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BOAVISTA FUTEBOL CLUBE

Um "Derby" Que Ultrapassa as Fronteiras da Cidade

Nunca a história registou um jogo com estas características. O Boavista vai receber o FC Porto com apenas um ponto de atraso a 11 jornadas do final do campeonato. Dois clubes da mesma cidade que tiveram nascimentos idênticos, percursos distintos, mas que acabam por se encontrar agora com um objectivo comum: a conquista do campeonato. De um lado, um Boavista sedento de reparar a perda do título para o Benfica na longínqua época de 1975/76, enquanto do outro está um FC Porto à procura de um inédito "penta", feito que deixaria uma marca indelével nos anais do futebol português.

O Boavista-FC Porto vale três pontos, como qualquer outro jogo do campeonato. Mas o confronto do Bessa de hoje à noite ficará para a história do futebol português. Pela primeira vez, a 11 jornadas do final do campeonato, os boavisteiros dividem com os portistas o papel de protagonistas principais de um "derby" do Porto. A separá-los na classificação há apenas um ponto de diferença, favorável ao FC Porto, uma margem mínima que permitirá ao vencedor ganhar uma vantagem no comando da prova que poderá ser decisiva na atribuição do título.

O Benfica, principalmente, e o Sporting são também partes interessadas de um confronto em que já não se pode falar em David e Golias, mas em que o que separa os dois clubes do Porto é ainda maior do que o que os une. Comparem-se os orçamentos (5,5 milhões de contos para os portistas, 800 mil para os boavisteiros), o número de sócios (mais de 100 mil contra cerca de 10 mil), as assistências (o Bessa tem uma média por jogo de duas mil pessoas, ao passo que nas Antas é de perto de 30 mil espectadores) e os ordenados (Jardel e Baía custam tanto em salários anuais como todo o plantel do Boavista). Mas hoje isso serão factores irrelevantes e tudo irá depender mais, por exemplo, do que fizerem as estrelas da companhia, o romeno Timofte e o brasileiro Jardel.

E se a questão da liderança não fosse suficiente para atrair a atenção do país desportivo, a recente polémica à volta da contratação, ou não, do boavisteiro Jorge Couto por parte do FC Porto, bastaria para prender os olhares mais desatentos. O acordo entre os portistas e o seu ex-jogador terá ocorrido já há alguns meses, mas o facto de a sua divulgação ter surgido a poucas horas deste jogo decisivo deu azo a todo o tipo de especulações. Talvez por isso, mais do que nunca, a rivalidade entre os dois clubes virá ao de cima.

Equilíbrio como este só mesmo se remontarmos ao ano de 1914, quando o Boavista ganhou o primeiro campeonato do Porto, que contou com a participação de FC Porto, Salgueiros, Académico, Progresso, Leixões, Sporting de Espinho, Valadares, Desportivo de Portugal e Nun'Álvares. Então, os dois clubes tinham como denominador comum a fundação associada à colónia inglesa radicada no Porto, com ligações ao negócio do vinho do Porto, no caso dos portistas, e ao negócio têxtil, no tocante aos boavisteiros. Durante muito tempo pensou-se que o Boavista era o clube mais antigo da cidade, mas a descoberta de referências ao FC Porto na imprensa dos finais do século inverteu a situação. Uma das notícias referia-se ao jogo disputado contra o Clube Lisbonense, a 2 de Março de 1894, no Oporto Cricket Clube, ao Campo Alegre, na presença do rei D. Carlos e da rainha D. Amélia. A escolha do azul e branco, as cores da monarquia, é para alguns um indício de que a formação do clube aconteceu em finais do século passado. Curiosamente, o Boavista nasce em 1903, quando a vida nacional atravessava um período conturbado.

O regime monárquico era acusado de corrupção e incompetência e o republicanismo ganhava cada vez mais adeptos. Aliás, a primeira crise do clube boavisteiro dá-se quando portugueses e ingleses não se entendem sobre o dia ideal para a realização dos jogos. Os primeiros, à boa maneira católica, queriam o domingo, enquanto os ingleses anglicanos pretendiam o sábado. Ganharam os portugueses, os britânicos afastaram-se e levaram os subsídios da William Graham.

Mas se a génese é comum, o mesmo já não se pode dizer dos caminhos traçados desde então. "O facto de, desde o início, conquistar títulos - ganhou os campeonatos de 1922 e 25 -, acabou por transformar o FC Porto em símbolo da cidade", diz o historiador Hélder Pacheco, como forma de justificar o crescimento tão desigual dos dois clubes ao longo deste século. As ainda hoje evidentes dificuldades de implantação do Boavista, que não têm explicação histórica para o equipamento (camisola xadrez e calção preto) que passou a usar nos anos 30, tiveram muito a ver com o seu local de nascimento (a zona da Boavista era um descampado e no Campo Alegre viviam as melhores famílias da cidade e o elitismo nunca jogou bem com a popularidade).

