parte 03 - David Harvey - "Condição Pós-moderna" - p. 62-67
Venturi et al. (1972, 155) recomenda que aprendamos nossa estética arquitetônica nos arredores de Las Vegas ou com os subúrbios tão mal-afamados como Levittown, apenas porque as pessoas evidentemente gostam desses ambientes. "Não temos de concordar com a política operária", afirmam, "para defender os direitos da classe média média à sua própria estética arquitetônica, e descobrimos que a a estética do tipo Levittown é compartilhada pela maioria dos membros da classe média média, branca e negra, liberal e conservadora. "Nada há de errado, insistem eles, em dar às pessoas o que elas querem, e o próprio Venturi foi citado no New York Times (22 de outubro de 1972), numa matéria apropriadamente intitulada "Mickey Mouse ensina os arquitetos", dizendo "Disneyworld está mais próxima do que as pessoas querem do que aquilo que os arquitetos já lhes deram". A Disneylândia, assevera ele, é "a utopia americana simbólica".
Há, no entanto, quem veja essa concessão da alta cultura à estética da Disneylândia antes como uma questão de necessidade do que de escolha. Daniel Bell (1978, 20), por exemplo, descreve o pós-modernismo como a exaustão do modernismo através da institucionalização dos impulsos criativos e rebeldes por aquilo que chama de "a massa cultural" (os milhões de pessoas que trabalham nos meios de comunicação, no cinema, no teatro, nas universidades, nas editoras, nas indústrias de propaganda e comunicações etc. e que processam e influenciam a recepção de produtos culturais sérios, e produzem os materiais populares para o público de cultura de massas mais amplo). A degeneração da autoridade intelectual sobre o gosto cultural nos anos 60 e a sua substituição pela pop arte, pela cultura pop, pela moda efêmera e pelo gosto da massa são vistas como um sinal do hedonismo inconsciente do consumismo capitalista.
Iain Chambers (1986; 1987) interpreta um processo semelhante de maneira bem distinta. A juventude da classe operária da Inglaterra teve dinheiro suficiente durante a expansão do pós-guerra para participar da cultura de consumo capitalista, usando ativamente a moda para construir um sentido de sua própria identidade pública, e até definindo suas próprias formas de pop arte, diante de uma indústria da moda que buscava impor o gosto através da pressão da publicidade e da mídia. A conseqüente democratização do gosto numa variedade de subculturas (do "macho" das cidades aos campi universitários) é interpretada como o desfecho de uma batalha vital que fortaleceu os direitos de formação da própria identidade até dos relativamente desprivilegiados, diante de um comercialismo poderosamente organizado. Os fermentos culturais de base urbana que começaram no início dos anos 60 e existem até hoje estão, na visão de Chambers, na raiz da virada pós-moderna:
O pós-modernismo, seja qual for a forma que a sua intelectualização possa tomar, foi fundamentalmente antecipado nas culturas metropolitanas dos últimos vinte anos: entre os significantes eletrônicos do cinema, da televisão e do vídeo, nos estúdios de gravação e nos gravadores, na moda e nos estilos da juventude, em todos os sons, imagens e histórias diversas que são diariamente mixados, reciclados e "arranhados" juntos na tela gigante que é a cidade contemporânea.
Também é difícil não atribuir alguma espécie de papel plasmador à proliferação do uso da televisão. Afinal, sabe-se que o americano médio hoje assiste à televisão por mais de sete horas diárias, e a propriedade de televisões e vídeos (neste último caso, presentes em ao menos metade dos lares americanos) é hoje tão disseminada no mundo capitalista que alguns efeitos devem por certo ser registrados. As preocupações pós-modernas com a superfície, por exemplo, podem remontar ao formato necessário das imagens televisivas. A televisão também é, como aponta Taylor (1987, 103-5), "o primeiro meio cultural de toda a história a apresentar as realizações artísticas do passado como uma colagem coesa de fenômenos eqüi-importantes e de existência simultânea, bastante divorciados da geografia e da história material e transportados para as salas de estar e estúdios do Ocidente num fluxo mais ou menos ininterrupto". Isso requer, além disso, um espectador "que compartilhe a própria percepção da história do meio como uma reserva interminável de eventos iguais". Causa pouca surpresa que a relação do artista com a hsitória (o historicismo peculiar para o qual já chamamos a atenção) tenha mudado, que, na era da televisão de massa, tenha surgido um apego antes às superfícies do que às raízes, à colagem em vez do trabalho em profundidade, a imagens citadas superpostas e não às superfícies trabalhadas, a um sentido de tempo e de espaço decaído em lugar do artefato cultural solidamente realizado. E todos esses elementos são aspectos vitais da prática artística na condição pós-moderna.
