INTERDISCIPLINARIDADE, SINÔNIMO DE COMPLEXIDADE*

Prof. Dr. Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira

*Publicado no Jornal "A Razão" em 02.10.2003

"...politicamente, existem diferentes disciplinas. Elas têm organizações com fronteiras, estruturas e corpos de funcionários para defender seus interesses...Mas isso nada nos diz acerca da validade das reivindicações intelectuais à separação..." (Immanuel Wallerstein).

Ao mostrar que hoje não existem critérios claros e defensáveis que possam sustentar as fronteiras entre as pretensas disciplinas que constituem as ciências sociais (antropologia, economia, ciência política e a sociologia - some-se aqui a controvérsia em torno da história e da psicologia social), I.Wallerstein também afirma que as três supostas áreas da ação humana coletiva (a economia, a política e a sociocultural), não são áreas autônomas da ação social. Não têm "lógicas" separadas". Penso que não é necessário muito esforço para se perceber que a lógica da separação entre todas as disciplinas justifica-se "apenas" por questões políticas, e ao invés de impulso, constitui-se como barreira para novos conhecimentos, uma vez que considera uma divisão em compartimentos, uma hierarquia linear, que na realidade não existem (na realidade, as fronteiras são incertas), e com isto mantêm-se separado o que deveria ser pensado/trabalhado de forma articulada.

Na mesma linha de pensamento, C.Castoriadis tecendo excelente crítica à fragmentação nas ciências humanas, reafirmou que nelas os efeitos da separação das disciplinas se fazem sentir com maior gravidade do que em qualquer outra parte. É bastante interessante o exemplo dado por ele sobre três profissionais que exercem suas funções a pouca distância um do outro: o psicanalista interpretando e resolvendo um sintoma histérico, o psiquiatra eliminando um delírio, e o filósofo desenvolvendo um discurso sobre a relação da alma e do corpo; após isto, diz C.Castoriadis, "estes três personagens, olhando-se de esguelha, evitam-se ao se cruzarem".

Este exemplo é por demais ilustrativo do que ocorre hoje em nossas instituições de ensino, onde "cada um na sua", reivindica pateticamente para si o direito/posse deste ou daquele domínio de estudo, como se fosse possível fatiar o conhecimento e suas estruturas de relações de acordo com as inúmeras especializações existentes. Discursam contra a alienação, e esquecem que toda a atitude que dissocia e desintegra o objeto de estudo é alienada e gera alienação. Costumo dizer que são reencarnações de Platão, clamando para que cada um se ocupe do seu negócio e não se intrometa nos demais. Sobre isto, H.Japiassu há muito já havia dito que cada disciplina converte-se "num pequeno feudo intelectual, cujo proprietário está vigilante contra toda intromissão em seu terreno cercado e metodologicamente protegido contra os "inimigos" de fora".

Porém o que quero salientar é que tanto I.Wallerstein como C.Castoriadis reconhecem e nos lembram que a resolução deste problema jamais se dará através de fórmulas simples, deterministas e padronizadas. I.Wallerstein destaca que uma efetiva ação interdisciplinar não diz respeito apenas às divisões entre domínios de estudos e disciplinas, mas precisa afetar politicamente também, as estruturas institucionais existentes. Enquanto isto não acontecer, "os invasores continuarão movendo as cercas, sem contudo derrubá-las" (Wallerstein).

Devido as cercas ainda continuarem de pé, foi que C.Castoriadis várias vezes sublinhou que a necessidade de se romper com a fragmentação, hoje, deve ser colocada com mais força, mas também concluiu que seria ingênuo resolver esta questão, isolada de transformações profundas da organização social e da orientação histórica, uma vez que estamos falando dentro de um mundo social dado cujas estruturas culturais, econômicas e de poder, apresentam diferenças profundas.

Portanto a interdisciplinaridade jamais ignora as "condições efetivas, sociais e históricas, sob as quais existem e funcionam a ciência e o homem de ciência contemporâneos" (Castoriadis). Sendo assim, afirmo que um trabalho interdisciplinar crítico (não ingênuo), diz respeito à inúmeras interações e interferências, e portanto é sinônimo de complexidade.

Como sinônimo de complexidade, a interdisciplinaridade não se ensina. Ivani Fazenda com muita propriedade destacou que "a interdisciplinaridade não se ensina nem se aprende, apenas vive-se, exerce-se...é uma questão de atitude". Como sinônimo de complexidade, está longe de ser apenas fusão de conteúdos ou métodos, e, ao invés de se prender nos elementos, busca sempre as relações entre eles, ou seja, trabalha-se sempre com uma estrutura de relações. Não se realiza sob ordens/decretos, nem tampouco tem etapas definidas que possam ser aplicadas indiscriminadamente. Como sinônimo de complexidade é um processo que se desenvolve de acordo com as necessidades específicas de cada contexto.

Por tudo isso, o uso do termo interdisciplinar deveria ser feito de forma mais prudente, pois o que geralmente acontece sob este nome, são na verdade ações multidisciplinares que não se desenvolvem sob um nível de interação voltado para a transformação efetiva do homem e da realidade. Não buscam "derrubar as cercas" epistemológicas, socioculturais, políticas, econômicas, etc.

Preciso observar que não vejo nenhum demérito nisto, pelo contrário, entendo as justaposições multidisciplinares como uma fase preparatória, quase que necessária para se pensar seriamente sobre uma atitude interdisciplinar, pois nelas começa o exercício do diálogo e concessões entre os envolvidos.

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