Internet
e possibilidades de emancipação: uma reflexão a partir do pensamento de
Slavoj Zizek *
Autor: Demétrio Cherobini
Revisão do texto: Prof. Dr. Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira
É
relativamente fácil constatar que a World Wide Web afeta, hoje, a vida de
todos. Um exemplo banal: nos últimos dias de 1999, as pessoas em todo o mundo
(ocidental) quase entraram em paranóia em razão de uma “não-entidade”
denominada "bug do milênio", que poderia ter desencadeado efeitos
catastróficos, tanto em nível de economia internacional, quanto em relação
à vida cotidiana em suas facetas mais comezinhas – alterar o controle do
suprimento de água, por exemplo. Nada aconteceu, de fato, naquela ocasião. Mas
esse “bug do milênio” serviu para confrontar-nos com o fato de que nossa
vida "real" é regulada em larga escala pela ordem virtual de
conhecimento objetivado a que nós chamamos pelo nome familiar de Internet, e
para mostrar-nos, por conseguinte, como esta rede adquiriu, nos últimos anos,
uma importância social e política muito grande.
Mais
difícil que reconhecer isso é encontrar um posicionamento crítico sobre o
assunto que evite, ou mesmo transcenda, as soluções extremas – e, por que não
dizer?, fáceis - dos tecnófilos e tecnófobos de plantão. Nesse sentido,
aqueles que por empatia se colocam ao lado dos que buscam a emancipação das
relações sociais alienadas e alienantes de nossa sociedade atual podem
encontrar uma proposta coerente nas obras do sociólogo, filósofo e
psicanalista esloveno Slavoj Zizek.
O tema das Novas Tecnologias de Informação e
Comunicação, em geral, não
é central na obra de Zizek. Muito menos, o tema específico da Internet. Em
verdade, todas essas questões são tratadas de forma marginal em seus textos,
que versam sobre psicanálise, filosofia, sociedade, política e outros
assuntos. Há que se compreender, portanto, algo dessas teorizações, antes de
se apreender como o pensador esloveno concebe as possibilidades emancipatórias
abertas pelo advento da Internet.
A teoria social e política de Zizek está imbuída do objetivo de
“reencontrar este momento único no qual um pensamento ainda se transpõe em
uma organização coletiva, mas ainda não se fixa em uma instituição”
(Zizek, apud Safatle, 2003, 181). Esse momento em que o pensamento e a atividade
coletiva se encontram é o da ação política soberana. Esta, em verdade, é
concebida como o ato que instaura a partir de si mesmo sua própria legalidade
ao “suspender a Lei”, abrindo assim a possibilidade de emancipação. É
imprescindível para a teoria de Zizek, nesse contexto, a categoria filosófica
da negatividade.
Baseado fundamentalmente em Lacan e Hegel, Zizek desenvolve uma teoria do
sujeito repleta de conseqüência políticas e apta a guiar práxis sociais de
cunho emancipador. Segundo Lacan, no inconsciente não há nenhuma positividade
primeira. Ele não é “uma caixa de Pandora de onde sairiam pulsões não-socializadas
e conteúdos recalcados. Ele é, antes, aquilo que, no sujeito, se define por
resistir continuamente aos processos de auto-reflexão. Ele [o inconsciente] é
lugar do que só pode aparecer como irredutivelmente negativo [grifo nosso] no
sujeito. De onde se segue a importância do tema do descentramento do sujeito do
inconsciente (e não seu abandono). Descentramento que indica a posição de não-identidade
que um conceito não substancial de sujeito sempre sustentará diante dos espaços
de representação, de auto-apreensão reflexiva e de identificação social”
(cf. Safatle, 2003, 182).
O que significa isto, exatamente? Para a psicanálise clássica, a cura
da neurose se realizava quando os conteúdos do inconsciente eram trazidos ao
campo da consciência, para aí, então, serem superados. Contudo, se o
inconsciente não é uma caixa repleta de conteúdos, mas a própria resistência
em se tornar consciente, ou seja, a própria negatividade, é esta negatividade
mesma, “vazia de conteúdo”, que tem de ser transposta “para fora”, que
tem de ser atualizada. Lacan, portanto, realiza uma articulação entre sujeito
e negatividade que são caras a Zizek em seu projeto de fundamentação de um
projeto de emancipação do sujeito. O que o filósofo esloveno faz é tirar uma
conclusão política dessa teoria lacaniana do sujeito. Em outras palavras,
Zizek politiza o sujeito lacaniano. Nas suas palavras: “O sujeito é
inerentemente político no sentido que ‘sujeito’, para mim, denota uma partícula
de liberdade, já que ele não fundamenta suas raízes em uma substância firme
qualquer, mas que se encontra em uma situação aberta” (Zizek, apud Safatle,
2003, 183).
