O MUNDO DE BLADE RUNNER*
Autor: LUCIANO DO MONTE RIBAS
*
Este texto faz parte da monografia de conclusão do curso de especialização empensamento político brasileiro, defendida na UFSM em 08/07/2005
Orientador: Prof. Dr. Holgonsi Siqueira
"Blade Runner" é um filme do diretor britânico Ridley Scott rodado em 1984
e que se baseia no livro "Do Androids Dream of Electric Sheep?" de Philip
K. Dick. Transformou-se numa obra cult por ser uma ficção científica
diferente, classificada como pessimista por muitos[1], e por abordar temas
instigantes, com destaque para algumas questões fundamentais à humanidade:
o que é a vida e quem tem o direito de criá-la ou de negá-la?
O pano de fundo para a trama situa-se no trabalho de uma
mega-corporação, a Tyrell, detentora de uma tecnologia capaz de gerar
formas de vida, os replicantes[2], que superam os humanos em muitos
aspectos. O ambiente onde as ações acontecem é uma metrópole caótica,
degradada, uma encruzilhada de falas e rostos onde as únicas referências
urbanas são os anúncios gigantescos da Coca-Cola, da Atari e de outras
empresas. Os personagens são humanos e não-humanos em busca de futuro,
memórias e, sobretudo, de identidade: o replicante Roy Batty busca mais
tempo para viver; Eldon Tyrell, a recriação de um mundo natural e bucólico
proporcionada pelo dinheiro e pela tecnologia; Rachael, a consciência do
que ela é; e Rick Deckard, o caçador de replicantes interpretado por
Harrison Ford, um sentido para a sua vida.
Filmes são perfeitos para a função de alegoria[3]. Eles
fornecem uma visualização (podemos dizer que até uma certa materialidade)
sobre determinado assunto.
No caso de Blade Runner, a situação antevista por Ridley Scott
reúne algumas características já presentes ou que começam a manifestar-se
nas grandes cidades do mundo (mas não apenas nelas). As mais evidentes são
a onipresença das grandes empresas transnacionais, com suas marcas a
demarcarem o espaço urbano, e a desconexão com os elementos que
tradicionalmente compunham a identidade entre um determinado espaço e sua
população.
Mas há, ainda, outra possibilidade alegórica no filme, talvez a que mais
interessa para a compreensão deste trabalho. Blade Runner é um thriller
obcecado pela vida, pois para todos seus personagens ela - ou melhor,
todas as possibilidades que ela oferece - é o elemento definidor do papel
que desempenham no mundo. Tyrell brinca de Deus e "faz" a vida[4]; Deckard
a nega e elimina, por considerar os seres criados meras máquinas; já o
replicante Roy a deseja tão intensamente que, antes de morrer penalizado
pelo dispositivo de auto-eliminação que carrega nos seus genes, salva seu
algoz de uma morte certa.
O ato do replicante Roy é a afirmação do mais fundamental direito de toda
a pessoa, o direito a viver. Dele decorre todo o conjunto de idéias,
valores e práticas conhecido como Direitos Humanos, cujo desenvolvimento
confunde-se com a trajetória da raça humana sobre a Terra.
Reflexo de seu tempo ou antecipação que modifica valores, os Direitos
Humanos e as noções que englobam jamais estão imunes ao que acontece no
mundo. Há sempre um contexto social, cultural e econômico, tanto para sua
garantia como para o desrespeito ao que estabelecem. Em Blade Runner, este
contexto é um ambiente degradado, confuso, transnacional, cujas regras são
determinadas por quem controla a informação e as tecnologias.
Traduzindo muitos aspectos da alegoria anteriormente proposta, o período
no qual todos vivemos é caracterizado por incertezas, novas interações
sociais e modificações na percepção do mundo jamais visto. Esse período de
tempo tem recebido o nome de globalização e, como sabemos, suas
conseqüências para a humanidade são tão imprevisíveis quanto é mundial o
seu alcance. Por outro lado, este é o contexto objetivo no qual os
Direitos Humanos são afirmados, negados, ampliados ou modificados. Na
verdade, a globalização traz uma nova pauta para a luta pelos Direitos
Humanos, ao mesmo tempo em que torna ainda mais atual a atenção ao que
definiu sua personalidade durante a Modernidade.
