Globalização. Conceito de Globalização. Globalização: aspectos gerais. Globalização: capitalismo globalizado. Globalizaçao e o mundo do trabalho. Globalização e questões políticas. Globalização e questões sociais

 

 "GLOBALIZAÇÃO - a globalização sob a ótica da acumulação flexível"*

 

GLOBALIZATION: THE GLOBALIZATION FROM THE VIEWPOINT OF FLEXIBLE ACCUMULATION

 

Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira

Doutor em Educação, Linha: Política, Sociedade e Educação. Professor Adjunto-4 do Depto de Ciências Sociais e Professor do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM – RS. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq: "Globalização e Cidadania em perspectiva interdisciplinar".

 

* Artigo publicado na Revista Sociais e Humanas do Centro de Ciências Sociais e Humanas da UFSM - Vol. 22 – Edição Especial - Ciências Sociais – agosto/2009

 

RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar o atual processo de globalização tendo por base a sua dimensão econômica e tomando-o como uma nova etapa (multinacional/tardia) do capitalismo. Sob este aspecto, elegi o tema da acumulação flexível de capitais  como núcleo para estabelecer  as relações entre os vários aspectos das mudanças atuais. Partindo das características destas mudanças, analiso as transformações que se processam no mundo do trabalho e da produção, tendo como base a categoria da flexibilidade. Finalmente destaco que este não é um processo uniforme, mas marcado por contradições expressas pela acentuação de antigas e emergência de novas questões sociais. O enfrentamento das problemáticas deste novo contexto passa, necessariamente, pela compreensão de sua complexidade, portanto da conexão recíproca entre as mudanças e seus desafios. O artigo está vinculado à minha temática de pesquisa “Teorias da Globalização”, e elegi como embasamento central as teorias de David Harvey e Manuel Castells no que eles apresentam sobre as mudanças do contemporâneo.

Palavras-chaves:   globalização, acumulação flexível, problemáticas sociais

 

ABSTRACT

This paper has the objective of analyzing the current globalization process having for base its economical dimension and taking it as a new capitalism stage (multinational/late). Under this aspect, I elected the theme of capital flexible accumulation as a nucleus for establishing the relations among several current shift aspects. From the features of these changes, I analyze the transformations which process themselves in the work and the production world, having for base the flexibility category. At last, I point out that this is not a uniform process, but marked by contradictions expressed by the accentuation of old social issues and the emergence of new ones. The confrontation of the problematics of this new context passes necessarily through comprehension of its complexity, therefore, reciprocal connection among changes and their challenges. The paper is linked to my thematic of research “Globalization Theories”, and I elected as a central basement David Harvey’s and Manuel Castells’ theories in which they present about the contemporanean shifts.

Keywords: globalization, flexible accumulation, problematic

 

  Globalização. Conceito de Globalização. Globalização: aspectos gerais. Globalização: capitalismo globalizado. Globalizaçao e o mundo do trabalho. Globalização e questões políticas. Globalização e questões sociais

 

 

1. APROXIMAÇÕES GERAIS: questões sobre a mudança

 "...Todas as antigas e cristalizadas relações sociais são dissolvidas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo o que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar suas condições de existência e suas relações recíprocas."[1]                          

 

Esse fragmento, que nos dá a idéia de um novo tempo -  dinâmico, tumultuado, de criação e destruição, mas nunca de estabilidade; de um  tempo no qual tudo o que foi sólido um dia se desmanchou, e o que insiste a ser é impedido pelo movimento das mudanças -  caracteriza os primeiros momentos da etapa monopolista do capital, e o seu impacto na sociedade do século XIX, quando as tradições foram derrubadas e o desenvolvimento das forças industriais e científicas, perpassado de contradições, gerou  incertezas e agitações em todo o sistema social. Seguindo a divisão da história da modernidade feita por Berman (1992), corresponde a sua segunda fase, a qual, mesmo sendo revolucionária e de explosivas convulsões, ainda permite aos indivíduos terem a sensação de viver em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro.

Mas esse mesmo fragmento caracteriza também a etapa atual do capitalismo, ou seja, o capitalismo tardio[2] e todas as profundas transformações do sistema social deste final de século a ele associadas. Porém, essa citação de Marx deve ser analisada levando-se em consideração que a presente fase do capitalismo diferencia-se muito das anteriores no sentido de que as mudanças agora se dão em um ritmo de velocidade e intensidade incomparáveis. 

Sob este aspecto, torna-se central na discussão sobre o atual processo de globalização, a observação de Castells (1999, p.111) de que “uma economia global é uma nova realidade histórica, diferente de uma economia mundial...é uma economia com capacidade de funcionar como uma unidade em tempo real, em escala planetária...”. A categoria “tempo real” marca a divisão entre o entendimento do conceito de internacionalização e o conceito de globalização, pois traz consigo aquele ritmo de velocidade e intensidade incomparáveis imprimidos nas mudanças que se dão em todas as esferas da vida social e humana na contemporaneidade.

Neste tempoespaço não se permite aos indivíduos a sensação de viverem antiguidades, mas, ao contrário, a sensação de futuro iminente, incerto se faz presente a todo instante, pois os sistemas atuais são marcados por “bifurcações”, movimentam-se longe do equilíbrio e manifestam o desenvolvimento evolutivo da complexidade. Tomando a figura do rio Heraclitiano, pode-se dizer que, se nas fases passadas do capitalismo, o homem não podia banhar-se duas vezes na água do mesmo rio, na atual, o homem não consegue terminar o banho no mesmo rio, pois as estabilidades são dissolvidas pela constância da transitoriedade, sendo a mudança contínua uma forte marca das condições de globalização.

 Enquanto "os rios pré-modernos permaneciam em seus leitos por um tempo suficientemente longo para parecer imemorial” (Bauman), nos dias de hoje, "a sucessão dos acontecimentos é um trem desenrolando seus trilhos adiante de si; e o rio do tempo é um rio que arrasta as margens consigo" (Bauman, 1988, p. 93). Se no capitalismo monopolista os acontecimentos eram previsíveis e ocorriam de forma linear, hoje as certezas newtonianas não encontram mais sustentação.

