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Baralho a quatro

por J. Toledo

"Como sugere o próprio nome,
magnatas dão excelentes sorvetes"
(lavra pessoal)

Incrível! Quando Freud e Jung chegaram a Nova Yorke dizendo ter trazido a "peste" para a América, ninguém parece tê-los levado a sério. Ingênuos e desinformados sobre a beligerância mental européia, os americanos viam arte moderna através do Armory Show e, sob a orgia insurrecional de Duchamp, decolaram para o desconhecido. Ainda assim, acabaram por vender pesticida ao mundo que, imaginando o onirismo depurativo yankee confinado somente a Las Vegas, subestimou-o, relegando-o ao divã universal pelo pecaminoso entretenimento de colecionar fortunas. Pura fantasia.

Digo isso tudo, simplesmente porque Hilda Hilst insiste comigo em jogar pôquer. Explico-lhe, então, que não é bem assim e, se até a mulher de Putifar empregou métodos infernais de sedução para se livrar do jugo, por que eu, agora, iria incentivá-la ao jogo? Jamais! Não me parece correto fazer isso com a amiga de tantos anos só por haver atirado um prato de batatas incandescentes no colo de um solene mercador que a impedia de seguir para Amsterdã. Apesar de lhe torrar os testículos, a escritora acabou ficando ali, comigo, consolando-se com toneladas de manhattan que, como se sabe, é um nome tipicamente holandês. Porém, teria sido divino, vê-la de chapéu bicudo e tamancões de madeira sobre a ponte de Arnhem, em busca de um Van Gogh visionário a condenar a própria orelha a naturezas-mortas.

Não! Apesar da nostalgia a que sou entregue em fins de milênio, recuso-me levá-la pelo caminho daquele vício trevoso. Então, paciente, sussurro-lhe a tragédia de Paganini que, após haver-se tornado milionário com seu Moto Perpétuo, enveredou-se pelos cassinos e, em segundos, acabou por perder tudo nas cartas, restando-lhe somente as ceroulas e o Stradivarius, com o qual o virtuose dispôs-se a viver, explodindo-lhe as cordas até que restasse uma só, de onde arrancava desmaios das platéias extasiadas.

Mas argumentos não bastam. Hilda quer baralho assim como índio quer apito. Então, diante da obstinação, pergunto por que insiste tanto em jogar? "-Para ganhar uns trocados e pagar o IPTU", me diz ela. "Além do mais, acho lindo o mesmérico olhar dos jogadores." Se é tão importante assim - pondero - convocaremos dois abastados de minha agenda. Sim, o coronel Drake e Émile Suchard, o rei do chocolate (e da oftalmia). Pela vocação a Midas, sua companhia trará orgasmos à gentil autora de Lori Lamby, transformando o ilusório exercício lúdico-prestidigitatório num acontecimento digno de Giochiô-ben-Pandira que, aliás, não me lembro bem quem foi.

Assim, após adverti-la dos perigos existentes no ato e lembrá-la de aprender violino em nove lições, descerei, apanharei o estojo onde estão as cartas e, com a prudência dos homens sábios e o pudor dos santos tementes, o abrirei como se fosse a boceta de Pandora. E ali, apanharei o baralho, vestirei roupinhas de crupiê, estenderei o pano verde sobre a mesa preta e então, quando todos eletrizados e Hilda prestes a lançar seu olhar libidinoso sobre a parceria inerme, estalarei os dedos com tal alarido que, de forma absolutamente mágica, aquele sinistro jogo de pôquer se transformará num inocente jogo de contas de vidro, onde as regras se reverterão, o vidro se transmudará em cristal, o cristal em copo, o ás em rei e o rei em valete, explicando em coro à amada dama, tratar-se apenas de uma ilusão passageira com a qual, é claro, nem o Hermann Hesse iria concordar.

Bom dia.

 

(Crônica publicada no Correio Popular de Campinas-SP, em 01-07-1999.)

     
 
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