Stuart Hall - O Global, o Local e o Retorno da Etnia
("Identidade Cultural na Pós-modernidade" - p. 77-89)
cap. 5) O Global, o Local e o Retorno da Etnia
As identidades nacionais estão sendo "homogeneizadas"? A homogeneização cultural é o grito angustiado daqueles/as que estão convencidos/as de que a globalização ameaça solapar as identidades e a "unidade" das culturas nacionais. Entretanto, como visão do futuro das identidades num mundo pós-moderno, este quadro, da forma como é colocado, é muito simplista, exagerado e unilateral.
Pode-se considerar, no mínimo, três qualificações ou contratendências principais. A primeira vem do argumento de Kevin Robin e da observação de que, ao lado da tendência em direção à homogeneização global, há também uma fascinação com a diferença e com a mercantilização e da "alteridade". Há, juntamente com o impacto do "global", um novo interesse pelo "local". A globalização (na forma da especialização flexível e da estratégia de criação de "nichos" de mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao invés de pensar no global como "substituindo" o local seria mais acurado pensar numa nova articulação entre "o global" e o "local". Este "local" não deve, naturalmente, ser confundido com velhas identidades, firmemente enraizadas em localidades bem definidas. Em vez disso, ele atua no interior da lógica da globalização. Entretanto, parece improvável que a globalização vá simplesmente destruir as identidades nacionais. É mais provável que ela vá produzir, simultaneamente, 'novas' identificações "globais" e novas identificações "locais".
A segunda qualificação relativamente ao argumento sobre a homogeneização global das identidades é que a globalização é muito desigualmente distribuída ao redor do globo, entre regiões e entre diferentes estratos da população dentro das regiões. Isto é o que Doreen Massey chama de "geometria do poder" da globalização.
O terceiro ponto na crítica da homogeneização cultural é a questão de se saber o que é mais afetado por ela. Uma vez que a direção do fluxo é desequilibrada, e que continuam a existir relações desiguais de poder cultural entre "o Ocidente" e "o Resto", pode parecer que a globalização __ embora seja, por definição, algo que afeta o globo inteiro __ seja essencialmente um fenômeno ocidental.
Kevin Robins nos faz lembrar que:
Embora tenha se projetado a si próprio como trans-histórico e transnacionail, como a força transcendente e universalizadora da modernização e da modernidade, o capitalismo global é, na verdade, um processo de ocidentalização - a exportação das mercadorias, dos valores, das prioridades, das formas de vida ocidentais. Em um processo de desencontro cultural desigual, as populações "estrangeiras" têm sido compelidas a ser os sujeitos e os subalternos do império ocidental, ao mesmo tempo em que, de forma não menos importante, o Ocidente, vê-se face a face com a cultura "alienígena" e "exótica" de seu "Outro". A globalização, à medida que dissolve as barreiras da distância, torna o encontro entre o centro colonial e a periferia colonizada imediato e intenso (Robins, 1991, p. 25).
Na última forma de globalização, são ainda as imagens, os artefatos e as identidades da modernidade ocidental, produzidos pelas indústrias culturais das sociedades "ocidentais" (incluindo o Japão) que dominam as redes globais. A proliferação das escolhas de identidade é mais ampla no "centro" do sistema global que nas suas periferias. Os padrões de troca cultural desigual, familiar desde as primeiras fases da globalização, continuam a existir na modernidade tardia. Se quisermos provar as cozinhas exóticas de outras culturas em um único lugar, devemos ir comer em Manhattan, Paris ou Londera e não em Calcutá ou em Nova Delhi.
Por outro lado, as sociedades da periferia têm estado sempre abertas às influências culturais ocidentais e, agora, mais do que nunca. A idéia de que esses são lugares "fechados" __ etnicamente puros, culturalmente tradicionais e intocados até ontem pelas rupturas da modernidade __ é uma fantasia ocidental sobre a "alteridade": uma "fantasia colonial" sobre a periferia, mantida pelo Ocidente, que tende a gostar de seus nativos apenas como "puros" e de seus lugares exóticos apenas como "intocados". Entretanto, as evidências sugerem que a globalização está tendo efeitos em toda parte, incluindo o Ocidente, e a "periferia" também está vivendo seu efeito pluralizador, embora num ritmo mais lento e desigual.
a) the rest in the west (o resto no ocidente)
As páginas precedentes apresentaram três qualificações relativamente à primeira das três possíveis conseqüências da globalização, isto é, a homogeneização das identidades globais. Elas são:
a)globalização caminha em paralelo com um reforçamento das identidades locais, embora isso ainda esteja dentro da lógica da compressão espaço-tempo.
b)A globalização é um processo desigual e tem sua própria "geometria do poder".
c)A globalização retém alguns aspectos da dominação global ocidental, mas as identidades culturais estão, em toda parte, sendo relativizadas pelo impacto da compressão
espaço-tempo.