Apontar a potência dessa força na moldagem da cultura como modo total de vida não é, no entanto, cair necessariamente num determinismo tecnológico simplista do tipo "a televisão gerou o pós-modernismo". Porque a televisão gerou o pós-modernismo". Porque a televisão é ela mesma um produto do capitalismo avançado e, como tal, tem de ser vista no contexto da promoção de uma cultura do consumismo. Isso dirige a nossa atenção para a produção de necessidades e desejos, para a mobilização do desejo e da fantasia, para a política da distração como parte do impulso para manter nos mercados de consumo uma demanda capaz de conservar a lucratividade da produção capitalista.
Charles Newman (1984, 9) vê boa parte da estética pós-modernista como uma resposta ao surto inflacionário do capitalismo avançado. "A inflação", diz ele, "afeta a troca de idéias tão certamente quanto afeta os mercados comerciais." Assim, "somos testemunhas das contínuas batalhas intestinais e mudanças espasmódicas na moda, na exibição simultânea de todos os estilos passados em suas infinitas mutações e na contínua circulação de elites intelectuais diversas e contraditórias, o que assinala o reino do culto da criatividade em todas as áreas do comportamento, uma receptividade não crítica sem precedentes à Artes, uma tolerância que, no final, equivale à indiferença". Desse ponto de vista, conclui Newman, "a celebrada fragmentação da arte já não é uma escolha estética: é somente um aspecto cultural do tecido social e econômico".
Isso por certo ajudaria a explicar o impulso pós-moderno de integração à cultura popular através do tipo de comercialização aberta, e até crassa, que os modernistas tendiam a rejeitar com sua profunda resistência à idéia (embora nem sempre ao fato) da mercadificação de sua produção. Há, no entanto, quem atribua a exaustão do alto modernismo precisamente à sua absorção com a estética formal do capitalismo corporativo e do Estado burocrático. Assim, o pós-modernismo não assinala senão uma extensão lógica do poder do mercado a toda a gama da produção cultural. Crimp (1987, 85) é deveras quanto a esse ponto:
O que temos visto nos últimos anos é a virtual tomada da arte pelos grandes interesses corporativos. Porque, seja qual for o papel desempenhado pelo capital na arte do modernismo, o atual fenômeno é novo precisamente por causa do seu alcance. As corporações se tornaram, em todos os aspectos, os principais patrocinadores da arte. Elas foram impressionantes coleções. Concedem fundos para toda grande exposição nos museus... As casas de leilão se tornaram instituições de empréstimos, dando um valor completamente novo à arte como algo colateral. E tudo isso afeta não somente a inflação do valor dos velhos mestres como a própria produção artística... [As corporações] estão comprando barato e em quantidade, contando com a escalada do valor de jovens artistas... O retorno à pintura e à escultura em moldes tradicionais é o retorno à produção de mercadorias, e eu sugeriria que, enquanto tradicionalmente tinha uma condição ambígua de mercadoria, a arte tem uma condição de mercadoria totalmente clara.
O desenvolvimento de uma cultura de museu (na Inglaterra é aberto um museu a cada três semanas e, no Japão, mais de 500 foram abertos nos últimos quinze anos) e uma florescente "indústria da herança" que se iniciou no começo dos anos 70 dão outra virada populista (se bem que, desta vez, bastante classe média) à comercialização da história e de formas culturais. "O pós-modernismo e a indústria da herança estão ligados", diz Hewison (1987, 135), já que "ambos conspiram para criar uma tela oca que intervém entre a nossa vida presente e a nossa história". A história se torna "uma criação contemporânea, antes um drama e uma re-representação de costumes do que discurso crítico". Estamos, conclui ele, citando Jameson, "condenados a procurar a História através das nossas próprias imagens e simulacros pop dessa história, história que permanece sempre fora do alcance". A casa já não é vista máquina, mas como "uma antigüidade na qual viver".
