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Não é nada preocupante - A Bela Valerie.
autor: Douglas Ricardo

 

Mas isso não é nada preocupante, ou mesmo perigoso.
São apenas pequenas coisas que gostaríamos de esclarecer um dia.


Depois de quase cinco anos de resistência, finalmente fui convencido por uma amiga a comprar um carro. Não que eu odiasse a idéia de possuir um automóvel, mas eu abominava a possibilidade de ficar preso em engarrafamentos desnecessários. Além disso, havia a manutenção, reabastecimento, lavagem e enceramento de domingo, caronas para a mãe fazer compras, rodízio de primavera, verão, outono e inverno. Mais malefício que vantagens. Mas enfim.

Estava com meu Corsa cinza escuro (extasiante a sensação de dizer 'meu Corsa', não?) na Avenida 23 de maio, digerindo um catastrófico engarrafamento e um não menos horrendo horário político gratuito no rádio. Mas, como as coisas sempre podem ser piores, elas foram. Um Vectra preto, de vidros laterais espelhados, placa VF 0893, bateu generosamente na traseira de meu carro semi-novo. Desesperada, uma mulher esguia, de cabelos castanhos na altura do ombro, com esplêndidos olhos castanho-claro, e a boca de lábios superiores finos como um filete de água, parecidos com os da Winona Rider, desceu acenando-me. Estava metida num vestido preto que moldava-lhe o corpo, com uma longa echarpe vermelha enrolada no pescoço.

Imediatamente, qualquer possibilidade de irritar-me dissipou-se no monóxido de carbono que respirávamos. Mas permanecia o problema: como eu, na corda bamba entre o banco e a financiadora, poderia arcar com os prejuízos de um imponente Vectra em meu impotente Corsa? A mulher acalmou-se, dizendo que isso nunca poderia ter acontecido, pois estava só de passagem por São Paulo, ficando apenas mais dois dias na cidade. Pegou sua bolsa, velha e desgastada, totalmente dissonante do resto de seu modelito. Não que eu sequer pudesse dizer-lhe isso. Estava hipnotizado por aquele rosto.

Ela obrigou-me a estimar um valor para os reparos, super-faturando o cheque do banco Sudameris que me entregou. Agradeceu, desculpou-se, agradeceu novamente e partiu em seu carro para uma das travessas da Vinte e Três. Eu também parti, meia hora depois, quando consegui sair do atolamento de carros do horário de pico. Enquanto esperava sair daquela tortura diária, já pensando em vender o carro, decidi dar uma olhada no cheque.

Foi quando me dei conta que o banco Sudameris, onde deveria sacar o cheque, havia falido há anos, sendo absorvido por outro, e gargalhei de mim mesmo, não pelo dinheiro que havia perdido, mas em função do que um rosto bonito faz com um homem.

Mas, como a esperança é a última que morre (eu a imagino soprando fôlego no corpo recém falecido), fui no dia seguinte até minha seguradora, onde a atendente me instruiu a procurar o banco surgido da compra do Sudameris, fornecendo-me inclusive o endereço dele. Não perdia nada em tentar. Chegando lá, o gerente me atendeu, ficando surpreso ao verificar a data no cheque, do dia anterior. Só que de cinco anos antes. Checando seus arquivos, certificou-se da existência da conta, com exatamente R$0,66 a mais que o valor escrito no papel tremulando em suas mãos. Constava um bilhete na ficha da correntista, informando ser aquele valor o restante de sua herança.

Nesse momento, ainda surpreso, pedi ao gerente o endereço da simpática desconhecida que me entregara sua herança com meia década de atraso. Fui orientado a dirigir-me ao caixa, e recebi junto com dinheiro um endereço e um nome: Valerie Faris. Meio aturdido, prossegui a toda para o endereço no Ibirapuera. Nem sei ainda porque não fui multado por excesso de velocidade.

Chegando no local, invés de uma morena estonteante, fiquei tonto com a placa 'VENDE-SE' pendurada na parede externa. Dali, parti imediatamente à imobiliária responsável pela venda, apenas para a recepcionista informar-me que, se efetuada, a venda serviria para cobrir os impostos atrasados. A dona da propriedade? Havia falecido há cinco anos.

Eu seria um idiota se acreditasse que uma linda defunta amassara o meu carro. O estrago era real, e o dinheiro no meu bolso também. Como já estava ali mesmo, fui até o DETRAN, responsável pelo registro e paradeiro de (quase) todos os carros da cidade. Lembrava-me da placa, e ela seria meu passaporte para encontrar a misteriosa francesa. Preenchi uma dezena de formulários, enfrentei umas quatro filas, respondi a um interrogatório absurdo, parecendo até que eu era responsável pela morte da Srta. Faris.

Mandaram-me retornar dois dias depois para receber o resultado da pesquisa, e a indicação do paradeiro do automóvel. Mas, retruquei, dois dias ultrapassam meu prazo para encontrá-la, já que afirmara ficar somente mais dois dias na cidade, ontem. Como funcionários públicos não são dados a contra-argumentos, repetiram-me o prazo e chamaram o próximo. Desistindo da minha busca, levei o maldito carro à concessionária, devendo buscá-lo em dez dias. Nesse período de espera, adiaram a entrega da pesquisa quatro vezes, por cerca de três semanas. Peguei meu carro e, decididamente, iria vendê-lo.

Foi quando num sábado, daqueles preguiçosos, quando você quer dormir até doer o corpo, acordaram-me aos gritos. O entregador motorizado do departamento de pesquisa, terceirizado, trazia uma carta registrada, contendo o resultado do solicitado.
Naquele dia, a última coisa que me lembrava era do meu carro, ainda em reparo, da mulher e da miserável pesquisa, que me tirara da cama. Quando abri o envelope, esperando encontrar um 'sinto muito, não podemos ajudá-lo', encontrei um endereço detalhado, inclusive com um mapa, e um número estranho, parecido com aqueles de apartamento em condomínio, D165.

Planejei ler meu jornal, pegar meu carro e encontrar o endereço, mas esqueceram de entregar o jornal, o carro não estava pronto e eu não sabia o caminho do local. E o motoqueiro ainda queria gorjeta. Quatro ônibus depois, cheguei à Avenida Nações Unidas, e entrei no prédio da portaria do número indicado. Fui conduzido por um policial até um grande pátio, com vagas de automóvel numeradas e corredores identificados por letras. Ficou fácil, corredor D, vaga 165, e lá estava o Vectra, abalroado na dianteira com a forma do meu carro, a mesma placa, mas incrivelmente deteriorado pela ferrugem e pela ação do tempo. Perguntei ao policial há quanto o carro estava ali, e recebi a resposta que temia: cerca de cinco anos.

Vasculhando a parte externa do automóvel, pude ver algo vermelho brilhando no sol. Chegando perto, achei a echarpe de Valerie enrolada no volante. Não tive coragem de pegá-la, tampouco de procurar onde estava enterrada. Voltei para casa, peguei meu carro e hoje vou trabalhar de metrô.

Mas isso não é nada preocupante, ou mesmo perigoso.
São apenas pequenas coisas que gostaríamos de esclarecer um dia.