Trecho
de
A
Morte do Patriarca
1969
Hilda
Hilst
(...)
Papa (Perturbado): Mas é preciso tentar alguma
coisa. (Ruído de fora mais intenso)
Demônio: Talvez se o Santo Padre se desfizesse
dessa roupa... um pouco assim... (estendendo o peito para frente
dando a entender que são roupas de muita pompa) e ficasse com outra
mais simplizinha, quem sabe... se sentiriam mais próximos de Vossa Santidade.
Cardeal: Um rei é um rei.
Papa (Com energia. Para o Demônio): Isso é simples.
Posso tirá-la imediatamente. (Tira a grande túnica e fica apenas
com outra singelíssima. Conserva a coroa. Entrega a túnica ao Demônio)
Demônio: Muito bem, muito bem. Vamos mostrá-la.
E a coroa agora. Tirai-a, Santo Padre.
Cardeal (Triste): É tão bela, tão brilhante.
Papa (Impaciente, tirando a coroa. Para o Cardeal):
Oh, por favor, que importa? (Entrega a coroa ao Demônio)
Demônio (entregando a coroa e a túnica para o Cardeal):
Mostre. Talvez dê algum resultado.
Cardeal (Muito assustado): Eu?
Papa (Para o Cardeal. Apressado): vai, vai.
Cardeal (Hesitante, vai caminhando até a janela, interrompe
a caminhada): Não poderíamos mostrá-las através da vidraças? (O
Papa faz um gesto de desespero. O Cardeal resolve obedecer, abre lentamente
a janela. Ruídos intensificam-se. O cardeal hesita ainda mas vai até
a sacada, mostra ao povo a túnica e a coroa mas os ruídos ficam cada
vez mais agressivos. O cardeal não sabe bem o que fazer, vira-se discretamente
para o interior da sala e, como os ruídos parecem absurdos de tanta
intensidade, o Demônio resolve intervir)
Demônio (Agitado, para o Cardeal): Volta, volta.
(O Cardeal volta apressadamente e fecha com rapidez as janelas. Os
ruídos continuam mais abafados. Um tempo. Depois mais brandos. Cessam.
Na sala a atmosfera é tensa. Um certo tempo. Para o Papa): O Beatíssimo
Padre teria objeção... se eu sugerisse... de mostrarmos na sacada...
(aproxima-se da estátua de Marx) esta cara aqui?
Monsenhor: Não é simplesmente uma cara. (O Papa
faz um gesto para que o Monsenhor não insista)
Demônio: ...e diríamos... aliás (sorrindo)
o Monsenhor é quem diria... é mais jovem (grave), as coisas que
se deve falar.
Cardeal (Desconfiado): O Monsenhor vai dizer coisas?
Demônio: Algumas coisas (referindo-se a Marx)
que este homem falou.
Papa (Aborrecido. Para o Demônio): Mas o senhor
não percebe? Eles não querem mais esse aí... nem outro qualquer.
Demônio: Sei, Beatíssimo Padre, mas de qualquer
modo é preciso tentar. Na verdade, ele tem certos trechos muito convincentes.
E se o colocaram aqui, nesta sala, talvez tenham, digamos, insólitas
mas... fecundas intenções.
Papa (Com desconfiança): O senhor citaria trechos
da juventude ou da maturidade?
Demônio: Talvez os trechos da maturidade sejam
mais prudentes. (Olhando o pássaro. Sorrindo) São trechos...
sem asas. Sem nenhuma asa.
Cardeal: E não fica assim meio desorganizado...
começando pelo fim?
Papa (Aborrecidíssimo. Para o Cardeal): Oh, por
favor. (Pausa. Para o Demônio) Acho inútil.
Demônio: Nada é inútil nesta hora. Começamos com
este (refere-se a Marx) e continuamos com os outros.
Papa (Apontando Jesus): Por que não começar com
Ele? (Pausa. O Demônio não responde, mas olha fixamente o Papa)
Cardeal: Falou palavras duras.
Monsenhor: Mostre-lhes a cruz.
Demônio: Poderão pensar que desejamos cruxificá-los.
(Para o Papa) Deixai-me agir. Estou tão interessado quanto vós.
Se um de nós morrer, o outro não terá escolha... porque não haverá mais
com quem lutar. (Alisa o rabo) Preservando-vos, preservo a mim
mesmo. (Para o Monsenhor) Vamos, vamos até a janela. E repete
as coisas eu que te digo.
Monsenhor: Está bem. Mas não fale muito depressa.
(...)