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O bidê das velhas intuições

por J. Toledo

 

"Liberdade é o direito de dizer 'merda!'
sempre que sorrimos dizendo não ser nada"
(lavra pessoal)

 

Impressionante! Só após haver escrito o livro Os deuses têm sede é que Anatole France se tornou alcoólatra inveterado e descobriu o óbvio, afirmando não ser possível tornar-se feliz senão às custas de alguma ignorância... Mas, o que queria ele? Chegar ao Olimpo, desvendar tudo e ainda por cima ganhar o Nobel? Enfim, a verdade de cada um mostra ângulos anamórficos diversos, assim, como o olho dos mosquitos que, procurando imitar a visão divina, espia para todos os lados, tornando a Realidade uma só história, mas com muitos modos de se narrá-la, ainda que certas virtudes da paralaxe existencial invariavelmente se confundam com fantasias barrocas.

Pensando nisso, há pouco fiquei penalizado com um amigo passando sérios problemas de impotência sexual. Poderia ser tudo simples, porém, após tentar encorajá-lo - para completar a desgraça - distraído, em seu aniversário e achando que gostaria de ler Hemingway, dei-lhe de presente O Sol Também se Levanta. Resultado: brigou comigo e se tornou hermafrodita.

Mais recentemente, o falastrão Nick Nairn, chefe de cozinha escocês e dono do Nairn's, restaurante mais badalado de Glasgow, estando aqui, me visitou e contou tantas vantagens sobre a localidade em que vivia que não agüentei: para desforrar, tive de levá-lo passear na lagoa do Taquaral, onde disse existir um monstro muito mais impressionante que o de Loch Ness. Como duvidasse do que eu dizia, propus-me provar toda a verdade. Assim, no dia seguinte, sorrateiro, retornei só e mandei que serviçais armassem uma gigantesca tela de cinema nas margens e outras parafernálias afins. Depois foi fácil: peguei o jactante scotch-chef, aluguei um pedalinho e, enfurecidos, fomos noite adentro em busca da espantosa criatura prometida. Ao chegarmos no centro da lagoa, a lua se toldou por nuvens cenográficas que mandei pendurar. Perfeito! A seguir, apertei um botão sabiamente oculto sob o mamilo esquerdo e, como por milagre, as luzes de um projetor se acenderam, passando um trecho vulgar do filme Os Intocáveis... Bestificado e vermelho como um camarão das ilhas Orkney, o escocês parou de pedalar, engoliu em seco e disse: -But, Toolido, que, diabos, significa isso? -Isso - disse-lhe categórico - é o verdadeiro monstro de Eliot Ness!

Revoltado e vexado pela vitória tolediana sobre o racionalismo celta, o homenzinho se jogou às águas, suicidando-se no exato momento em que era exibida a cena da apreensão de um poderoso carregamento de uísque pelo monstruoso e vandálico agente. E, vendo-a com desdém, completamente revigorado, pensei nas abstinentes orgias da Lei Seca, girei as pedras de gelo no copo e os pedais do maldito pedalinho que - como um cisne de Tuonela - me levou de volta à margem, onde, aliás, desembarquei com as mesmas pompas de Ulisses ao retornar a Ítaca. Maravilha!

Contudo e apesar das vantagens de viver uma vida prestidigitatória como levo, sempre ficam certas questões noturno-dialéticas a serem resolvidas. Pois sabe-se: em assuntos tão sérios, não basta só acender o charuto e em suas volutas de fumaça achar as respostas como os ursos encontram mel. Não! Antes, é preciso fazer como tenho feito há anos, isto é, telefonar para Hilda Hilst, cumprimentá-la por seu eterno Bloomsday, indagar pela qualidade etária dos vinhos do Porto, saber da voracidade papilar de Lori Lamby, compenetrar-se, adquirir coragem, franzir totalmente o cenho e perguntar à gentil escritora o que, afinal, a Lori Lamby.

Bom dia.

(Crônica publicada no Correio Popular, de Campinas-SP, em 20-05-1999.)

 

     
 
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