Ao invés, o FC Porto, cujo próprio nome se confunde com a cidade, cedo tirou partido de a Constituição ser então uma zona operária, em que abundavam as fábricas têxteis. Daí que Hélder Pacheco considere o FC Porto como "um dos três símbolos da cidade, ao lado do vinho do Porto e da festa do S. João".

As diferentes origens poderão mesmo ter ajudado a que os adeptos mantivessem durante muito tempo uma relação pouco amistosa, sendo ainda fácil encontrar quem prefira utilizar as expressões "remendados" e "andrades" em vez de boavisteiros e portistas. Hoje essa animosidade está muito esbatida, até porque as lutas desportivas têm sido mais no sentido Norte-Sul, para uns, ou Porto-Lisboa, para outros, mas a possibilidade de o Boavista se estabilizar na luta pelos lugares da frente poderá fazer renascer ódios antigos.

Hoje será também uma oportunidade para os boavisteiros de melhor memória recordarem uma tarde de finais de Abril de 1976, quando o Benfica de Mário Wilson foi ao Bessa roubar o sonho de José Maria Pedroto de ganhar o primeiro título para os "axadrezados". "Faltavam três jornadas para o fim do campeonato e, se ganhássemos esse jogo, certamente seríamos campeões", recorda Hernâni Gonçalves, então adjunto de Pedroto. O Boavista perdeu por 1-4 e terminou a dois pontos do campeão Benfica. Um sabor amargo, apesar do histórico segundo lugar e da conquista da Taça de Portugal dessa época.

O então dirigente boavisteiro Fernando Marques, recorda: "Foi um jogo espectacular, com o estádio cheio, em que o Manuel Barbosa marcou um golão. O Boavista jogou muitíssimo bem, mas o Pedroto acabou por errar, como depois confessou, ao substituir o Manuel Barbosa por um miúdo [Mané] que não rendeu. Mas isso acontece... mesmo a um treinador fabuloso como era o Pedroto". Do mesmo lado da barricada nessa altura, mas agora com o coração para o lado azul e branco, Hernâni Gonçalves recorda um Boavista "muito eficiente, organizado, que foi uma verdadeira pedrada no charco do futebol português, não fosse orientado pelo mítico José Maria Pedroto".

Curiosamente, o Boavista de hoje é, de alguma forma, ainda uma herança das ideias do "Zé do Boné" e até do FC Porto que encontrou uma saída para o "jejum" de 19 anos sem qualquer título conquistado. Isto porque Jaime Pacheco, que atingiu o auge da sua carreira ao serviço dos portistas, onde se sagrou campeão nacional, nunca escondeu ter como principal referência no futebol Pedroto, a quem, a par de Bobby Robson (outro treinador que passou pelas Antas) procura seguir as pisadas. De alguma forma, por isso, o jogo de hoje será também um braço-de-ferro entre a velha escola das Antas e a nova realidade suscitada pelo surgimento da Sociedade Desportiva e pela aposta num treinador como Fernando Santos, onde se valoriza mais a sua habilitação profissional e menos a ideologia.

Tal como há 23 anos, o Boavista cedo conseguiu o estatuto de equipa sensação e, agora, é talvez o único a não querer visto como real candidato ao título. Com uma carreira notável no campeonato (duas derrotas e seis empates em 23 jogos), a equipa treinada por Jaime Pacheco está num brilhante segundo lugar (51 pontos) e é um dos conjuntos fortes da prova. Do excelente percurso dos boavisteiros consta, a título de exemplo, um triunfo nunca antes alcançado nas Antas (2-0). Curiosamente, o FC Porto garantiu a conquista do último campeonato com uma vitória em casa... frente ao Boavista.

Porém, mesmo sendo este um jogo de importância extrema para os boavisteiros, a direcção de João Loureiro manteve-se fiel à política de rigor do clube: o prémio de jogo por vitória em casa fica nos 200 contos - três pontos ganhos fora, nos jogos com os "grandes" e com o Guimarães, equivalem a três centenas de contos para cada jogador. De resto, esta forma de encarar a vida do clube é uma continuação daquilo que os sócios pensam. Face à verba anual disponível para os salários do jogadores (400 mil para salários) e à expectativa de ter um encaixe superior a 12 milhões de contos quando estiver rentabilizado o empreendimento imobiliário em construção junto ao estádio, foi perguntado aos associados, há cerca de dois anos, se valeria a pena gastar uma boa fatia dessa verba na luta pelo título ou antes investir na construção do novo estádio e na criação de infraestruturas que, aí sim, garantiriam um crescimento sustentado: dos 1500 sócios que responderam, num universo de 11 mil, apenas 38 por cento concordou com a subida exponencial do orçamento.

Uma decisão consciente, mas rara no futebol, onde o êxito imediato é quase sempre mais valorizado do que uma estratégia a médio prazo. Claro que a aposta tem custos elevados e hoje o Boavista perde a hipótese de fazer uma grande receita, já que as obras no estádio não permitem que haja mais do que 8500 lugares disponíveis (900 dos quais para o público), já esgotados há dois dias. publicado no jornal "Público" em 28/02/1999