Teologia
Natural
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Extraído de "Ficções", de Hilda Hilst -
A
cara do futuro ele não via. A vida, arremedo de nada. Então
ficou pensando em ocos de cara, cegueira, mão corroida e pés,
tudo seria comido pelo sal, brancura esticada da maldita, salgadura danada,
infernosa salina, pensou óculos luvas galochas, ficou pensando
vender o que, Tiô inteiro afundado numa cintilância, carne
de sol era ele, seco salgado espichado, e a cara-carne do futuro onde
é que estava? Sonhava-se adoçado, corpo de melaço,
melhorança se conseguisse comprar os apetrechos, vende uma coisa,
Tiô. Que coisa? Na cidade tem gente que compra até bosta
embrulhada, se levasse concha, ostra, ah mas o pé não agüentava
o dia inteiro na salina e ainda de noite à beira d'água
salgada, no crespo da pedra, nas facas onde moravam as ostras. Entrou
em casa. Secura, vaziez, num canto ela espiava e roia uns duros no molhado
da boca, não era uma rata não, era tudo o que Tiô
possuia, espiando agora os singulares atos do filho, Tiô encharcando
uns trapos, enchendo as mãos de cinza, se eu te esfrego direito
tu branqueia um pouco e fica linda, te vendo lá, e um dia te compro
de novo, macieza na língua foi falando espaçado, sem ganchos,
te vendo, agora as costas, vira, agora limpa tu mesma a barriga, eu me
viro e tu esfrega os teus meios, enquanto limpas teu fundo pego um punhado
de amoras, agora chega, espalhamos com cuidado essa massa vermelha na
tua cara, na bochecha, no beiço, te estica mais pra esconder a
corcova, óculos luvas galochas é tudo o que eu preciso,
se compram tudo devem comprar a ti lá na cidade, depois te busco,
e espanadas, cuidados, sopros no franzido da cara, nos cabelos, volteando
a velha, examinando-a como faria exímio conhecedor de mães,
sonhado comprador, Tiô amarrou às costas numas cordas velhas,
tudo o que possuía, muda, pequena, delicada, um tico de mãe,
e sorria muito enquanto caminhava.
("Pequenos Discursos.
E um Grande"/ in Ficções - SP: Quíron,
1977.)