A globalização atinge todas as esferas humanas e todos os cantos do
planeta, mesmo que em graus diferentes de intensidade. No entanto, sua
íntima relação com a crise dos estados nacionais, que será adiante
tratada, força modificações no que se entende tradicionalmente como
política[5]. Na verdade, as sociedades pós-tradicionais viram e vêem
surgir novas formas de ação política, na maior parte das vezes
desconectadas dos partidos e das ideologias tradicionais, sejam elas à
esquerda e à direita. Esse conjunto de novos atores sociais tem convertido
o microcosmo no todo da sua ação política, bem como suas interações com os
partidos organizados podem ser consideradas meramente burocráticas.
A luta pelos Direitos Humanos normalmente é inserida no que se
convencionou chamar de micropolíticas[6], embora por sua abrangência (é
possível, de alguma maneira, incluir neles todas as lutas emancipatórias,
identitárias ou afirmativas de direitos) e ao mesmo tempo especificidade
seja complicado classificá-la em definitivo. Certo é que os Direitos
Humanos diferenciam-se também das ideologias[7] tradicionais, na medida em
que não propõe a divisão das pessoas pelo seu modo de pensar e, mesmo
quando propõe algum tipo de clivagem, o sentido é a afirmação de direitos
individuais ou coletivos. Ou seja, a chamada Plataforma Ampliada e
Atualizada dos Direitos Humanos parece ser o conjunto mais abrangente de
idéias regulatórias e emancipatórias da humanidade, não podendo ser
ignorada do ponto de vista da política.
Assim, tendo como pano de fundo o fenômeno da globalização, o problema
central deste trabalho é analisar quais são as possibilidades e os
limites, para os Direitos Humanos constituírem-se como a plataforma de uma
política emancipatória para a humanidade, capaz de superar os sistemas
ideológicos no que existe de pior neles: a sempre presente exclusão de
outros atores sociais e a totalidade implícita nos seus ideários.
O trabalho possui como primeiro objetivo específico caracterizar a
globalização atualmente em curso; como segundo, definir o que são os
Direitos Humanos; e, como terceiro, reconhecer nos Direitos Humanos um
elemento aglutinador para as micropolíticas.
Para isso, busca referência básica nos trabalhos de Boaventura de Sousa
Santos, Manuel Castells e Stuart Hall, tirando partido do que existe de
convergente entre eles, mas também do que há de contraditório.
Subsidiariamente, também as idéias de Anthony Giddens e Zigmunt Bauman
orientam o desenvolvimento da análise.
Ele está dividido em três partes: na primeira, a busca de conceitos e
caracterizações sobre o que é globalização; na segunda, a discussão sobre
os Direitos Humanos, sua evolução e as tensões presentes neles; por fim, a
defesa da Plataforma Ampliada e Atualizada dos Direitos Humanos como um
"guião emancipatório", na expressão de Boaventura (2002), para a atuação
política num mundo globalizado.
GLOBALIZAÇÃO E DISPUTA
A globalização é um tema obrigatório para todos aqueles que procuram
entender o mundo e suas transformações.
Muito mais que uma discussão acadêmica, a globalização é um fenômeno em
processo, que atinge todas as atividades humanas. Nas palavras de Bauman
(1999, p. 69) "a globalização não diz respeito ao que todos nós, ou pelo
menos os mais talentosos e empreendedores, desejamos ou esperamos fazer.
Diz respeito ao que está acontecendo a todos nós".
Mas a abordagem mais comum sobre a globalização quase sempre é
limitada à denúncia do que Bauman classificou como conseqüências humanas,
notadamente o aumento da exclusão nos países periféricos, com a
proliferação de doenças, a fome, a violência e a falência de seus
governos.
A simples denúncia, porém, geralmente conduz à simplificação grosseira, um
dos muitos pecados que a esquerda tradicional insiste em cometer e que
torna impossível a compreensão dos diferentes aspectos de qualquer
questão.
Na contramão da simplificação está Boaventura de Souza Santos.
Ele identifica na globalização um amplo campo de disputas e nele reconhece
não apenas movimentos do grande capital financeiro e de seus aliados, mas
também de outros atores sociais, bem como suas formas de resistência.
A globalização, longe de ser consensual, é, como veremos, um vasto e
intenso campo de conflitos entre grupos sociais, Estados e interesses
hegemônicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e interesses
subalternos, por outro ... no entanto, por sobre todas as suas divisões
internas, o campo hegemônico atua na base de um consenso entre seus
membros (BOAVENTURA, 2002, p. 27).
