"Intensidade e descontrole dos fluxos na Pós-modernidade"
Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira
Publicado no Jornal "A Razão" em 25.10.2001
"O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se, mas evitar que se fixe" (Z.Bauman).
Nesta afirmação, Bauman usa o termo identidade no sentido de C.Lasch, ou seja, para referir-se tanto a pessoas como coisas; juntamente com esta observação, quero salientar o movimento como uma das categorias centrais do mundo pós-moderno e globalizado. Um movimento que desconhece obstáculos, e está intimamente relacionado com a velocidade, com a obsolescência de tudo, com a desterritorialização, com a compressão do tempoespaço, com a criação e a destruição. Para ilustrar a reflexão sobre o movimento na pós-modernidade, nada melhor que o modelo do fluxo cultural global, do antropólogo Arjun Appadurai, através das cinco dimensões propostas na análise das tensões entre homogeneização e heterogeneização cultural, e que foram por ele denominadas de: etnopanoramas, tecnopanoramas, finançopanoramas, midiapanoramas, e ideopanoramas.
Os etnopanoramas são produzidos por fluxos de pessoas (turistas, imigrantes, refugiados e trabalhadores), e estão relacionados com as mudanças na produção e nas tecnologias, e com as políticas de cada estado. Num espaço globalizado, as distâncias não importam, pois são aniquiladas pelo avanço tecnológico nos transportes; isto impulsionou sobremaneira o turismo, que a pós-modernidade já recebe a denominação de a "segunda era de ouro das viagens". Quanto aos trabalhadores, de um lado o desemprego, como uma das principais questões sociais do século XXI, será um fator central para o fluxo dos mesmos; de outro lado, a descentralização/flexibilidade do sistema produtivo, está colocando em circulação os trabalhadores, e dando vida aos fluxos de força de trabalho baseado no teletrabalho. Este novo processo produtivo também é responsável pelos fluxos intensos de tecnologia, máquinas e instalações industriais relacionadas às transnacionais, e neste caso caracteriza-se os tecnopanoramas.
Já os finançopanoramas dizem respeito ao deslocamento dos fluxos de capitais em escala global e em tempo real (associados às transnacionais, mas não somente a elas), e estruturam em grande medida o capitalismo pós-moderno através da dispersão, da mobilidade geográfica e das respostas flexíveis. Appadurai destaca este fluxo como o "mais misterioso, mais rápido e mais difícil de ser acompanhado". O fluxo de capitais frequentemente gera turbulências no mercado financeiro; o volume de capitais especulativos está estimado em mais de um trilhão de dólares, volume este que pode volatilizar repentinamente, com alto-risco para os países-hospedeiros (ex. México, Argentina, Espanha e Itália). Mas a alta dispersão, e a rapidez de mobilidade não são diferentes nos fluxos de imagens, informações, sons e símbolos (os midiapanoramas) veiculados pela internet, televisão, revistas e filmes; produzem imagens do mundo, espetáculos e simulacros, com os quais os espectadores constroem mundos imaginários. As imagens também podem estar associadas à ideologias (de Estados) e contra-ideologias (liberdade, direitos, democracia), e neste caso representam os ideopanoramas.
Como podemos perceber, tudo (e todos) se move numa velocidade sem precedentes, e esta é a ordem da pós-modernidade: não se fixar; como diz Bauman, "o nome do jogo é mobilidade", num espaço globalizado onde as distâncias não importam mais. A atmosfera de "medo ambiente"(M.Doel & D.Clarke) formada hoje no mundo, parece estar ameaçando a liberdade que os fluxos atingiram na década de 90, e favorece medidas políticas de controle dos mesmos em nome da segurança. Devido a atual conjuntura, o controle do fluxo de pessoas parece estar mais em evidência; mas restrições a este fluxo podem escamotear tentativas de se voltar atrás à idéia moderna de "um mundo sem estranhos"(Bauman), atendendo aos interesses daqueles que ainda não aprenderam a respeitar as diferenças étnicas e culturais, e também dos que odeiam o fluxo de trabalhadores dos países pobres. O medo também está desacelerando este fluxo, o que pode gerar profundas conseqüências no setor do turismo, modificando o quadro da era de ouro das viagens.
Porém a atual intensidade e flexibilidade dos fluxos na pós-modernidade quando permitem algum controle, é parcial e temporariamente (os fluxos estão passando por um momento de desaceleração, mas não de controle geral e permanente). É impossível frear o movimento num mundo cuja característica principal é a de se estar constantemente em movimento, mesmo que seja sem direção claramente definida. Fluxos em constante movimento geram insegurança e medo em indivíduos que vivem num tempoespaço pós-moderno, porém com uma consciência moderna (buscam a segurança, quando esta foi substituída pela liberdade). Devemos saber que não existe liberdade (de movimento, ou de qualquer outro tipo) sem riscos, e, na impossibilidade de voltarmos atrás, precisamos aprender que na pós-modernidade "vive-se um dia de cada vez, e a vida diária deve ser retratada como uma sucessão de acontecimentos menores" (C.Lasch).