Talvez o exemplo mais impressionante desse terceiro ponto seja o fenômeno da migração. Após a Segunda Guerra Mundial, as potências européias descolonizadoras pensaram que podiam simplesmente cair fora de suas esferas coloniais de influência, deixando as conseqüências do imperialismo atrás delas. Mas a interdependência global agora atua em ambos os sentidos. O movimento para fora (de mercadorias, de imagens, de estilos ocidentais e de identidades consumistas) tem uma correspondência num enorme movimento de pessoas das periferias para o centro, num dos períodos mais longos e sustentados de migração "não-planejada" da história recente. Impulsionadas pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo subdesenvolvimento econômico e por colheitas fracassadas, pela guerra civil e pelos distúrbios políticos, pelo conflito regional e pelas mudanças arbitrárias de regimes políticos, pela dívida externa acumulada de seus governos para com os bancos ocidentais, as pessoas mais pobres do globo, em grande número, acabam por acreditar na "mensagem" do consumismo global e se mudam para os locais de onde vêm os "bens" e onde as chances de sobrevivência são maiores. Na era da comunicações globais, o Ocidente está situado apenas à distância de uma passagem aérea.
Tem havido migrações contínuas e de grande escala, legais e "ilegais", para os Estados Unidos, a partir de muitos países pobres da América Latina e da bacia caribenha (Cuba, Haiti, Porto Rico, República Dominicana, ilhas do Caribe Britânico), bem como grande número de "migrantes econômicos" e de refugiados políticos do Sudeste da Ásia e do Extremo Oriente __ chineses, coreanos, vietnamitas, cambojianos, indianos, paquistaneses, japoneses. O Canadá tem uma substancial minoria de população caribenha. Uma conseqüência disso é uma mudança dramática na "mistura étnica" da população dos Estados Unidos __ a primeira desde as migrações em massa das primeiras décadas deste século. Em 1980, um em cada cinco americanos tinha origem afro-americana, asiático-americana ou indígena. Em 1990, essa estatística era de um em cada quatro. Em muitas cidades grandes (incluindo Los Angeles, San Francisco, Nova York, Chicago e Miami), os brancos são agora uma minoria. Nos anos 80, a população da Califórnia cresceu em 5,6 milhões, 43 por cento dos quais eram pessoas de cor __ isto é, incluindo hispânicos e asiáticos, bem como afro-americanos (comparados com 33 por cento em 1980) __ e um quinto tinha nascido no estrangeiro. Em 1995, previa-se que um terço dos estudantes das escolas públicas americanas seria constituído de não-brancos" (Censo dos Estados Unidos, 1991, citado em Platt, 1991).
Ao longo do mesmo período, houve uma "migração" paralela de árabes do Maghreb (Marrocos, Argélia, Tunísia) para a Europa, e de africanos do Senegal e do Zaire para a França e para a Bélgica; de turcos e norte-africanos para a Alemanha; de asiáticos das Índias Ocidentais e Orientais (ex-colônias holandesas) e do Suriname para a Holanda; de norte-africanos para a Itália; e, obviamente, de pessoas do Caribe e da Índia, Paquistão, Bangladesh, Quênia, Uganda e Sri Lanka para o Reino Unido. Há refugiados políticos da Somália, Etiópia, Sudão e Sri Lanka e de outros lugares, em pequenos números, em toda parte.
Esta formação de "enclaves" étnicos minoritários no interior dos estados-nação do Ocidente levou a uma "pluralização" de culturas nacionais e de identidades nacionais.
b) a dialética das identidades
Como esta situação tem se mostrado na Grã-Bretanha, em termos de identidade? O primeiro efeito tem sido o de contestar os contornos estabelecidos da identidade nacional e o de expor seu fechamento às pressões da diferença , da "alteridade" e da diversidade cultural. Isto está acontecendo, em diferentes graus, em todas as culturas nacionais ocidentais e, como conseqüência, fez com que toda a questão da identidade nacional e da "centralidade" cultural do Ocidente fosse abertamente discutida.
Num mundo de fronteiras dissolvidas e de continuidades rompidas, as velhas certezas e hierarquias da identidade britânica têm sido postas em questão. Num país que é agora um repositório de culturas africanas e asiáticas, o sentimento do que significa ser britânico nunca mais pode ter a mesma velha confiança e certeza. O que significa ser europeu, num continente colorido não apenas pelas culturas de suas antigas colônias, mas também pelas culturas americanas e agora pelas japonesas? A categoria da identidade não é, ela própria, problemática? É possível, de algum modo, em tempos globais, ter-se um sentimento de identidade coerente e integral? A continuidade e a historicidade da identidade são questionadas pela imediatez e pela intensidade das confrontações globais. Os confrontos da Tradição são fundamentalmente desafiados pelo imperativo de se forjar uma nova auto-interpretação, baseada nas responsabilidades da Tradução cultural (Robins, 1991, p. 41).
