Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira
Márcio Felipe Salles Medeiros
Tendo como argumento
principal a ideia desenvolvida na tese de doutorado Pós-modernidade,
Política e Educação/UFSM-2003, de que, a condição
pós-moderna é contraditória, e privilegiando os aspectos
produtivos desta condição, analisamos, neste artigo, a
questão do hibridismo resultante da interação homem-máquina,
e as relações desta questão no que diz respeito ao exercício
de uma nova cidadania no contexto do capitalismo
tecnocientífico.
Nesta análise, destacamos a proliferação de novas
subjetividades, as ressignificações sobre a percepção do
universo social, e os reordenamentos em todas as esferas da
vida pós-moderna, com profundas implicações culturais e
sociopolíticas, resultantes da emergência das novas
tecnologias de informação e comunicação.
Esta produção é resultado dos trabalhos desenvolvidos na
linha de pesquisa Globalização, novas tecnologias e
implicações socioculturais do Grupo de Pesquisa/CNPq
Globalização e Cidadania em perspectiva interdisciplinar.
Nas sociedades contemporâneas, os objectos híbridos da ciência e tecnologia ocupam uma centralidade cada vez maior nas experiências vividas, no quotidiano e nas dimensões corporais e identitárias, nos modos de governação política e de regulação das interacções entre o Estado e os cidadãos. Este número temático pretende dar um contributo para o questionamentzo crítico e reflexivo, da parte das ciências sociais, das implicações sociais, éticas, políticas e ideológicas dos processos de conformação mútua da cultura, da tecnologia e das identidades. (Machado e Brandão in Introdução)
Índice da Revista
Nota Prévia (Manuel Carlos Silva)
Introdução (Helena Machado e Ana Maria Brandão)
Somos todos ciborgues: aspectos sociopolíticos do desenvolvimento tecnocientífico (Holgonsi Siqueira e Márcio Medeiros)
Territórios Contaminados, corpos contaminados: Estado, nuclearidade e cidadania em Portugal (José Manuel Mendes e Pedro Araújo)
Questões científicas nos projetos de investigação em embriões realizados em Portugal (Bruno Rodrigues Alves e Susana Silva)
Through the looking-glass: a critical review of sociology and medicine ( Ângela Marques Filipe)
Modernidade e sofrimento: contribuições para o estudo do caso da perturbação do pânico (Marta Roriz)
Vigilantes eletrônicos no Rio de Janeiro: agenciamentos sociotécnicos e pesquisa em tecnologia (Bruno de Vasconcelos Cardoso)
Dimensões e Impactos da ficção científica forense: que efeitos CSI? (Filipe Santos)
Downloads de música, blogs e juventude: guerrilha cultural ou crime? (Sérgio Perales Francisco)
Arte e tecnologia: da idéia de reprodução técnica de Walter Benjamin às propostas de Museu Virtual (Bruno Rodrigues e Giulia Crippa)
Género e tecnologias da informação e da comunicação no espaço doméstico: não chega ter, é preciso saber, querer e poder usar (Maria João Simões, Soledad Las Heras e Amélia Augusto)
Recensões
Hermínio Martins
Experimentum Humanum Civilização Tecnológica e Condição Humana (Rita Gomes Correia)
Richard Hindmarsh e Barbara Prainsack (eds.)
Genetic Suspects: Global governance of forensic DNA profiling (Filipe Santos)
Catarina Frois (org.)
A Sociedade Vigilante Ensaios sobre identificação, vigilância e privacidade (Rui Vieira da Cruz)
Ficha Técnica:
Centro de Investigação em Ciências SociaisEdição/reimpressão: 2011
Edição/reimpressão: 2011
Páginas: 200
Editor: Edições Húmus
ISSN: 1646-5075
Preço: 12
Somos todos
ciborgues:
aspectos sociopolíticos do desenvolvimento tecnocientífico*
Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira**
Márcio Felipe Salles Medeiros***
Resumo
A emergência de novas tecnologias tem permitido a proliferação de novas
subjetividades, promovendo re-significações sobre a percepção do universo social
e re-ordenamentos em todas as esferas da vida pós-moderna com profundas
implicações culturais e sociopolíticas. Neste sentido, partindo das perspectivas
de Bruno Latour, Donna Haraway e Chris Gray, temos como objetivo central
discutir a questão do hibridismo resultante da interação homem-máquina, e as
relações desta questão no que diz respeito ao exercício de uma nova cidadania no
contexto do capitalismo tecnocientífico.