Temos que falar agora de um tempo chamado por Lévy de "pontual", no qual ocorre uma espécie de implosão cronológica, e a aventura humana entra em um ritmo totalmente novo em que "... o devir parece engendrar a si mesmo, instantaneamente, brotando das simulações, dos programas e do fluxo inesgotável dos dados digitais ..., vai muito depressa, ainda que não queira saber de onde vem e para onde vai" ( Lévy, 1993, p. 115). Isso, em termos de conhecimento, possibilita-nos a sistematização das mudanças em curso e a identificação de novas tendências, mais do que a construção de novas sínteses teóricas.

A mutabilidade sob as atuais condições torna este mundo, um mundo de incertezas, “repercute na linguagem e nos sentimentos, nos edifícios e nos trajes da sociedade atual” (Jameson, 1997: p. 31), e também entrelaça os parâmetros mais óbvios de nossa existência (o tempo e o espaço), numa relação indissociável de tempoespaço, no qual, as dimensões sociocultural, econômica, política, filosófica e psicológica se inter-relacionam constituindo a dinâmica do novo sistema global.

Tomo como referência para o enfoque destas questões, as profundas transformações político-econômicas e socioculturais que ocorreram a partir da II Guerra Mundial  e estruturaram este novo tempoespaço do capitalismo tardio e/ou globalizado, cujas características, segundo Jameson (1996) incluem o surgimento das empresas transnacionais, uma nova divisão internacional do trabalho, uma nova dinâmica vertiginosa de transações bancárias internacionais e das bolsas de valores, novas formas de inter-relacionamento das mídias, computadores e automação e a crise do trabalho tradicional.

Assim, o estágio multinacional através de novas formas de organização das empresas e com o crescimento exponencial das corporações internacionais expande-se por todo o globo, em áreas até então não atingidas pelo mercado (enquanto o monopolista não passava da rivalidade entre algumas potências coloniais), tornando-se "... a mais pura forma de capital que jamais existiu ... e que elimina os enclaves de organização pré-capitalista que ele até agora tinha tolerado" (Jameson, 1996, p. 61). Porém foi muito além das áreas do globo, conseguindo “colonizar” também o inconsciente dos indivíduos e a natureza (questões ecológicas).

 

 

2. TRAÇANDO AS RELAÇÕES: a “acumulação flexível”

 

Portanto, tendo como ponto de partida a dimensão econômica, a globalização está relacionada ao "regime de acumulação flexível" (Harvey, 1992) que surge em resposta à crise  provocada pela excessiva rigidez do modelo fordista em todas as áreas: nos investimentos de capital fixo; no sistema de produção em massa (com rígida separação da concepção e do planejamento da produção em relação à execução das tarefas); na distribuição dos mercados, na alocação e nos contratos de trabalho (relações contratuais rígidas - com marcante presença dos sindicatos na regulação das relações trabalhistas e regras rígidas de contratação e demissão de trabalhadores); no planejamento e crescimento relativamente estável do mercado de consumo  e nos compromissos do Estado (existência de um Estado-previdência capaz de garantir a estabilidade social e política).

A acumulação flexível "... caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção  inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e  organizacional ..." (Harvey, 1992, p. 140).

Ao contrário da etapa taylor-fordista, marcada por "... complexos e rígidos hábitos e normas de ordem, exatidão, precisão ..." (Gramsci, 1978, p. 393), a acumulação flexível é marcada por uma flexibilidade geral que se estende dos processos de produção aos dos produtos de trabalho e padrões de consumo. A partir do que chamou de "diferentes trajetórias organizacionais", Castells (1999) salienta a questão da flexibilidade na análise das várias tendências organizacionais que evoluíram do processo de reestruturação capitalista e transição industrial.

Como primeira e mais abrangente trajetória de evolução organizacional que caracterizará a acumulação flexível de capitais e, conseqüentemente, o processo de globalização sob o aspecto econômico, Castells destaca a flexibilidade no processo produtivo, que irá substituir a rigidez das burocracias racionais e verticais no processo de produção padronizada em massa, com base em linha de montagem e controlado pela grande empresa estruturada pelos princípios da administração científica de Taylor[3], os quais foram incorporados em todas as facetas da atividade corporativa, desde a produção até as relações pessoais.

Agora, a chamada flexibilidade dinâmica permite sistemas de produção personalizada reprogramável para atenderem "... as variações do mercado (flexibilidade do produto) e das transformações tecnológicas (flexibilidade do processo)" ( Castells, 1999, p. 176). Nessa direção, Harvey (1992, p. 148) afirma que a flexibilidade teve a virtude de superar a rigidez do sistema fordista e de atender a uma gama bem mais ampla de necessidades do mercado, incluindo as rapidamente cambiáveis.

Assim, rompe-se, no processo de produção, com o princípio da "estandardização", o que resulta numa reestruturação completa da economia. A própria Benetton, considerada o epítome da produção flexível, não conseguiu vencer a competição quanto ao período de adaptabilidade à demanda do mercado. Conforme Castells (1999, p. 464), foi superada em 1995 pela concorrente norte-americana Gap, principalmente devido a sua incapacidade de acompanhar o ritmo da Gap na apresentação de modelos novos, segundo a evolução do gosto do consumidor - a cada dois meses, em comparação com as duas vezes por ano da Benetton. Isso nos mostra que a flexibilidade superou a rigidez também no gosto, fazendo com que "as economias de escala buscadas na produção fordista de massa fossem substituídas por uma crescente capacidade de manufatura de uma variedade de bens e preços baixos em pequenos lotes ... " (Harvey, 1992, p. 148).

Com relação ao consumo, a acumulação flexível diz respeito ao tempo de giro, ou seja, à meia vida de um produto. O turn-over, na acumulação flexível, é muito veloz; os produtos se mantêm por um tempo muito reduzido se comparados à duração dos mesmos na era fordista. Atualmente,  as particularidades nacionais e sociais, potencializadoras de consumo e criação, exigem, juntamente com uma produção diversificada,  altas taxas de inovação e renovação científico-tecnológica em prazos muito curtos. A produção de eventos é um exemplo da necessidade de acelerar o tempo de giro no consumo, superando, muitas vezes, a produção de bens duráveis.