A idéia de Boaventura parece ser no mínimo, lógica. É impossível que, a
partir do aumento dramático das interações entre todos os cantos do globo,
além dos fluxos[8] financeiros, de mercadorias e de turistas não haja
também interações entre setores marginalizados pela "integração" mundial.
O Fórum Social Mundial de Porto Alegre, por exemplo, é a manifestação mais
articulada de que existe uma tensão no processo de globalização ou, dito
de uma forma mais radical, das várias globalizações. Mas está longe de ser
a única.
Como tudo que está em disputa, o conceito "do que é" a
globalização possui diferentes interpretações, especialmente se lembrarmos
a diversidade de sujeitos sociais, econômicos e culturais que fazem parte
do fenômeno.
Manuel Castells está entre os que entendem a globalização a
partir de um ponto de vista positivo, muito embora reconheça as mazelas
sociais dela decorrentes. Para ele, o surgimento de uma série de novas
tecnologias genericamente tratadas como da informação[9] marcam uma
sociedade "nova", que ele designa como informacional. Na definição de
Castells:
O fator histórico mais decisivo para a aceleração, encaminhamento e
formação do paradigma da tecnologia da informação e para a indução de suas
conseqüentes formas sociais foi/é o processo de reestruturação
capitalista, empreendido desde os anos 80, de modo que o novo sistema
econômico e tecnológico pode ser adequadamente caracterizado como
capitalismo informacional (CASTELLS, 1999, p. 55).
O capitalismo informacional organiza-se, segundo Castells, em
rede e possui como símbolo a Internet[10]. Há, na visão dele, uma
estrutura de conexões, interações, interdependências e influências
recíprocas nessa nova economia, cuja base é o uso da informação para gerar
novas informações, num círculo de contínua realimentação.
Castells identifica duas tendências relativamente autônomas que colaboram,
por sua interação, no entendimento da sociedade em rede: o
"desenvolvimento de novas tecnologias da informação" e a tentativa da
antiga sociedade de "reaparelhar-se com o uso do poder da tecnologia para
servir a tecnologia do poder".
Retornando a Zigmund Bauman, percebemos uma crítica coerente
e, por vezes, irônica em relação ao processo da globalização. Seu conceito
é amparado em outro autor, Kenneth Jowitt, e no título de uma obra deste,
"A Nova Desordem Mundial":
Esse caráter [de nova desordem mundial], inseparável na imagem da
globalização, coloca-a radicalmente à parte de outra idéia que
aparentemente substituiu, a da "universalização", outrora constitutiva do
discurso moderno sobre as questões mundiais, mas agora caída em desuso e
raramente mencionada, talvez mesmo no geral esquecida, exceto pelos
filósofos (BAUMAN, 1999, p. 67).
Bauman acredita que o processo de globalização gera estados
fracos, precisando deles nesta condição para "sustentar-se e
reproduzir-se". Também identifica uma certa ênfase no que ele chama de
"princípio territorial", bem exemplificado na multiplicação de pequenos e
politicamente irrelevantes "estados nacionais", o que ampliaria a
liberdade de circulação dos capitais financeiros e da indústria de
informações globais, beneficiadas por esse retalhamento[11]. A
fragmentação da União Soviética em mais de uma dezena de nações, além de
ser um símbolo eloqüente disso, trouxe conseqüências enormes para a
geopolítica. Pequenos países, como o Azerbaijão ou a Moldávia, são pouco
mais do que nada no jogo da globalização, a não ser quando servem como
pretexto para a movimentação das forças hegemônicas. E até mesmo a Rússia,
que manteve um poderoso arsenal nuclear e uma grande extensão territorial,
sendo fartamente servida de recursos naturais, não conseguiu manter-se
como uma potência de primeira grandeza.
O autor polonês toma partido da idéia de Roland Robertson (com
a qual concordo) de que ocorre, na verdade, um processo de glocalização,
marcado pela "inquebrantável unidade entre as pressões globalizantes e
locais". A simples idéia ou conceito de globalização encobriria a
existência desses dois lados da mesma moeda, por assim dizer, sendo por
isso não apenas inadequada, mas verdadeiramente parcial. Em resumo, para
Bauman (1999), atualmente "as riquezas são globais, a miséria é local".