Palavras-chave: capitalismo tecnocientífico,
hibridismo, nova cidadania
* Artigo publicado na Revista Configurações Nº 08 (Outubro de
2012) do CICS Centro de Investigação em Ciências Sociais - Universidade do
Minho/Portugal - Número Temático: Cultura, Tecnologia e Identidade - ISSN
1646-5075
* * Agradecemos aos pareceristas que, em seu anonimato, procederam à avaliação
deste artigo, com valiosas observações que contribuíram para o aprofundamento e
coerência interna do mesmo.
** Doutor em Educação. Professor Associado do Programa de Pós-graduação
Mestrado e do Curso de Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal de
Santa Maria/UFSM. Líder do Grupo de Pesquisa/CNPq Globalização e Cidadania em
perspectiva interdisciplinar (homepage: www.angelfire.com/sk/holgonsi; e-mail:
holgonsi@yahoo.com.br).
*** Mestre em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria/UFSM.
Graduado em Ciências Sociais/UFSM. Bolsista CAPES (e-mail:
medeiros.mfs@gmail.com).
1. Questões introdutórias
[...] jamais abandonamos a velha matriz antropológica. Jamais deixamos de
construir nossos coletivos com materiais misturados aos pobres humanos e aos
humildes não-humanos. Como poderíamos desencantar o mundo, se nossos
laboratórios e fábricas criam a cada dia centenas de híbridos, ainda mais
estranhos que os anteriores, para povoá-lo? (Latour, 1994: 113)
Marcado pela conjugação da ciência, tecnologia e informação, o capitalismo
tecnocientífico (no qual capitalismo, tecnologia e ciência condicionam-se
reciprocamente) configurou uma rede complexa que vai além das transformações de
caráter técnico, influenciando e sendo influenciada pela totalidade do sistema
sociocultural contemporâneo. Reestruturou as formas de operação dos mercados, a
organização do sistema bancário e de créditos, o mundo do trabalho e do consumo,
as formas de organização dos trabalhadores e de outros grupos sociais, as
questões educacionais e as relações sociais e humanas. Conforme caracteriza
Santos (1996: 12),
é um momento histórico de acelerações superpostas, concomitantes, as quais
impõem novos ritmos ao deslocamento dos corpos e ao transporte das ideias
[...] acrescentam novos itens à história, e uma nova evolução das potências e
dos rendimentos, com o uso de novos materiais e de novas formas de energia, o
domínio mais completo do espectro eletromagnético, a expansão demográfica, a
explosão urbana e a explosão do consumo, o crescimento exponencial do número de
objetos e do arsenal de palavras.
Um contexto no qual o papel das tecnociências (de informação, robótica, biônica,
nanotecnologias e biotecnologias) se torna preponderante, transformando e
conjugando as duas dimensões essenciais da vida humana, ou seja, o tempo e o
espaço tradicionais em um meio técnico-científico-informacional(1). Um meio
que é híbrido de tempo cronológico e espaço urbano (reais) com um tempo
intemporal(2) e espaço eletrônico (virtuais), imprimindo novos ritmos e novos
hábitos aos indivíduos.
Neste meio, o cotidiano do homem pós-moderno é marcado por inúmeras conexões
digitais, as quais se refletem nos âmbitos sociocultural e político em
decorrência das práticas ciberespaciais (não apenas na WWW, mas em qualquer
espaço da cidade pós-moderna). As cidades e as práticas socioculturais se
redefinem sob o circuito de impulsos eletrônicos, os quais, de acordo com
Castells (1999), ao se constituírem como base material do capitalismo
tecnocientífico, possibilitam a formação de redes de interações. Redes que se
expandem e abrem possibilidades ilimitadas a todos que a elas estão integrados.
Mas também é neste contexto que os processos da vida considerados naturais são
alterados. Citamos aqui os desenvolvimentos da biomedicina, os quais
possibilitaram manipulações em todas as áreas da vida humana, inclusive com
implantes de tecnologias no corpo humano, formatando não apenas o corpo
físico, mas também as maneiras de pensar, sentir e imaginar, ou, como diz
Guattari (1990: 48),
na era das revoluções informáticas, do surgimento das biotecnologias, da
criação acelerada, de novos materiais e de uma maquinização cada vez mais fina
do tempo, novas modalidades de subjetivação estão prestes a surgir.
Ainda concordando com Guattari (1990), salientamos que, a partir do conjunto das
mutações tecnocientíficas, o que está em questão é a maneira de viver daqui em
diante sobre o planeta, tornando-se, cada vez mais, necessário considerarmos a
vida como resultado de circuitos tecnocientíficos, institucionais e econômicos.
Entendendo de forma ampla, relacionamos com esta nova maneira de viver, as novas
palavras, os novos conceitos e novos significados aos existentes, que emergem
como produtos das tecnociências e de suas mudanças socioculturais. Novos
léxicos, que, embora abertos aos questionamentos/dúvidas sobre suas funções
sociais e filosóficas, são mediadores entre as várias dimensões da vida no mundo
tecnocientífico.
