuí, então
chamei-O. lanhou-me todo o ventre. as coxas. a semente. uma voz delicada
e sonolenta vinda das folhas altas de umas árvores negras se expressou
assim: Dom Deo, se repetires o Meu Nome ainda que às escondidas,
dentro da pedra, ou dentro da tua própria barriga, hás de
perder a vida. e entendi que não se referia a esta vida, esta aqui
da Terra, não Vittorio, ia perder para sempre a mais remota possibilidade
de voltar a ser. temo-O agora e contando-te, tremo. não contes
a ninguém o que te escrevo. se souberem disso, as gentes, hão
de ficar tão desamparadas como tua amiga Hillé, aquela de
quem tanto gostavas. soube por uma sua vizinha, uma destrambelhada, Luzia,
que Hillé deixou-se morrer embaixo de uma escada. e que sua última
amiga foi uma porca. Hillé chamava-a apenas com este nome: senhora
P. disse-me também Luzia que a senhora P morreu com Hillé,
à mesma hora, e no mesmo dia. caríssimo: lembra-te se puderes,
de nós daqui. roupas e comidas são bem-vindas. e cuidado!
não tentes adivinhar o rosto Daquele Dorso. guarda-te de geometrias
e luzes. a mais ínfima busca ao redor dessas duas... cuidado! guarda-te.
(...)
(Estar sendo.
Ter sido - SP: Nankin, 1997.)