Antonhy Giddens possui uma visão um pouco diferente, na medida
em que ele reconhece aspectos negativos e positivos na globalização. Numa
expressão, ele a define como uma espécie de ação à distância. Propondo um
conceito mais acabado, ele diz que globalização é
A intensificação de relações sociais mundiais que unem localidades
distantes de tal modo que os acontecimentos locais são condicionados por
eventos que acontecem a muitas milhas de distância e vice-versa (GIDDENS,
1990, p. 64 apud BOAVENTURA, 2002, p. 26.).
Na concepção de Giddens, o local e o global se definem mutuamente, num
processo dialético, de influências cruzadas e de conseqüências presentes
em ambos. Ele afirma, ainda, que a globalização não é um processo único,
mas "uma mistura complexa de processos", surgindo novas estratificações,
divisões e, por que não, convergências. Outra importante idéia de Antonhy
Giddens (1996, p. 13), que será tratada mais adiante, é que "a
globalização trata efetivamente da transformação do espaço e do tempo",
modificando radicalmente a maneira como nos relacionamos com todas as
dimensões da vida. Um mundo "menor" e mais "instantâneo" seria a marca de
uma sociedade pós-tradicional.
Embora todos os conceitos anteriormente citados possuam
relevância (com seus diferentes aspectos e, até mesmo, algumas
contradições), aquele que Boaventura de Souza Santos sugere no artigo "Os
Processos da Globalização" servirá como uma referência mais explícita para
este trabalho[12]:
A globalização é uma fase posterior à internacionalização e à
multinacionalização porque, ao contrário destas, anuncia o fim do sistema
nacional enquanto núcleo central das actividades e estratégias humanas
organizadas (BOAVENTURA, 2002, p. 26).
Há dois elementos importantes nesse conceito. O primeiro é a
identificação de duas fases anteriores à atual globalização, a
internacionalização e a multinacionalização, o que colabora para
diferenciar de vez o fenômeno atualmente em curso dos processos ocorridos
em outros momentos históricos. Já o segundo explicita o fim do sistema
nacional, centrado no estado-nação, tão caro à modernidade iluminista.
Boaventura (2002, p. 26), porém, vai além. Ele afirma que a
atual globalização não se encaixa no padrão moderno ocidental,
caracterizado pela homogeneização e pela uniformização. O momento "parece
combinar a universalização e a eliminação das fronteiras nacionais, por um
lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade étnica e o
regresso ao comunitarismo, por outro". O global e local seriam socialmente
construídos dentro do processo de globalização ou, nas palavras do autor
"o global acontece localmente".
Ele identifica, também, a existência de um campo hegemônico dentro do
amplo e multifacetado processo de globalização. Este campo seria resultado
das ações do chamado Consenso de Washington ou neoliberal[13].
O núcleo desse projeto residiria na idéia de que entramos num período em
que as clivagens políticas profundas desapareceram. Sua manifestação seria
mais evidente no crescente domínio da lógica financeira sobre a produção
da economia "real" e no surgimento de uma classe capitalista transnacional
imune, digamos assim, à organização dos trabalhadores (ainda fortemente
definida por um caráter nacional) e desvinculada do estado-nação. A
citação a seguir torna mais explícita esta idéia:
O Estado-nação parece ter perdido a sua centralidade tradicional enquanto
unidade privilegiada da iniciativa econômica, social e política. A
intensificação de interações que atravessam as fronteiras e as práticas
transnacionais corrói a capacidade do Estado-nação para conduzir ou
controlar fluxos de pessoas, bens, capital ou idéias, como o fez no
passado (BOAVENTURA, 2002, p. 36).
Três consensos seriam decorrentes do Consenso de Washington: o consenso do
estado fraco, já destacado por Bauman; o consenso da democracia liberal
como único sistema político possível e "justo"; e o consenso do primado do
direito e do sistema judicial, como garantia de um espaço regrado para
dirimir eventuais disputas comerciais e, num sentido mais amplo, limitar
por meios legais as possibilidades de eventuais tentativas de autonomia de
algum estado-nação démodé.
O autor português trabalha com a idéia de um Sistema Mundial em Transição,
uma forma "sincrética" entre o velho sistema e um conjunto de realidades
emergentes. Tal conjunto conteria, de forma "embrionária", o que poderá
vir a ser um novo sistema mundial, ou mesmo outra nova entidade, com
caráter sistêmico ou não.
Nesse processo, o que entendemos por globalização é classificado pelo
autor como a globalização bem sucedida de determinado localismo.