Para Zizek, “a experiência da negatividade do sujeito indica, entre
outras coisas, como o desejo não se satisfaz na assunção de identidades
ligadas a particularismos sexuais. O sujeito é aquilo que nunca é totalmente
idêntico a seus papéis e identificações sociais [grifo nosso], já que seu
desejo insiste enquanto expressão da inadequação radical entre o sexual e as
representações do gozo” (Safatle, 2203, 183). Ser sujeito, portanto, não é
assumir uma identidade eventualmente recalcada por pressões sociais e/ou psicológicas.
É, ao contrário, o próprio ato de negação de uma identidade que nos é
imposta. Daí, a renúncia de Zizek em compactuar com qualquer política de
identidade, pois estas, no seu entender, acabam fazendo o jogo da ideologia e,
por conseguinte, do Capital. Pois o Capital acomoda-se muito bem às políticas
de identidade e à multiplicidade de identidades. É por isso que, segundo
Zizek, toda política da identidade faz o jogo do Capital.
Explicamos melhor: as teorias críticas clássicas preconizavam a crítica
da ideologia como condição para a emancipação. O sujeito atua no
capitalismo, se aliena, e forma uma determinada representação sobre si –
representação que em si mesma é falsa – e que impede que ele se dê conta
daquilo que ele “realmente é”, de sua “identidade”. Por exemplo: o
trabalhador alienado, explorado, oprimido. Havia uma identidade subterrânea
soterrada que precisava ser resgatada, a fim de se promover o ato transformador.
Zizek não quer resgatar nenhuma identidade. Ao contrário, ele desconfia
da assunção de identidades. O que ele visa é, justamente, negar as
identidades que nos são atribuídas pelo Capital. Assim, a única universalização
pretendida não é a universalização da identidade, mas a universalização da
negação. É por isso que “a negação pode nos abrir uma via para a fundação
de um universal não-substancial caro a um pensamento crítico de esquerda que não
queira entregar o discurso do universalismo aos arautos do capitalismo global.
Contra uma política das identidades, uma política da universalidade da
inadequação” (cf. Safatle, 2003, 184). O ato político por excelência é
justamente a suspensão desse universal simbólico que nos é dado pelo Capital,
e que se expressa fundamentalmente no ordenamento jurídico em vigência. É por
esse motivo que Zizek afirma que “a verdadeira escolha livre é aquela na qual
eu não escolho apenas entre duas ou mais opções no interior de um conjunto prévio
de coordenadas, mas escolho mudar o próprio conjunto de coordenadas” (Zizek,
apud Safatle, idem, 185). A verdadeira escolha livre, o ato político par
excellence, é a suspensão de uma determinada ordem jurídica.
Mas e onde a Internet entra nisso tudo? Existe algum potencial inerente
à Internet, mediante o qual as pessoas podem exercer a negatividade e assim
transformar o existente, superando finalmente a sua condição de miséria e
opressão? Em Às portas da revolução (São Paulo: Boitempo, 2005), Zizek se
pergunta: “Não haveria também na World Wide Web um potencial explosivo para
o próprio capitalismo?” E a sua conclusão é de que sim, existe. Seu raciocínio,
aqui, está mais centrado na dimensão econômica do problema: a Internet, com
sua possibilidade de livre compartilhamento dos mais diversos materiais, promove
uma crise da propriedade privada. Nesse contexto, “o antagonismo-chave das
chamadas novas indústrias (digitais) é, portanto, como preservar a forma da
propriedade (privada), a única maneira pela qual a lógica do lucro pode
prevalecer.” (Zizek, 2005, 322). Promovendo a crise da propriedade privada, as
condições para o lucro ficam inviabilizadas, fato que faz com que sejam
abalados os próprios fundamentos do sistema capitalista. (Também não deixa de
estar contemplado, aqui, o elemento cultural do problema, visto que aquilo que
se compartilha via rede são os mais variados conteúdos relacionados com o
conhecimento, a arte, o lazer. As pessoas passam a dispor de materiais que não
poderiam ser adquiridos de outra forma, a não ser pelo intermédio da Internet.
Isso também lhes confere um ganho que repercute na dinâmica da sua
personalidade e nas suas ações).
Em artigo de 29 de outubro de 2000, no jornal Folha de São Paulo,
comentando sobre a ameaça de que a influência da Internet sobre nossas vidas
cotidianas torne possível “um controle à maneira do ‘Big Brother’,
diante do qual a velha supervisão da polícia secreta comunista [seria] uma
primitiva brincadeira de criança”, Zizek insiste em que, para se evitar isso,
não se deve repudiar totalmente a tecnologia, como se ela fosse um mal em si.