Pós-modernidade, todas as info/nano/bio-tecnologias, pós/trans-humanos,
ciberespaço, ciborgue, e inúmeros outros conceitos e categorias que constituem a
cibercultura, proliferam-se a partir de uma axiomática comum chamada
tecnociências(3). Tecnociências, cujos produtos fogem da rigidez das
especificidades, das clarezas e das oposições que acompanhavam a etapa anterior
(moderna) do capitalismo.
Salientamos que, ao focalizarmos esta questão em nosso trabalho, estamos
querendo chamar a atenção para [...] a funções ativa, ética e política de tais
neologismos, é propor uma nova tarefa: reescrever todas as coisas familiares em
novos termos e assim propor modificações e novas perspectivas ideais [...]
(Jameson, 1996: 18), as quais, com suas implicações socioculturais, realizam-se
de forma intensificada, sendo este o diferenciador dos processos que se
desenvolvem sob o capitalismo tecnocientífico.
Reescritas, modificações e perspectivas que, de um lado, nos colocam frente às
incertezas, inseguranças e riscos de grandes consequências, e, de outro lado,
trazem-nos como exigências a compreensão de convergências, inter-relações e
interações, ou seja, de complexidades.
Complexidades que resultam de toda sorte de colagens/fusões e bricolagens, para
as quais, em nosso trabalho, evidenciamos o termo hibridismo(4), pois
acreditamos que o mesmo se apresenta como um abrangente ressonante cultural. Não
seria uma unidade escondida, mas firma-se como uma expressiva dimensão do
capitalismo tecnocientífico e também como nosso horizonte epistemológico. Usando
uma análise de Latour (1994), diríamos que é através do termo hibridismo que
se expressa a mistura contemporânea do conhecimento, do interesse, da justiça e
do poder; a mistura do céu e da terra, do global e do local, do humano e do
inumano, enfim, da natureza e da cultura. Não é apenas um produto das
tecnociências, mas também as tornam possíveis.
Sob este prisma, as práticas de hibridação trazem produtivas reflexões sobre as
relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Através de um profundo
questionamento das fronteiras, colocam-nos frente à necessidade de rompermos com
as visões fragmentadas sobre sociedade e tecnociência também nos possibilitam
contradizer classificações tipicamente modernas que proliferaram sob todas as
dimensões.
Com base nestas questões, que de várias formas estão intimamente relacionadas
com as revoluções sociais de nosso tempo-espaço pós-moderno, temos como objetivo
central, neste artigo, analisar as possibilidades advindas do atual
desenvolvimento tecnocientífico para o exercício de uma nova cidadania. Para
isto, discutiremos as clássicas fronteiras que configuram a oposição entre o
homem e
a máquina, a partir dos conceitos de hibridismo com base na figura do ciborgue.
Trata-se de uma análise teórica, cujos fundamentos principais buscamos nos
pensamentos de Latour (1994, 2008), Haraway (2000) e Gray (2002, 2005).
Julgamos que nossa análise contribui para o debate sobre as questões que giram
em torno da relação tecnologia-ciência-sociedade, ao evidenciar as contradições
produtivas da tecnociência como possibilidades para uma ressignificação do
conceito de cidadania. Assim, nossa opção teórico-metodológica é por categorias
e conceitos que expressam as inter-relações entre os desenvolvimentos
atuais e seus contextos sociopolíticos. Entendemos que, embora estas categorias
e conceitos estejam relacionados a teorias que ainda encontram certas
resistências ideológicas, permitem capturar os contornos, as dinâmicas e
principalmente as possibilidades da tecnociência contemporânea, especificamente
aqui, no que tange à questão da cidadania.
2. Ciborgues: sobre o rompimento das fronteiras
Considerando a análise de Hayles (2005), podemos dizer que a constituição de
nossa subjetividade está intimamente vinculada às tecnologias que nos rodeiam.
Esta premissa tem sido a base de uma série de estudos, os quais têm por
finalidade compreender a relação interativa entre humanos e não-humanos
(máquinas) na sociedade, buscando trazer elementos para o debate sobre as
transformações que decorrem desta relação.
As tecnologias apresentam uma importância capital para os afazeres diários;
entretanto, a compreensão desta interação é dificultada pela íntima integração
das tecnologias com a nossa forma de vida. Assim, tornam-se tecnologias
transparentes (Clark, 2003), ou seja, invisíveis para os usuários. No entanto,
mesmo não sendo notadas devido à naturalização, influenciam nossa subjetividade.