Esta flexibilidade na produção e no consumo é viável, em certa medida, devido à evidência das empresas pequenas e médias, as quais apresentam maior flexibilidade para a inovação. O declínio da empresa de grande porte como modelo organizacional de integração vertical e  a entrada no cenário econômico global das pequenas e médias, principalmente através do uso crescente da subcontratação, permitem maiores ganhos de produtividade e eficiência devido as suas possibilidades de flexibilização.

Essa transformação na organização industrial, além de oportunizar a formação de pequenos negócios, também "... permite que sistemas mais antigos de trabalho doméstico, artesanal, familiar e paternalista revivam e floresçam, mas agora como peças centrais e não apêndices do sistema produtivo ... " (Harvey, 1992, p. 145). Mas sobre esse ponto, é necessário observar que as grandes empresas, na atual economia globalizada, constituem a parte decisiva da estrutura do poder econômico. A crise portanto diz respeito "...ao modelo corporativo tradicional baseado na integração  vertical e no gerenciamento funcional hierárquico: o sistema de funcionários e linha de rígida divisão técnica e social do trabalho dentro da empresa" (Castells, 1999, p. 178).

No lugar desse modelo, surgem novas formas organizacionais, cujo ponto forte são os novos métodos de gerenciamento, principalmente os japoneses. Expressos no que se chama "toyotismo", os novos métodos e técnicas apresentam vários elementos para a organização da produção[4]; porém a questão que saliento aqui, refere-se às implicações desses métodos em novas formas de organização do trabalho. Sobre isto, Castells (1999, p. 180) é claro quando afirma que, "de fato, a verdadeira natureza distintiva do toyotismo em relação ao fordismo não diz respeito às relações entre as empresas, mas entre os gerentes e os trabalhadores".

A nova organização do processo de trabalho, no que tange à relação entre gerentes e empregados, rompe com a rigidez do princípio da centralização no qual, existe uma profunda divisão entre quem pensa e quem executa. Essa marca do fordismo fundamentava relações sociais hierárquicas nas quais, gerência, concepção, controle e execução ocupavam um lugar determinado, gerando-se com isso uma desabilitação dentro do processo de trabalho.

No sistema de acumulação fordista, não interessava conhecimento[5], criatividade, tomada de decisão e comunicação por parte do trabalhador, o qual tinha sua responsabilidade reduzida ou anulada, e as complexas hierarquias gerenciais (no que tange aos processos de decisão) tinham por princípio o comando autoritário e, num ambiente administrativo de formalização excessiva, impediam de ser comunicados pelos trabalhadores os conhecimentos advindos da experiência.

A acumulação flexível, no que se refere à organização do trabalho, diz respeito a uma organização horizontal (em oposição àquela vertical fordista), na qual surge a ênfase na co-responsabilidade dos trabalhadores, cresce a importância da comunicação e os conhecimentos podem ser comunicados entre os trabalhadores e entre os trabalhadores e a empresa; também a dedicação a uma única tarefa é substituída pela realização de múltiplas tarefas.

Este novo tipo de relação traz também  novos tipos de exigência no que tange às competências dos trabalhadores. Em oposição à rigidez fordista, a flexibilidade pós-moderna no trabalho exige habilidades para: analisar, interpretar, criar, tomar iniciativas e decisões, corrigir instruções, trabalhar em equipe, comunicar-se, aprender constantemente, trabalhar em vários pontos da produção (polivalência e formação técnica geral).

É indispensável estabelecer aqui, a relação da acumulação flexível nos processos de produção e do trabalho com a questão da tecnologia. Primeiramente, cabe ressaltar que essas mudanças da acumulação flexível não foram conseqüência direta e automática das inovações tecnológicas e ocorreram, independentemente dessas, como resposta a todo um contexto que se encontrava passando por grandes alterações. Porém, se as tranformações organizacionais não foram determinadas, foram superintensificadas pela revolução tecnológica, a qual foi decisiva na troca do capitalismo industrial para uma concepção pós-industrial das relações econômicas.

Assim, a flexibilidade está associada ao amadurecimento da revolução das tecnologias de informação na década de 90 ou, mais especificamente, ao que Castells (1999) chama de "novo paradigma informacional", que diferencia as tecnologias microeletrônicas e informáticas das anteriores, pelo predomínio da informação sobre a energia, e cuja imagem de representação é dada pelo computador[6], ao invés de turbinas, silos ou os chaminés das fábricas.

A microeletrônica constitui o novo modelo paradigmático que se estabelece a partir das atuais inovações tecnológicas e configura uma rede complexa que vai além das transformações de caráter técnico e afeta todos os aspectos de nossos sistema cultural como, por exemplo as formas de operação e regulação dos mercados (de produto, de trabalho e de capital financeiro), nacional e internacionalmente; a organização do sistema bancário e de créditos; as formas de organização dos trabalhadores e de outros grupos sociais; as questões educacionais; a divisão internacional da produção e dos meios de regulamentação do comércio entre os países, etc. Esse novo paradigma tecnoeconômico somado ao fácil acesso da informação, através do binômio trabalho-tecnologia, está organizando "a mais nova divisão internacional do trabalho" (Castells, 1999, p.161).

 Em um contexto de globalização, a tecnologia é penetrante e invasora, rápida e miniaturizada. O desenvolvimento e a difusão abrangente da tecnologia da informação é hoje a principal fonte de transmissão e aceleração do progresso técnico. Saliento que, nesse processo, a acumulação de capital significa, cada vez mais, acumulação de informação e nisso os meios de produção, como capital constante fixo (hardware) e capital constante circulante (software), são informacionalizados ; o capital variável (poder de trabalho e mercadorias produzidos) também assume, cada vez mais e predominantemente, conteúdo informacional. Isso faz com que a acumulação de informação seja uma força orientadora do capitalismo multinacional/globalizado, assim como a acumulação do capital industrial foi da fase capitalista anterior.

Quero destacar que há um consenso entre os autores no que tange ao reconhecimento do impacto e à importância da tecnologia da informação na atual fase do capitalismo, os quais a consideram uma tecnologia revolucionária, que está modificando, para melhor ou para pior, nosso estilo de vida, como aconteceu com progressos tecnológicos anteriores. Portanto, reafirmo a idéia de que o capitalismo monopolista pode ser considerado um "capitalismo de informação", devido ao lugar central ocupado pelas atividades de informação.