A invocação de Jameson nos traz, por fim, à sua ousada tese de que o pós-modernismo não é senão a lógica cultural do capitalismo avançado. Seguindo Mandel (1975), ele alega que passamos para uma nova era a partir do início dos anos 60, quando a produção da cultura "tornou-se integrada à produção de mercadorias em geral: a frenética urgência de produzir novas ondas de bens com aparência cada vez mais nova (de roupas a aviões), em taxas de transferência cada vez maiores, agora atribui uma função estrutural cada vez mais essencial à inovação e à experimentação estéticas". As lutas antes travadas exclusivamente na arena da produção se espalharam, em conseqüência disso, tornando a produção cultural uma arena de implacável conflito social. Essa mudança envolve uma transformação definida nos hábitos e atitudes de consumo, bem como um novo papel para as definições e intervenções estéticas. Enquanto alguns alegam que os movimentos contraculturais dos anos 60 criaram um ambiente de necessidades não atendidas e de desejos reprimidos que a produção cultural popular pós-modernista apenas procurou satisfazer da melhor maneira possível em forma de mercadoria, outros sugerem que o capitalismo, para manter seus mercados, se viu forçado a produzir desejos e, portanto, estimular sensibilidades individuais para criar uma nova estética que superasse e se opusesse às formas tradicionais de alta cultura. Seja como for, considero importante aceitar a proposição de que a evolução cultural que vem ocorrendo a partir do início dos anos 60 e que se afirmou como hegemônica no começo dos anos 70 não ocorreu num vazio social, econômico ou político. A promoção da publicidade como "a arte oficial do capitalismo" traz para a arte estratégias publicitárias e introduz a arte nessas mesmas estratégias (como uma comparação da pintura de David Salle com um anúncio dos Relógios Citizen [ilustrações 1.6 e 1.10] revela). Portanto, é necessário deter-se sobre a mudança estilística que Hassan estabelece com relação às forças que emanam da cultura do consumo de massa: a mobilização da moda, da pop arte, da televisão e de outras formas de mídia de imagem, e a verdade dos estilos de vida urbana que se tornou parte da vida cotidiana sob o capitalismo. Façamos o que fizermos com o conceito, não devemos ler o pós-modernismo como uma corrente artística autônoma; seu enraizamento na vida cotidiana é uma de suas características mais patentemente claras.
O retrato do modernismo que tracei, com a ajuda do esquema de Hassan, está por certo incompleto. É igualmente certo ser ele um retrato tornado fragmentário e efêmero pela enorme pluralidade e caráter enganoso de formas culturais envoltas nos mistérios do fluxo e da mudança rápidos. Mas creio ter dito o bastante sobre o que constitui o quadro geral da "profunda mudança na estrutura do sentimento" que separa a modernidade da pós-modernidade para iniciar a tarefa de desvelar as suas origens e formular uma interpenetração especulativa do que isso poderá significar para o nosso futuro. Contudo, considero útil arrematar esse retrato com um
Ilustração 1.10 Um anúncio dos Relógios Citizen incorpora diretamente as
técnicas pós-modernas de superposição de mundos ontologicamente diferentes sem
relação necessária entre si (compare-se o anúncio com o quadro
de David Salle na ilustração 1.6) O relógio anunciado é quase invisível.
exame mais detalhado de como o pós-modernismo se manifesta na arquitetura urbana contemporânea, porque a proximidade ajuda a revelar as microtexturas em vez das grandes pinceladas de que a condição pós-moderna é feita na vida cotidiana. É essa a tarefa de que me encarrego no próximo capítulo.
NOTA
As ilustrações usadas neste capítulo foram criticadas por algumas feministas de convicção pós-moderna. Elas foram deliberadamente escolhidas porque permitiam uma comparação entre campos supostamente separados do pré-moderno, do moderno e do pós-moderno. O nu clássico de Ticiano é ativamente trabalhado na Olímpia modernista de Manet. Rauschenberg apenas reproduz através da colagem pós-moderna; David Salle superpõe mundos diferentes; e o anúncio dos Relógios Citizen (o mais ultrajante do lote, mas que apareceu nos suplementos de fim de semana de vários jornais britânicos de qualidade por um longo período) é um engenhoso uso da mesma técnica pós-moderna para fins puramente comerciais. Todas as ilustrações usam um corpo feminino para inscrever sua mensagem particular. Procurei dizer também que a subordinação da mulher, uma das muitas "contradições problemáticas" das práticas iluministas burguesas (ver p. 24 acima e p. 228 abaixo), não pode esperar nenhum alívio particular pelo recurso ao pós-modernismo. Pensei que as ilustrações diziam isso tão bem que tornavam desnecessário explicar. Mas, ao menos em alguns círculos, essas imagens particulares não valeram suas costumeiras mil palavras. Do mesmo modo, parece que eu não deveria ter pensado que os pós-modernos apreciassem sua própria técnica de contar mesmo uma história ligeiramente diferente por meio das ilustrações em comparação com o texto. (Junho de 1990.)