É possível, dentro dessa idéia, identificar uma raiz local para cada
condição global, seja ela real ou resultado de uma construção consciente
ou do imaginário de um determinado grupo. O hambúrguer do Macdonald´s,
presente em todo o mundo, é um produto típico da cultura americana e um de
seus ícones mais significativos. Aliás, talvez mais que a bandeira
americana.
O exemplo acima, porém, também pode servir para mostrar as influências
locais no fenômeno da globalização, refletindo a idéia de que globalização
pressupõe localização. Se a definição do que é global determina o que é
local, o sanduíche de hambúrguer que deixa de conter carne bovina na Índia
é uma adaptação à cultura hinduísta daquilo que é, para muitos, o
anti-Cristo capitalista.
A idéia de que a história é sempre escrita do ponto de vista dos
vencedores é transposta na opinião de Boaventura (2002, p. 63) sobre o
motivo pelo qual o termo globalização é mais comumente utilizado para
designar o fenômeno em curso. Para ele, a explicação é que "o motivo pelo
qual é preferido o último termo [globalização ao invés de localização] é,
basicamente, o fato de o discurso científico hegemônico tender a
privilegiar a história do mundo na versão dos vencedores".
O que Boaventura chama de discurso científico hegemônico é identificado na
esquerda tradicional com o termo dominante, mas é importante que se
estabeleça aqui algum grau de distinção entre hegemonia e dominação.
A dominação[14], mesmo que implicitamente, admite o recurso a formas
violentas e coercitivas de imposição de valores e de estruturas sociais. É
simplesmente dominante, por exemplo, a cultura que roubou as terras e
assassinou a maioria dos indígenas da América do Norte, como também é um
ato de pura dominação a invasão do Tibet pelas tropas chinesas. Esta
"hegemonia" pela força é facilmente identificada nas relações
internacionais através da história e traduzida na ascensão de uma nação
sobre outra ou sobre um conjunto de outras. Foi assim no antigo Egito, nos
impérios persa e inca, em Roma, Bizâncio e Veneza, entre tantos outros
exemplos possíveis.
Mas há para o termo hegemonia uma outra inflexão, que o distingue da
simples maioria e da dominação pela coerção. Antonio Gramsci, considerado
por muitos como o último grande intelectual marxista, elaborou sua teoria
da hegemonia no clássico Cadernos do Cárcere, apontando em outra direção.
Ele identifica a hegemonia com a capacidade de direção moral e intelectual
por parte da classe que domina ou que aspira domínio e que a faz ser
aceita como um guia legítimo para um conjunto de forças sociais
abrangente. O espaço de construção da hegemonia é a sociedade civil, o
locus da diversidade, do diálogo e do convencimento. Nas complexas
sociedades democráticas, só é dirigente quem é hegemônico. E, por lógica,
quem se opõe à hegemonia instituída, deve buscar uma atitude
contra-hegemônica.
A definição de hegemonia é importante nesse momento porque Boaventura de
Sousa Santos identifica formas hegemônicas e contra-hegemônicas que
compõem o fenômeno da globalização. Na opinião do autor português, elas
são responsáveis pelo conjunto de tensões e disputas que caracterizam o
processo em curso. Podem, também, colaborar na determinação das
possibilidades e dos limites para exercício da cidadania no Sistema
Mundial em Transição.
As formas hegemônicas da globalização são aquelas relacionadas ao já
citado Consenso de Washington, bem como a todas as instituições,
organismos, corporações transnacionais e, ainda, estados centrais do
capitalismo informacional.
As contra-hegemônicas, todas as formas de resistência, mobilização social,
formação de redes de cooperação e de afirmação de culturas, identidades e
direitos.
No artigo "Os processos da globalização", publicado na coletânea "A
Globalização e as Ciências Sociais", Boaventura classifica em quatro as
formas de globalização, de acordo com as interações que determinado
fenômeno estabelece com o "mundo".
A primeira, chamada de localismo globalizado é, no seu conceito, o
processo pelo qual determinado fenômeno local é globalizado com sucesso e
passa a estar presente em todo o mundo. O exemplo que o autor utiliza é a
língua inglesa, transformada em língua "universal" pela relevância
econômica e cultural do modo de vida anglo-saxão. Para ele, quando a
diferença vitoriosa é convertida em "condição universal" a conseqüência é
a exclusão (poderíamos dizer aniquilamento?) ou a inclusão subalterna das
diferenças alternativas.