Com esse novo paradigma, novas ocupações estão sendo criadas, novas oportunidades se abrem, novas habilidades estão sendo demandadas (o que exige uma revisão na questão da qualificação da força de trabalho), surgindo, assim, uma diversidade de carreiras relacionadas com a informação, o que muda a natureza das ocupações e traz a idéia do surgimento de uma nova classe social, a dos trabalhadores do conhecimento. Como conseqüência, somos desafiados a repensar as formas de construção das experiências sociais e da identidade das pessoas, dos grupos e das classes.

As novas tecnologias informáticas favorecem o surgimento de unidades de produção flexíveis e dinâmicas em lugar da tradicional linha de produção padronizada do sistema taylor-fordista. A informação codificada possibilita a automatização de tarefas rotineiras e repetitivas e, nesse processo "... a linha de montagem taylorista se torna uma relíquia histórica ..." (Castells, 1999, p. 264), pois o trabalho  com informação é, ele mesmo,  a atividade de processar e comunicar cumulativamente dados, inclusive à máquina que realizará a transformação material final.

Na economia globalizada, os trabalhadores estão cada vez mais envolvidos nas chamadas "atividades transacionais", de troca e de relacionamento, com recursos imateriais, abstratos. No exercício de capacidades simbólicas, a matéria-prima por excelência é a informação, a qual torna-se forma constitutiva de um processo de decisão de complexidade crescente, caracterizando-se uma sociedade da informação e da comunicação generalizadas[7].

A tecnologia da informação, ao influenciar na reestruturação dos processos produtivo e do trabalho, fornecendo a infra-estrutura para a flexibilidade dos mesmos, também trouxe profundas mudanças nas concepções de tempo e de espaço. Ao contrário da fábrica fordista com uma produção que se desenvolvia num espaço demarcado, com uma concentração de operários trabalhando num ritmo de tempo bem determinado, as novas tecnologias, aliadas a maiores possibilidades de transportes e subcontratações, acabaram com esta ordem espaçotemporal.

Gerou-se um novo movimento, chamado por Harvey (1992, p. 140) de "compressão do espaço-tempo", segundo o qual, os horizontes temporais da tomada de decisão se estreitam, ao mesmo tempo que a comunicação via satélite possibilita a difusão imediata dessas decisões num espaço amplo e variado, reforçando a administração descentralizadora. Dessa forma, os serviços avançados (caracterizados pela geração de conhecimentos e pelos fluxos de informação) centrais, hoje em todos os processos econômicos, podem ser simultaneamente, dispersos e concentrados.

A comunicação em tempo real, propiciada pelas novas tecnologias da informação, favorece o acesso quase imediato aos valores de uso criados pelos geradores de informação e também possibilita descentralizar as tarefas e, ao mesmo tempo, coordená-las numa rede interativa independente da distância espacial, ou seja, isto pode ocorrer ente países, entre espaços localizados numa mesma cidade, ou até entre os andares de um mesmo prédio.

Temos, portanto, uma nova lógica industrial, ou aquilo que Castells (1999, p. 412) chama de "novo espaço industrial", que se caracteriza pela separação do processo produtivo em diferentes localizações e, ao mesmo tempo, sua reintegração possibilitada pelas tecnologias da informação. A descentralização do sistema produtivo, através de unidades de produção e pesquisa integradas, que podem ser deslocados geograficamente para qualquer lugar do mundo, forma os grandes espaços (econômico-tecnológicos, cultural-produtivos e socioconsumidores) concretizados por meio da criação de cadeias regionais de produção e de mercados de consumo transfronteiras, gerando-se uma forma nova de integração entre o local e o global; este novo espaço, é um "espaço de fluxos" (Castells, 1999) - fluxos de capital, de mão-de-obra, de bens e serviços, de informação, de imagem, de poder - os quais redefinem as hierarquias territoriais e, através de sua dinâmica, estruturam também o tempo em lógicas diferentes.

Esta flexibilidade do tempo e do espaço, da produção e do trabalho, trazem profundas transformações que dizem respeito ao ritmo de trabalho, às relações sociais e humanas, ao princípio de autoridade e hierarquia, bem como às relações do cidadão com a burocracia de Estado; conseqüentemente também altera os regimes e contratos de trabalho, possibilitando o surgimento de uma grande diversidade de práticas de trabalho assalariado.

De um lado, temos a flexibilidade funcional (expressa tanto no desempenho das tarefas como na mobilidade geográfica)  que acena com segurança, perspectivas de promoção e outros benefícios, porém exige as vantagens dinâmicas como capacitação científica, desenvolvimento tecnológico, capacidade produtiva e inovadora, adaptação, flexibilidade às mudanças da sociedade pós-moderna, domínio do conhecimento e das informações e, por isso, destina-se a um pequeno grupo de indivíduos que representam os empregados em tempo integral.

De outro, os arranjos de emprego flexível, manifestos nos contratos de curto prazo[8], trabalho em tempo parcial, empregados casuais e os aumentos do trabalho temporário e de subcontratação. Esta é a flexibilidade numérica, a qual está crescendo significativamente,  tem como resultado uma alta taxa de rotatividade e destina-se a trabalhadores pouco qualificados.

Levando-se em consideração o conjunto dessas transformações, concordo com Castells (1999, p. 288) que "... no geral, a forma tradicional de trabalho com base no emprego de horário integral, projetos profissionais bem-delineados e um padrão de carreira ao longo da vida estão sendo extintos de forma lenta, mas indiscutível ..." . 

No que tange à questão do tempo, o conceito de "tempo cronológico", típico do capitalismo fordista, com a repetição da rotina diária, marcado pelo minucioso controle do tempo de trabalho efetuado por Taylor[9], pelo cronômetro na linha de montagem (que permitiu determinar cientificamente o tempo de base de fabricação de uma peça) pelo relógio de ponto, linear e previsível, está sendo substituído por um "tempo intemporal"[10], relativo, de acordo  com os contextos sociais.