Outro efeito desse processo foi o de ter provocado um alargamento do campo das identidades e uma proliferação de novas posições-de-identidade, juntamente com um aumento de polarização entre elas. Esses processos constituem a segunda e a terceira conseqüências possíveis da globalização, anteriormente referidas __ a possibilidade de que a globalização possa levar a um fortalecimento de identidades locais ou à produção de novas identidades.
O fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte reação defensiva daqueles membros dos grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas. No Reino Unido, por exemplo, a atitude defensiva produziu uma "inglesidade" (Englishness) reformada, um "inglesismo" mesquinho e agressivo e um recuo ao absolutismo étnico, numa tentativa de escorar a nação e reconstruir "uma identidade que seja una, unificada, e que filtre as ameaças da experiência social" (Sennett, 1971, p. 15). Isso freqüentemente está baseado no que antes chamei de "racismo cultural" e é evidente, atualmente, em partidos políticos legais, tanto de direita quanto de esquerda, e em movimentos políticos mais extremistas em toda a Europa Ocidental.
Algumas vezes isso encontra uma correspondência num recuo, entre as próprias comunidades comunitárias, a identidades mais defensivas, em resposta à experiência de racismo cultural e de exclusão. Tais estratégias incluem a re-identificação com as culturas de origem (no Caribe, na Índia, em Bangladesh, no Paquistão); a construção de fortes contra-etnias __ como na identificação simbólica da segunda geração da juventude afro-caribenha, através dos temas e motivos do rastafarianismo, com sua origem e herança africana; ou o revival do tradicionalismo cultural, da ortodoxia religiosa e do separatismo político, por exemplo, entre alguns setores da comunidade islâmica.
Também há algumas evidências da terceira conseqüência possível da globalização __ a produção de novas identidades. Um bom exemplo é o das novas identidades que emergiram nos anos 70, agrupadas ao redor do significante "black", o qual, no contexto britânico, fornece um novo foco de identificação tanto para as comunidades afro-caribenhas quanto para as asiáticas. O que essas comunidades têm em comum, o que elas representam através da apreensão da identidade "black", não é que elas sejam, cultural, étnica, lingüística ou mesmo fisicamente, a mesma coisa, mas que elas são vistas e tratadas como "a mesma coisa" (isto é, não-brancas, como o "outro") pela cultura dominante. É a sua exclusão que fornece aquilo que Laclau e Mouffe chamam de "eixo comum de equivalência" dessa nova identidade. Entretanto, apesar do fato de que esforços são feitos para dar a essa identidade "black" um conteúdo único ou unificado, ela continua a existir como uma identidade ao longo de uma larga gama de outras diferenças. Pessoas afro-caribenhas e indianas continuam a manter diferentes tradições culturais. O "black" é, assim, um exemplo não apenas do caráter político das novas identidades __ isto é, de seu caráter posicional e conjuntural (sua formação em e para tempos e lugares específicos) __ mas também do modo como a identidade e a diferença estão inextrincavelmente articuladas ou entrelaçadas em identidades diferentes, uma nunca anulando completamente a outra.
Como conclusão provisória, parece então que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e "fechadas" de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Entretanto, seu efeito geral permanece contraditório. Algumas identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de "Tradição", tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou "puras"; e essas, conseqüentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins (seguindo Homi Bhabha) chama de "Tradição".
O capítulo 6 descreverá, brevemente, esse movimento contraditório entre Tradição e Tradução, num quadro mais amplo e global, e perguntará o que isso nos diz sobre o modo como as identidades devem ser conceptualizadas, em relação com os frutos da modernidade.
Naquilo que diz respeito às identidades, essa oscilação entre Tradição e Tradução (que foi rapidamente descrita antes, em relação à Grã-Bretanha) está se tornando mais evidente num quadro global. Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou retornando a suas "raízes" ou desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse pode ser um falso dilema.
Pois há uma outra possibilidade: a da Tradução. Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que forma dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado.Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias "casas" (e não a uma "casa" particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural "perdida" ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. A palavra "tradução", observa Salman Rushdie, "vem, etimologicamente, do latim, significando "transferir"; "transportar entre fronteiras". Escritores migrantes, como ele, que pertencem a dois mundos ao mesmo tempo, "tendo sido transportados através do mundo..., são homens traduzidos" (Rushdie, 1991). Eles são o produto das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia. Há muitos outros exemplos a serem descobertos.