“Aqui, mais do que nunca, deve-se insistir que a melhor reação [...] não é
a retirada para alguma ilha de privacidade, mas a socialização mais vigorosa
do espaço cibernético [grifo nosso]” (Zizek, Paranóias Virtuais, Folha de São
Paulo, 29/10/2000). Zizek está, agora, tratando da dimensão política que
envolve o problema das Novas
Tecnologias: o poder de controlar a vida das
pessoas. Sua conclusão, então, é de que somente a ampla socialização da
rede impediria o controle sobre a vida das pessoas e permitiria que elas mesmas
comandassem os processos que regulam as suas vidas: economia, política,
cultura, etc.
Avançando ainda mais na reflexão, pode-se, agora, retornar ao ponto
inicial da reflexão a fim de se compreender a principal potencialidade inerente
à Internet, com vistas a contribuir para a solução do problema da emancipação
social, política, econômica e cultural: com base nas teorizações de Zizek,
é possível afirmar que as pessoas podem, por intermédio da rede, compartilhar
sua experiência da inadequação no mundo capitalista. Surge, com a rede, a
possibilidade dos indivíduos se aproximarem, se comunicarem, trocarem idéias e
elaborarem estratégias de questionamento prático sobre o ordenamento político
e jurídico que rege suas vidas na realidade “real”. Um exemplo disso foram
as manifestações estudantis na França, ao logo de boa parte do ano passado.
Os manifestantes fizeram um amplo uso da
Internet para sua comunicação e
organização das atividades. Um outro exemplo de compartilhamento da experiência
de inadequação são as mídias alternativas, como o centro de mídia
independente – popularmente conhecido na rede, em língua portuguesa, como
CMI, cujo lema é “Odeia a mídia? Seja a mídia!” – onde as pessoas podem
não só receber informações que não passam na grande mídia, mas podem elas
mesmas relatar os fatos que vivenciam e que lhes causam perplexidade. E pode-se
pensar também que, ao mesmo tempo em que é realizada a crítica das condições
existentes, a rede abre inúmeras possibilidades para a consulta e tomada de
decisão sobre os assuntos políticos, econômicos e culturais concernentes à
vida da coletividade.
Contudo, para que a Internet tenha atualizado esse potencial emancipatório,
a condição imprescindível é que as pessoas - o máximo de pessoas possível
- possuam livre acesso a ela. Trata-se, então, de liberar o acesso à Internet.
Numa palavra, socializar a rede. É por isso que, enfrentando a questão a
partir de um ponto de vista que visa a emancipação social e política, Zizek
pode dizer: “Hoje fico tentado a parafrasear o conhecido slogan de Lênin
‘socialismo = eletrificação + poder dos sovietes’: ‘socialismo = livre
acesso à Internet + poder dos soviets’. (O segundo elemento é crucial, uma
vez que especifica a única organização social na qual a Internet é capaz de
concretizar seu potencial libertador; sem ele, teríamos uma nova versão de
tosco determinismo tecnológico)” (idem, 321-2).
Compreende-se, então, que a Internet abre um amplo leque de
possibilidades para que as pessoas tomem as rédeas de suas próprias vidas.
Para que governem elas mesmas as suas vidas, e não deleguem a outrem esse
poder. A Internet guarda um grande potencial crítico, “explosivo”, político,
na medida em que se converte em um “lugar” de onde se pode criticar a
propriedade privada, exercer o controle sobre os mecanismos que regem a vida em
sociedade, denunciar a ideologia, compartilhar a experiência da inadequação e
exercer o ato de negação do ordenamento simbólico que nos é atribuído pelo
Capital. Concordamos com a proposta de Zizek que afirma que só um discurso
negativo pode escapar da ideologia e promover a emancipação, e que a Internet
é veículo imprescindível para esse objetivo.
BIBLIOGRAFIA
SAFATLE, Vladimir.
A política
do Real de Slavoj Zizek. Posfácio de ZIZEK, Slavoj, Bem-vindo ao deserto do
Real. Boitempo, São Paulo, 2003. Coleção Estádio de Sítio.
ZIZEK,
Slavoj. Paranóias Virtuais. Folha de São Paulo, 29/10/2000.
ZIZEK, Slavoj,
Bem-vindo ao
deserto do Real. Boitempo, São Paulo, 2003. Coleção Estádio de Sítio.
ZIZEK,
Slavoj. Às portas da revolução. Escritos de Lênin de 1917. São Paulo:
Boitempo, 2005