Esse novo tempo, sob o aspecto econômico, dá ampla flexibilidade para sua administração por parte daqueles que trabalham libertos das amarras de um lugar específico, permite um sistema de gerenciamento flexível da produção em rede, e "... é gerenciado como recurso, não da maneira cronológica linear da produção em massa, mas como um fator diferencial em relação à temporalidade de outras empresas, redes, processos ou produtos ..." (Castells, 1999, p. 466). Nessa temporalidade flexível, o capital circula livre e globalmente.

As novas tecnologias da informação possibilitam o deslocamento dos fluxos financeiros em escala global e em tempo real; a rapidez nas tomadas de decisão é crucial para os ganhos, num movimento que frequentemente gera turbulências no mercado financeiro, deixando os Estados em alerta para o perigo de graves crises econômicas. O volume de movimentos de capitais especulativos está estimado em mais de um trilhão de dólares, volume este que pode "volatilizar" repentinamente, com alto risco para os países-hospedeiros.

Essa flexibilidade na circulação global de capital é vista por Harvey (1992) como um desenvolvimento da maior importância na caracterização da dimensão econômica da globalização, pois evidencia, mais do que em qualquer outro lugar, a nova organização do capitalismo através da dispersão, da mobilidade geográfica e das respostas flexíveis, possibilitadas pela inovação tecnológica.

A completa reorganização do sistema financeiro global, tendo como poder coordenador o capital financeiro (hoje mais poderoso que o conjunto do capital industrial), é uma marca da acumulação flexível e  "... a  capacidade de dirigir os fluxos de capital para lá e para cá, - resultado do gerenciamento eletrônico dos mercados de capitais globais -,  quase parece desprezar as restrições de tempo e de espaço ..." (Harvey, 1992, p. 152), invalidando o conceito tradicional de tempo com tendências cada vez maiores de mudanças do tangível para o virtual, do tempo reversível para um tempo de irreversibilidades, enfim, do tempo da simplicidade para o tempo da complexidade.

Esses aspectos dizem respeito à globalização sob o viés econômico, a qual viabilizada pela flexibilidade do tempoespaço na produção e no trabalho (e esta, por sua vez, dinamizada pela inserção das tecnologias da informação) caracteriza-se pela internacionalização dos processos econômicos (produção e consumo); pelo aparecimento conseqüente de um mercado globalizado; pela interdependência econômica entre países; pelo poder dos atores econômicos, e pela desterritorialização (uma das forças básicas do mundo pós-moderno, pois é um modo necessário de articulação no contexto de uma sociedade globalizada) de bens,  trabalhadores, dinheiro, informações e imagens,  expressa nos fluxos culturais globais.

A intensidade destes fluxos globais têm dado origem às chamadas “terceiras culturas”, que são transnacionais e mediadoras entre as várias culturas nacionais. Além de romper com as noções de homogeneidade cultural, ampliando tanto os contatos culturais como as definições conflitantes do mundo, os fluxos estenderam o espaço da organização da produção, do trabalho e do consumo a um espaço global e em rede.

Se os espaços local, nacional e internacional eram sedimentados no capitalismo fordista, no globalizado, os mesmos interagem, formando o espaço-mundo, ou, o espaço-global, por onde passam velozes os fluxos culturais globais,  com uma radical redefinição da territorialidade econômica e uma constante dinamização, não só dos novos circuitos econômicos, como também dos novos circuitos políticos, sociais e culturais (isto faz da globalização um processo multidimensional) e que, através da desterritorialização total nos coloca o problema da inadequação das fronteiras tradicionais diante da realidade atual, o que amplia os horizontes do conhecimento, da informação, da comunicação e da criatividade.

 

 

3.  UM PROCESSO CONTRADITÓRIO: as problemáticas

 

A acumulação flexível é geradora de grandes mudanças nos processos de produção, trabalho, consumo e tecnologia, que sinalizam um novo paradigma tecnoeconômico que, somado ao novo papel do Estado, diz respeito às transformações da economia política que definem a etapa multinacional/tardia/globalizada do capitalismo; uma etapa distinta das anteriores, que corresponde a um contexto específico (no qual emerge uma nova noção de prática de produção, do trabalho e da empresa e conseqüentemente do próprio homem no interior destas relações) e a uma sociedade-cultura diferenciada, que é a pós-moderna.

Estas transformações da acumulação flexível colocam novamente os debates sobre questões como produtividade/alienação, especialização/multiprofissionalização (e ainda dentro da multiprofissionalização os pólos: trabalhador multifuncional x trabalhador multiqualificado[11]) e controle administrativo/autonomia dos trabalhadores.

No que tange aos regimes e contratos de trabalho, a acumulação flexível é marcada pela efemeridade. Os arranjos de emprego flexível impedem a geração de laços duradouros do indivíduo com o trabalho e com o ambiente de trabalho. As unidades de produção flexíveis no espaço deslocam-se rapidamente para lugares que ofereçam possibilidades comerciais mais lucrativas; levam os postos de trabalho, mas deixam a mão-de-obra, de forma que à insegurança é acrescentada uma dimensão geográfica vital pelo impulso de realocação do capital. As habilidades adquiridas em longos tempos de formação, quando respondem às exigências é por um prazo muito curto, e as especialidades tornam-se obsoletas dia após dia.

O sentido de "trabalho flexível" ou de "flexibilização no trabalho" está por demais associado ao "trabalho temporário", e este, à flexibilidade numérica, a qual, com sua alta taxa de rotatividade e levando-se em consideração os efeitos agregados, significa falta de concessão dos direitos sociais trabalhistas, baixos níveis salariais e insegurança no emprego. Atendendo à ordem de "racionalizar", empregos são cortados, locais de produção são fechados, número de funcionários acentuadamente reduzidos. Usando as metáforas preferidas de Bauman (1998) para a vida pós-moderna e para contextos de globalização, posso dizer que a acumulação flexível, sob esta ótica, diminui consideravelmente a possibilidade de ser turista e aumenta, assustadoramente, a de ser vagabundo[12].

Concordo com alguns autores, que os contratos temporários representam, na verdade, o chamado "desemprego disfarçado" e "... de modo algum parecem positivos do ponto de vista da população trabalhadora como um todo (...) pois visam empregar cada vez mais uma força de trabalho que entra facilmente e é demitida sem custos quando as coisas ficam ruins ..." (Harvey, 1992, p. 144).