O globalismo localizado reflete o impacto específico, numa determinada
região do planeta, das práticas transnacionais, como a devastação de
florestas, o aquecimento global ou o fluxo de capitais e de bens
culturais. O risco real de desaparecimento de determinadas ilhas do Oceano
Pacífico pela elevação dos mares é um eloqüente exemplo das conseqüências
locais de uma ação global, no caso o efeito estufa.
Cosmopolitismo é toda a forma de resistência ao sistema de trocas
desiguais, por parte de grupos, indivíduos, instituições, classes, regiões
e mesmo estados nacionais. As formas cosmopolitas de globalização são
contra-hegemônicas por proporem lógicas, valores e sistemas diversos de
integração mundial. Podem ser organizadas ou não, ou, ainda, articuladas a
partir de movimentos universalizantes, de ações identitárias, bem como
frutos da política tradicional ou dos novos agentes sociais. O Fórum de
Porto Alegre é a manifestação objetiva dessa Babel de resistências, bem
como dos limites que a inexistência de um organização unificada apresenta.
Registre-se, porém, que a estruturação em rede dos movimentos
caracterizados como cosmopolitismo torna virtualmente impossível seu
extermínio.
Já o patrimônio comum da humanidade é tudo aquilo que pode ser objeto de
lutas transnacionais pela proteção e, nas palavras de Boaventura (2002, p.
70), pela "desmercadorização de recursos, entidades, artefatos, ambientes
considerados essenciais à sobrevivência digna da humanidade". O traço
definidor do que é patrimônio da humanidade é tudo aquilo cuja
sustentabilidade[15] somente pode ser garantida em escala global, como as
reservas de água potável, os oceanos, as fontes de combustível, a
biodiversidade das florestas, entre tantos exemplos.
Embora a globalização seja um processo "único", que atinge de maneiras
diversas e com intensidade diferentes todos os habitantes do planeta, a
definição de que existem movimentos contra-hegemônicos dentro do fenômeno
abre caminhos para que a idéia central deste trabalho seja desenvolvida.
Afinal, no que o autor classifica como cosmopolitismo está a maior parte
das possibilidades de construção de uma política que tenha nos Direitos
Humanos sua referência maior.
Mas, mesmo dentro dos movimentos que podemos chamar de cosmopolitas,
existem tensões e contradições de toda espécie. Isso porque a globalização
trouxe consigo um processo de discussão sobre a identidade em todos os
níveis da humanidade, que atinge desde os grupos étnicos até as questões
de gênero, passando, é claro, pelos estados nacionais. Na citação a
seguir, Boaventura reconhece isso:
O tempo presente surge-nos como dominado por um movimento dialético em
cujo seio os processos de globalização ocorrem de par com processos de
localização. De fato, à medida que a interdependência e as interações
globais se intensificam, as relações sociais em geral parecem estar cada
vez mais desterritorializadas, abrindo caminho para novos direitos às
opções, que atravessam fronteiras até há pouco tempo policiadas pela
tradição, pelo nacionalismo, pela linguagem ou pela ideologia, e
freqüentemente por todos eles em comum. Mas, por outro lado, e em aparente
contradição com esta tendência, novas identidades regionais, nacionais e
locais estão a emergir, construídas em torno de uma nova proeminência dos
direitos às raízes. Tais localismos, tanto se referem a territórios reais
ou imaginários, como a formas de vida e de sociabilidade assentes nas
relações face a face, na proximidade e na interatividade (BOAVENTURA,
2002, p. 54).
A questão da identidade possui importância central em nossa discussão e
reconhecer seu papel nas sociedades pós-tradicionais é fundamental para
irmos adiante. Como afirmou Stuart Hall, em A Identidade Cultural na
Pós-Modernidade, ao referenciar-se na opinião de David Harvey:
As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele [referindo -se a
Harvey], são caracterizadas pela "diferença"; elas são atravessadas por
diferente divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de
diferentes "posições de sujeito" - isto é, identidades - para os
indivíduos. Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque
elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades
podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados
(HALL, 2005, p. 17).
Stuart Hall considera que a globalização atua fortemente sobre
as identidades culturais, trazendo conseqüências distintas e, em muitos
sentidos, complementares.
