Trecho
de
O
verdugo
(Peça
em dois atos)
1969
Hilda
Hilst
(...)
Filho:
Como ele é bem de perto, pai? (Pausa) Fala.
Verdugo:
O homem tem um olhar... um olhar... honesto.
Mulher:
Honesto, ha!
Verdugo:
Limpo, limpo. Limpo por dentro.
Mulher (Com
desprezo): Ah, isso!
Filha:
Por dentro ninguém sabe como ele é. Ninguém sabe como ninguém é por
dentro.
Filho:
Eu sei como você é por dentro.
Filha: Ah,
sabe? Fala, então.
Filho:
Por dentro você não tem nada. É oca.
Verdugo (Manso):
Chega.
Filha (Para
o irmão): Mas vou deixar de ser. Vou casar, vou ter filhos...
Filho (Interrompe
e refere-se ao noivo da irmã): Com aquele? (Faz caras de deprezo)
Filha (Exaltada):
Com aquele, sim. E vou deixar de ver a tua cara. Isso já será um grande
consolo.
Filho:
Você só pode se casar se o pai ganhar esse dinheiro.
Filha:
A morte do homem é daqui a dois dias.
Filho:
O pai não vai fazer o serviço.
Mulher:
Cala, menino. Cala. (Pausa) Come. (Pausa)
Filho:
Hein, pai?
Verdugo (Manso):
Não sei, meu filho, não sei.
Mulher (Para
o filho): O seu pai precisa descansar. E vai aceitar o serviço,
sim. (Para o verdugo, branda) Não é?
Verdugo (Seco):
Não sei.
Mulher:
Trate de ficar sabendo logo. Não é o primeiro nas tuas mãos.
Verdugo (Seco):
Ele é diferente.
Mulher:
Diferente, limpo, uf! É igual aos outros.
Filho:
Ninguém tem o mesmo rosto.
Mulher:
Eu quero dizer que ele é igual a todos os outros filhos da puta que
morreram porque a lei mandou. (Para o verdugo, sorrindo com ironia)
Você se lembra daquele que parecia um anjinho? Hein? Lembra? Todos diziam...
Verdugo (Interrompe):
Eu não.
Mulher:
...mas os outros diziam: ele tem cara de anjo. E vocês se lembram do
que ele fez? (Para o verdugo e para o filho) Se lembram? Conta,
filha, porque aquele outro anjinho foi condenado.
Filha (Sorrindo):
Ele matou aqueles dois menininhos.
Mulher (Irônica):
Só isso?
Filha (Sorrindo):
Não. Primeiro ele queimou as plantas dos pés e as mãozinhas dos menininhos.
Mulher:
E depois?
Verdugo (Seco):
Já sabemos, chega.
Mulher (Para
o verdugo): Não, espera. (Para a filha) E por que ele queimou
as plantas dos pés e as mãozinhas dos meninos? Hein, filha?
Filha (Sorrindo):
Porque assim os menininhos não podiam ficar em pé e nem podiam se
defender com as mãozinhas.
Mulher:
Para fazer aquela porcaria, não é? Então, e muita gente dizia que ele
parecia um anjinho.
Verdugo:
Eu não.
Filho:
Mas esse é diferente, não é nada disso, mãe. Esse só falou.
Mulher:
Deve ter falado besteira.
Filho:
Ele falava de Deus, também.
Mulher:
Deus, Deus, onde é que está esse Deus? (Para o filho) Não foi
você mesmo que andou lendo que naquele lugar, lá longe...
Filho (Interrompe):
Na Índia.
Mulher:
Sei lá, na Índia, onde for, as criancinhas de seis anos vão para o puteiro?
Deus, Deus... e depois não foi você mesmo quem disse que se elas não
fossem para os puteiros aos seis anos, elas morreriam de qualquer jeito,
de fome? Hein?
Filho:
Foi, sim, mãe. Fui eu mesmo.
Mulher:
Então deixa o teu pai fazer o serviço. Se Deus não consegue ajudar aquelas
criancinhas, você acha que esse homem é que vai nos ajudar? (Pausa)
(...)