Isso deixa claro que as empresas, na economia globalizada, usam o princípio da flexibilidade para aumentar as possibilidades de demissão, que passa a ser a qualquer momento e quantos quiserem, desde que isso seja benéfico para os empregadores. Dessa forma, a ampliação das capacidades empresariais, no que se refere à flexibilização da produção, não apresenta correspondência à capacidade de absorção de trabalhadores.

Nesse processo, o interesse dos trabalhadores é anulado e, por serem temporários, não lhes é permitido qualquer oportunidade de profissionalização, configurando isto uma privação massificada da profissionalização, sendo que os trabalhadores precisam estar preparados para, ao longo da vida profissional, passarem por diversas etapas de desabilitação-reabilitação. 

Apesar dos trabalhadores qualificados (e os quais, na maioria das vezes, têm um contrato em tempo integral) também serem atingidos pelos aspectos negativos da acumulação flexível (seu período de vida profissional está sendo reduzido), não posso negar que os mesmos atingem bem mais os trabalhadores não-qualificados. Os qualificados, mesmo com contratos de meio-expediente, são mais bem pagos e mais estáveis, e seu tempo restante (ou muitas vezes associado a um contrato de horário integral), conforme destaca Castells (1999), é usado em serviços de consultoria, o que, além de melhorar ainda mais sua renda, também aumenta o poder de barganha.

Os arranjos de emprego flexível, como expressão do regime de acumulação flexível, opõem-se à antiga centralidade econômica da produção em série e à organização centralizada do capital, substituindo os contratos de trabalho permanente e em período integral pelos de curto prazo; na maioria das vezes, são utilizados em função das empresas e de períodos de tempo e estão relacionados com a questão da competitividade a curto prazo.

Castells (1999, p. 470) ressalta que, "... sob esses novos esquemas, o tempo de serviço poderá perder sua centralidade tradicional ao longo do ciclo de vida dos indivíduos ..."  no capitalismo globalizado, pois a economia se organiza cada vez mais tendo por base o curto prazo e a flexibilidade, e "a empresa é afetada por temporalidades múltiplas e divergentes", a tendência predominante é de se diversificar e encurtar o tempo de trabalho de acordo com as ocupações e as características dos trabalhadores.

Uma outra conseqüência considerável da acumulação flexível nos regimes e contratos de trabalho diz respeito à organização da classe trabalhadora. Os sindicatos, por exemplo  (às vezes, mesmo colaborando com as técnicas fordistas de produção e estratégias de aumento da produtividade), desenvolveram um considerável poder de negociação nas indústrias de produção em massa e, as parcelas "fortemente sindicalizadas", "... fortalecia sua capacidade de resistir à perda de habilidades, ao autoritarismo, à hierarquia, e à perda de controle no local de trabalho ..." (Harvey, 1992, p. 132).

Porém, o poder dos sindicatos (uma das colunas políticas do regime fordista), a organização e a luta coletivas são desconstruídos pelos esquemas de contratos de trabalho parciais e temporários, os quais impedem o desenvolvimento de ações políticas organizadas. A heterogeneidade da força de trabalho torna-se exacerbada e, com isso, a articulação de um projeto político baseado na promoção dos interesses de uma “classe trabalhadora” determinada e muito menos unificada, torna-se  difícil.

Esta questão se torna mais evidente, associada à flexibilidade do tempo e do espaço da produção e do trabalho. As possibilidades do trabalho em casa, de uma administração autônoma do tempo por parte do trabalhador, bem como a emergência de plataformas móveis de produção trazem consigo o fim da concentração dos trabalhadores em um tempoespaço determinado. Castells (1999) caracteriza isso como "a individualização do trabalho no processo de trabalho" (p. 285), e cuja conseqüência é, de um lado, o enfraquecimento da organização dos trabalhadores, com a destruição de comunidades tradicionais como base de poder na luta de classes, de outro, o fortalecimento do poder de controle dos empregadores.

Ao contrário deste processo de desterritorialização da força de trabalho, a concentração de operários numa fábrica não apenas favorecia as estratégias e ações dos sindicatos (Gramsci; Castells; Harvey), como também "... socializava-os de uma nova maneira, criava uma solidariedade operária, fazia-os inventar novas formas de organização ..." (Castoriadis, 1992, p. 127).

Na medida em que a acumulação flexível (sob o viés das negatividades) é associada ao desemprego, ao fim dos empregos "vitalícios", ao deslocamento contínuo de trabalhadores no tempo e no espaço, ao declínio dos sindicatos, à queda de salários e à rápida destruição e reconstrução de habilidades,  concordo com Bauman (1998), quando o mesmo,  referindo-se sobre a constante incerteza advinda do trabalho flexível, diz que "...sobra pouco espaço para a vida vivida como um projeto, para planejamento de longo prazo e esperanças de longo alcance. Seja grato pelo pão que come hoje e não cogite demasiado do futuro...” (p. 50).

Se todo o processo da acumulação flexível só se desenvolve mediante altos níveis de fluxo de informação e aquisição de conhecimento (ou processamento de informação), ou dito de outra forma, se a “acumulação de informação é a força orientadora do capitalismo globalizado”, então “... as oportunidades de vida são uma questão de acesso, não ao capital produtivo ou às estruturas da produção, mas, em vez disso, do acesso e do lugar nas novas estruturas de informação e comunicação ...” (Lash, 1997, p. 147). Com base nisso é correto afirmar então que o lugar que se ocupa no sistema de produção contemporâneo é definido pela inclusão ou exclusão das estruturas de informação.

Incluídas nestas estruturas estão a nova classe média[13] (nesta classe, destaco um grande número de engenheiros, arquitetos, designers e consultores) e a classe trabalhadora reflexiva; estes são, portanto os “vencedores” do capitalismo flexível e global. Porém, há uma terceira classe, aquela rebaixada do proletariado clássico do capitalismo moderno, ou seja, “... o terço inferior e em grande parte excluído das “sociedades de dois terços” da nossa virada do século XXI ... ” (p.158), e que faz jus ao nome de “subclasse”[14], ou, “classe além das classes” (Bauman). Esta é a “perdedora” da flexibilidade e, segundo Bauman (1998, p. 59), não dá mais para dizer que ela constitua o exército de reserva de mão-de-obra, pois ela efetivamente é “população redundante”.