A primeira conseqüência é que as identidades nacionais estão passando por
um processo de desintegração, como "resultado do crescimento da
homogeneização cultural" (Hall, 2005, p. 69). Ao que parece, podemos
caracterizar esta conseqüência como uma manifestação do que Boaventura
chamou de localismo globalizado agindo sobre as identidades locais,
tornando-as "mais uniformes" em alguns de seus traços.
Outra conseqüência é que as identidades nacionais, bem como outras "locais
ou particularistas", estão sendo reforçadas pela "resistência à
globalização"[16]. Se pensarmos no caso dos curdos[17], dispersos em pelo
menos três países, ou, ainda, dos bascos, teremos bons exemplos disso. Mas
é possível ir além, apontando outros grupos identitários que fortaleceram
seus laços no último período histórico, como os indígenas de toda a
América.
A terceira conseqüência apontada por Hall é que novas identidades,
classificadas por ele como híbridas, estão tomando o lugar das identidades
nacionais.
Pensemos nos animês japoneses, desenhos animados que desde os anos 70 se
popularizaram, mas que a globalização tornou onipresentes no final do
século XX e princípios do XXI. Eles articulam referências à cultura
tradicional japonesa (muitas vezes buscam um passado idealizado) com
estruturas de narrativas típicas de seriados americanos, sendo assistidos
por crianças e adolescentes de todo o mundo. A cerca deles, é interessante
registrar que a pesquisadora Sonia Bibe Luyten descreveu em Mangá, O Poder
dos Quadrinhos Japoneses, como a moderna produção japonesa de arte
seqüencial[18] foi fortemente influenciada pela popularização da TV no
pós-guerra, cuja programação era constituída, em grande parte, por
"enlatados" americanos. Se há um exemplo eloqüente de hibridismo,
certamente é esse.
Hall alerta, porém, que é pouco provável que as identidades nacionais irão
desaparecer com a globalização. Ao que tudo indica, segundo o autor, novas
identidades "globais" surgirão, bem como novas identificações "locais"
também aparecerão. A síncrese parece ser o traço mais relevante da
"modernidade tardia"[19]. Ou, como afirma Stuart Hall:
Parece que a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as
identidades centradas e 'fechadas' de uma cultura nacional. Ela tem um
efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de
possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as
identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas;
menos fixas, unificadas ou trans-históricas (HALL, 2005, p. 87).
Em A Identidade Cultural na Pós-modernidade, Hall comenta o caso do juiz
americano Clarence Thomas[20], indicado por George Bush em 1991 para a
Suprema Corte americana. Bush pai imaginava que, ao indicar um negro com
posições conservadoras ele conseguiria um amplo apoio de todos os setores
da sociedade americana, fortemente marcada por clivagens de todos os
tipos.
No entanto, o que o então presidente obteve foi uma divisão na opinião
pública sem "nenhuma lógica" aparente. Havia negros liberais contrários à
indicação de um conservador e conservadores racistas idem, sem falar das
feministas e de outros grupos de opinião.
Hall utiliza esse exemplo para ilustrar uma idéia importante: a de que já
não há mais uma "identidade mãe" capaz de substituir todas as demais, como
a identidade de classe, por exemplo, conceito central para os marxistas.
Ele afirma que a identificação não é automática, ou, nas sua palavras:
Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é
interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode
ser ganha ou perdida. Ela tornou-se politizada (grifo meu). Esse processo
é, às vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma política de
identidade (de classe) para uma política de diferença (HALL, 2005, p. 21).
Esta identidade politizada é a que caracteriza os diversos movimentos
sociais, que afirmam-se a partir da diferença, da opinião e dos interesses
comuns. E, para a compreensão dos Direitos Humanos como um "mínimo
denominador comum" na ação política, a discussão sobre a formação de tais
identidades politizadas assume uma importância relevante, sendo a base da
terceira parte deste trabalho.
Assim, se a globalização (seja contra-hegemônica ou hegemônica) é o teatro
no qual os atores que reconhecem na alteridade um bem desenvolvem seus
papéis, uma nova política emancipatória - chamada por Giddens de política
de vida[21] - será aquela capaz de fazer dessa diferença sua força
criadora. Ou, retomando a citação de Hall, a que promova a mudança de uma
política de identidade de classe para uma política de diferença.
Antes, porém, faz-se necessário caracterizar a origem dos Direitos
Humanos, bem como sua evolução e as transformações pelas quais passaram.
Para isso, o capítulo dois será guiado pelo espírito da afirmação de Marx
de que "nada que é humano me é estranho", pois nada que é humano deixa de
estar incluso nos Direitos Humanos, sobretudo a aceitação do outro.