A exclusão das estruturas de informação e comunicação transforma-se em exclusão da cidadania no momento em que a sociedade civil se torna cada vez mais presente nestas estruturas; no momento em que os direitos de cidadania do welfare state foram transformados em direitos de acesso àquelas estruturas; no momento em que a cidadania social transforma-se em cidadania cultural.

Neste processo, aquele “terço inferior” despossuído dos bens sociais básicos torna-se incapaz de exercitar seu potencial como cidadãos ativos, e a democracia configura-se como um domínio privilegiado daqueles que têm acesso tanto aos bens sociais básicos, como às estruturas globais e pós-modernas de informação e comunicação. Encontramos os efeitos disto no crescente desemprego e desigualdade de renda, no emprego de uma mão-de-obra que em decorrência da pouca qualificação recebe salários marginais e com jornadas de trabalho intensificadas, e na marginalização social que já se tornou cenário comum das cidades pós-modernas.

Por fim, "há sempre o Estado", o qual, acompanhando as mudanças da acumulação flexível também altera o seu papel. Se anteriormente o Estado assumiu novos papéis e poderes institucionais, expressos no Keynesianismo (e, aliando-se ao fordismo possibilitou a segunda etapa da expansão capitalista - o capitalismo monopolista), através dos quais buscava remediar as desigualdades e combater a exclusão das minorias com gastos de assistência médica, seguridade social, habitação, educação, etc. (o que representava um forte complemento ao salário social), na etapa globalizada do capital este "welfare state" entrou em crise e tornou-se objeto de um profundo reexame que levou a privatizações e à desregulamentação dos mercados.

Abandonando as políticas redistributivas e as ações legais voltadas para o bem-estar social, o Estado agora é

 

"(...) agente de incorporação quando as instituições econômicas precisam ser reconstruídas (...); coordenador quando as redes localizadas no território precisam do apoio inicial dos governos locais e regionais para gerar efeitos sinergéticos que estabelecerão meios de inovação; e um mensageiro com determinada missão quando direciona uma economia nacional ou a ordem econômica mundial para um novo curso histórico, planejado na tecnologia, mas não realizado na prática empresarial (...)" (Castells, 1999, p. 214).

 

Esses elementos estão profundamente relacionados com o conservadorismo neoliberal que, ao dizer que a eficiência se identifica com o mercado, e  as falhas do mercado seriam menores que as falhas do Estado, propõe o "Estado Mínimo", incentiva os círculos de excelência, e seu modelo de crescimento exclui parcelas crescentes da população. Costuma-se dizer que é um Estado com capacidade de intervenção reduzida[15]. Reduzida na verdade, no que tange ao social, quando o Estado neoliberal abandona os benefícios de natureza coletiva próprios do welfare state e redirecionada sob o aspecto da economia, sustentando e legitimando políticas de fortalecimento do capital, tanto no espaço fabril como no conjunto da sociedade.

Toda intervenção nesse sentido tem como objetivo a preservação e defesa do livre mercado, e a reorientação desta intervenção busca a viabilização do regime de acumulação flexível em toda a sua dimensão (flexibilidade: temporal-espacial, produtiva, financeira e de comercialização, dos contratos de trabalho e de consumo).

Porém, a relação entre o Estado e o capital transnacional em condições de globalização não ocorre de forma tão fácil como no fordismo. Segundo Harvey (1992), o Estado encontra-se numa posição muito problemática, pois no interesse nacional deve, ao mesmo tempo, regular as atividades do capital corporativo, atrair o capital financeiro transnacional e global e conter a fuga de capitais.

 

 

4.  IDÉIAS FINAIS

 

Delimitando minha análise sob a dimensão econômica, e nesta privilegiando o tema da acumulação flexível de capitais, concluo afirmando que esse conjunto de transformações associado ao dinamismo tecnológico e às constantes inovações no mundo da produção, foi responsável por uma ruptura interna no sistema, gerando este novo e desconcertante tempoespaço globalizado. Também afirmo que essa é a nova situação histórica e social do final do século XX, e não apenas uma idéia, teoria ou visão da contemporaneidade. Um contexto radicalmente  diferente daqueles estruturados em outros momentos do capitalismo.

Destaco que a concretude desta nova etapa pode ser justificada a partir da acumulação flexível com sua desconcentração industrial, com a formação de espaços onde se processa uma produção globalizada, com novas formas de organização da força de trabalho, com a financeirização da economia, com um novo padrão de consumo, enfim, com a formação de um mercado mundial unificado. Reafirmo, embasado nas análises de Fredric Jameson sobre o capitalismo tardio, que são todos processos interligados, os quais, na formação do mundo globalizado constituem novas morfologias e se dá, conforme Manuel Castells, a superposição de uma rede de fluxos à rede de lugares.

Enfatizo que a globalização, sob a ótica da acumulação flexível, inclui uma profusão de relações contingentes as quais são negativas para a segurança pessoal, para a solidariedade social e para a sociedade. As problemáticas sociais (fome, falta de habitação, crime, violência, decadência dos espaços públicos, de segurança e de qualidade de vida, etc.) acentuam-se a níveis quase insuportáveis, e cotidinamente aumenta o número dos que ficam “à deriva”.

 A exploração dos trabalhadores, até em termos de estratégias absolutas de extração de mais-valia, é mantida no capitalismo multinacional/globalizado. Assim, os trabalhadores têm associado uma maior carga horária com redução de salário e, conseqüentemente, de seu padrão de vida. Também no mundo do trabalho a flexibilidade tem sido responsável por inúmeras conseqüências negativas no que tange aos regimes e contratos de trabalho. Associada a contrato temporário, a flexibilidade tem gerado demissões e contratações que não observam os direitos sociais dos trabalhadores.

No que diz respeito à desterritorialização da produção, possibilitada pela flexibilidade no processo de globalização, entendo como uma desterritorialização estratégica, ou seja, é movida pela procura de lucro. Sobre isso, Harvey (1992) mostra que a transferência do capital corporativo de regiões de altos salários para regiões de baixos salários tem criado, na verdade, o que ele chama de “fordismo periférico” , pois, na busca incessante do lucro, sistemas padronizados de produção da época fordista foram transferidos para a periferia. O capital como concretização da flexibilidade, aparece e desaparece nos espaços que lhe convier,  diferente da condição moderna onde o mesmo ficava preso nos pesados prédios e maquinarias das fábricas fordistas.