[1] "Blade Runner" situa-se na extremidade oposta aos seriados no estilo
"Star Trek", cuja visão sobre os efeitos da tecnologia é essencialmente
positiva.
[2] Os replicantes eram andróides, gerados com tecidos orgânicos e tempo
limitado de vida. Serviam para trabalhos insalubres, missões arriscadas
demais aos humanos e até mesmo para o "lazer" dos oficiais.
[3] Segundo o dicionário "Novo Aurélio", alegoria é a "exposição de um
pensamento sob forma figurada" e "ficção que representa uma coisa para dar
idéia de outra".
[4] É interessante registrar que, segundo Castells, o primeiro gene humano
foi clonado em 1977.
[5] Segundo Bobbio e Matteuci, a palavra política origina-se de polis,
termo grego "que significa tudo o que se refere à cidade e,
conseqüentemente, o que é urbano, civil, público e, até mesmo sociável e
social". Ele registra que na época moderna o termo passa a ter outros
significados, como "ciência do Estado", "doutrina do Estado", etc.
[6] Giddens identifica as micropolíticas como os novos movimentos sociais,
entre eles o feminismo, a ecologia, a paz e os Direitos Humanos,
ressaltando que eles não são "totalizadores", não pretendendo "se apoderar
do futuro como fizeram as versões mais ambiciosas do socialismo".
[7] Norberto Bobbio diz que existem duas tendência básicas de significação
para a palavra ideologia. Um significado fraco, que seria "um conjunto de
idéias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função
orientar os comportamentos políticos coletivos"; também um significado
forte, originado no conceito de Ideologia de Marx, que a vê como "uma
crença falsa" ou "falsa consciência das relações de domínio entre as
classes".
[8] No conceito de Manuel Castells, fluxos são "as seqüências
intencionais, repetitivas e programáveis de intercâmbio e interação entre
posições fisicamente desarticuladas, mantidas por atores sociais nas
estruturas econômica, política e simbólica da sociedade".
[9] No dia-a-dia, a expressão utilizada é a sigla TI, abreviatura de
tecnologia da informação.
[10] A existência de uma rede eletrônica global seria, para Castells, a
base material da revolução em curso.
[11] O termo que ele utiliza é morcellement.
[12] Boaventura credita o conceito ao Grupo de Lisboa.
[13] Anthony Giddens afirma que o neoliberalismo deu início a processos
radicais de mudança, mas seguindo à lógica da expansão de mercados. Sua
referência, sem dúvida, é a desconstrução do welfare state, promovida pela
"onda neoliberal" dos anos 80 e 90. Ele acha, ainda, que o neoliberalismo
é distinto do conservadorismo, sendo hoje mais comumente associado ao
termo "direita".
[14] No Dicionário Aurélio, dominação é o "o exercício do poder sobre
indivíduos ou grupos".
[15] No site www.sustentabilidade.org.br, encontramos o conceito de que
sustentabilidade é um "processo que, além de continuar existindo no tempo,
revela-se capaz de: (a) manter padrão positivo de qualidade, (b)
apresentar, no menor espaço de tempo possível, autonomia de manutenção
(contar com suas próprias forças), (c) pertencer simbioticamente a uma
rede de coadjuvantes também sustentáveis e (d) promover a dissipação de
estratégias e resultados, em detrimento de qualquer tipo de concentração
e/ou centralidade, tendo em vista a harmonia das relações
sociedade-natureza".
[16] Entendo resistência aqui como uma ação de afirmação, pois me parece
impossível hoje, por maior que seja vontade de um grupo, estar fora do
processo de globalização.
[17] O caso dos curdos ganhou especial destaque na mídia a partir dos
conflitos no Iraque.
[18] Os quadrinhos são conhecidos como arte seqüencial, por contarem uma
história através de uma seqüência de desenhos.
[19] Hall utiliza o termo modernidade tardia como o mesmo sentido de
pós-tradicional ou pós-moderno.
[20] Thomas foi acusado por uma mulher negra, Anita Hill, de assédio
sexual, o que mobilizou as feministas americanas.
[21] Para Giddens, a política emancipatória é "uma política de
oportunidades de vida e, portanto, fundamental para a criação de autonomia
de ação". Embora ela permaneça vital, a política de vida deixa de ser de
oportunidades e passa a ser de "estilo de vida".