A essa questão, vinculo a problemática do Estado, que permite a livre mobilidade de capitais e mercadorias, com a derrubada de restrições ao comércio e a livre circulação do capital financeiro. Neste contexto, a política econômica nacional tem por objetivo defender a moeda, assegurar a estabilidade dos preços e garantir o cumprimento dos contratos e da livre concorrência. Na nova economia globalizada, estas políticas dos Estados estão direcionadas exclusivamente para a competitividade empresarial e desconectadas de "... estratégias de intervenção positiva, tais como políticas tecnológicas e educacionais que aumentem os recursos e talentos do país no âmbito da produção informacional" (Castells, 1999, p. 108).

Saliento que uma compreensão crítica da globalização exige que as dimensões sociocultural, econômica, política, filosófica e também psicológica (das quais resultam as "formas pós-modernas de relação com o mundo") sejam tratadas de forma integrativa, isto é, as mudanças que caracterizam a globalização devem ser analisadas em conjunto. Segundo Kumar (1997), o núcleo destas mudanças "talvez" seja a acumulação flexível ou então, pelo contrário, as mudanças culturais e políticas são nucleares, pressionando as econômicas; ou ainda, "talvez as conexões causais ocorram nos dois sentidos" (p.77).

O importante é que nesse conjunto as conexões causais se dão de forma recíproca e não de forma determinista. Assim, as mudanças, no mundo do trabalho, da família, da cultura e da política, relacionam-se mutuamente, concretizando a globalização, a diferença da mesma como a nova etapa do capitalismo e, portanto a intensidade dessas mudanças com suas contradições produtivas e não-produtivas, com seus limites e suas possibilidades.

Esta nova ordem/desordem global através da complexidade de suas novas relações, processos e estruturas, coloca desafios de todas as ordens para todas as ciências, mas acredito que o principal deles seja aquele colocado-nos cotidianamente: o desafio do exercício da cidadania.

 

 


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NOTAS


 

[1] Marx e Engels no Manifesto Comunista, analisando as contradições provenientes das transformações do mundo produtivo, destacavam os impactos das revoluções que estavam sendo imprimidas pela burguesia e as profundas mudanças da modernidade em relação à sociedade feudal.

 

[2] Para Jameson (1996), o qualitativo “tardio” transmite o sentido de que as coisas são diferentes, que passamos por transformações decisivas e mais abrangentes e difusas se comparadas à etapa anterior do capitalismo.

 

[3] “Os Princípios da Administração Científica” de F.W.Taylor – influente tratado que descrevia como a produtividade do trabalho podia ser radicalmente aumentada através da decomposição de cada processo de trabalho em movimentos componentes e da organização de tarefas de trabalho fragmentadas segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do movimento” (Harvey, 1992, p. 121)

 

[4] Exemplo dos mesmos (Harvey, 1992; Castells, 1999, e outros) é o sistema de gerenciamento de estoques "just-in-time", que elimina ou reduz substancialmente os estoques, e o controle de qualidade total dos produtos ao longo do processo produtivo.

 

[5] Jameson (1996) critica a exigência de conhecimento no capitalismo flexível, pois para ele trata-se, na verdade, de um conhecimento não científico, que se preocupa em saber apenas como o sistema funciona. (cfme pg.352).

 

[6] Sobre o computador, como ponto culminante da revolução em curso, há um acordo geral entre os autores, pois, se comparado inclusive com as outras mídias, é o único capaz de desenvolver funções automaticamente e sem a interação do homem.

 

[7] Zbigniew Brzezinski chama essa sociedade de "sociedade tecnotrônica", que é aquela "sociedade cuja forma é determinada no plano cultural, psicológico, social e econômico pela influência da tecnologia e da eletrônica - muito particularmente no domínio dos computadores e das comunicações" (In: Mattelart, 1994, p. 154).

 

[8] Nas análises de Paul Virillio, esses contratos de trabalho de curto prazo vão produzir migrações interiores, incompatíveis com a fixação domiciliar dos trabalhadores ("nomadismo interior") e também migrações entre as nações.

 

[9] "A mística do controle do tempo, acompanhada pela mística da indústria pesada, é também a mística do engenheiro Frederick Winslow Taylor (1856-1915), que começa, nos anos 1880, a perseguir a "ociosidade sistemática" dos operários e aplicar seu "sistema científico" de organização do trabalho nas grandes fábricas de aço ..." (Mattelart, 1994, p. 35-36).

 

[10] Expressão usada  por Castells (1999, p. 489) "para designar a temporalidade dominante de nossa sociedade, ocorre quando as características de um dado contexto, ou seja, o paradigma informacional e a sociedade em rede causam confusão sistêmica na ordem seqüencial dos fenômenos sucedidos naquele contexto".

 

[11] Trabalhador multiprofissional- aquele que opera mais de uma máquina com características semelhantes, o que pouco lhe acrescenta em termos de desenvolvimento e qualificação profissional; e trabalhador multiqualificado, aquele que desenvolve e incorpora diferentes habilidades e repertórios profissionais (segundo Salerno, IN: Ferreti e outros (1994, p. 59)).

 

[12] Para Bauman, os turistas são os heróis, e os vagabundos, as vítimas da pós-modernidade. Ele também sugere que "... a oposição entre os turistas e os vagabundos é a maior, a principal divisão da sociedade pós-moderna ..." (1998, p. 106-120)

 

[13] “criada à medida que a produção de bens informacionais vai se tornando o novo princípio fundamental do acúmulo de capital” (Lash, 1997, p. 157)

 

[14] Também chamada de “nova classe baixa” é estruturalmente inferior à classe trabalhadora e resultou da mudança da produção industrial para a informacional.

 

[15] Sobre o intervencionismo estatal, Harvey (1992) salienta que o mesmo não diminuiu de modo geral, pois o Estado mantém um alto grau de intervenção no que tange ao controle do trabalho.

 

 

 


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