Como enuncia Hayles (2005:243), aquele humano que interage com a máquina, ao
final desta interação, não é mais o mesmo. Novos sentidos e significados emergem
deste processo, que ocorre, desde muito tempo, a partir da primeira ferramenta
produzida pelo homem (Clark, 2003; Ihde, 2009). Entretanto, no final do século
XX, este fenômeno tem se tornado mais intenso ao mesmo tempo em que suas
consequências têm sido denunciadas. Hoje, praticamente todas as nossas
atividades diárias (locomoção, alimentação, lazer, etc.) são perpassadas por
algum componente eletrônico.
Haraway (2000), uma das precursoras deste debate, através de seu Manifesto
Ciborgue, tinha como horizonte a construção de uma política pós-feminista que
não categorizasse a situação da mulher frente ao homem, mas rompesse com as
dicotomias estabelecidas socialmente, produzindo uma nova compreensão sobre a
forma de pensar o feminismo no final do século XX. Sua preocupação foi
estabelecer uma política que não tivesse por pressuposto constituir um estatuto
feminino ou masculino, mas um estatuto híbrido, em última instância, um estatuto
humano desprendido da sexualidade binária. Neste contexto, a autora propôs a
formulação de uma metáfora irônica, a qual, ao ser apresentada com esta
qualificação, evocasse um mapeamento da realidade, se colocasse de forma crítica
e se constituísse como uma análise possível de mudança social. Com estes
objetivos, introduziu na análise a figura do ciborgue, utilizando-a como crítica
às velhas formas de fazer política, sobretudo em relação ao movimento feminista.
Tomando o ciborgue como um organismo cibernético, um híbrido de máquina e
organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção
(Haraway, 2000: 40), Haraway, através deste conceito, coloca-nos uma relação de
duplo hibridismo, já que o mesmo é apresentado tanto como um híbrido de máquina
e organismo, como um híbrido de realidade e ficção. Assim, a autora aponta para
uma relação simétrica(5) entre o real e o imaginário. A constituição do conceito
passa por uma construção imaginativa, que, no entanto, assume uma projetividade
concreta na análise do plano social, o que torna a dicotomia moderna entre
realidade e imaginação uma simetria necessária para compreender o ciborgue em
sua amplitude conceitual.
Sob esta perspectiva, exige-se que a análise não parta da ficção para a
realidade social, tampouco da realidade social para a ficção, mas seja
perpassada por essa dupla perspectiva, fazendo interagir o mundo ficcional com a
realidade social. Neste processo, são produzidas alterações mutuamente
alimentadas, cujo resultado traz convergências híbridas nas quais as fronteiras
são dissolvidas. Como diz Haraway (2000: 43-44), [...] com o ciborgue, a
natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de
apropriação ou de incorporação pela outra. Em um mundo de ciborgues, as relações
para se construir totalidades, a partir das respectivas partes, incluindo as da
polaridade e da dominação hierárquica, são questionadas.
Assim, o que estamos querendo destacar aqui é que, vinculado à transição de
estágios do capitalismo, em um momento em que a forma de organização dos espaços
sociais e, sobretudo, a forma de relacionamento entre indivíduo e máquina
estavam sendo paulatinamente ressignificadas, o conceito de ciborgue acabou
validando sua perspectiva mais ampla. Na verdade, o Manifesto nos faz pensar o
ciborgue como a figura-síntese do discurso e das práticas tecnocientíficas em
geral.
Este conceito encontra ressonância na análise de Clark (2003), o qual
relacionando a perspectiva do ciborgue com o contexto cultural, ressalta a
capacidade adaptativa do cérebro humano através da constante interação do mesmo
com o corpo e com outras ferramentas, perdendo-se a dimensão do que é nosso
corpo, o que é humano e o que é nossa mente.
Isto é porque nossos cérebros, mais do que os cérebros de quaisquer outros
animais do planeta, estão prontos a buscar e consumar tais relações íntimas com
recursos não-biológicos que são tão brilhantes e capazes de pensamento abstrato
como nós somos. É porque nós, ciborgues-natos, sempre prontos para mesclar
nossas atividades mentais com as operações da caneta, do papel e eletrônicos,
que nós somos capazes de compreender o mundo como nós fazemos. (Clark, 2003: 74)
Deste modo, o relacionamento entre humanos e não-humanos é uma constante na
história da humanidade, que nos permitiu desenvolver tecnologias e modificar
nossa forma de vida. Com o advento de circuitos eletrônicos e outras formas de
tecnologia, nossa capacidade de assimilação de objetos não-humanos, alterando
nossa forma de pensar e compreender o mundo, ou seja, nossa subjetividade, vem
sendo potencializada de forma drástica.
Esta subjetividade, ressaltada por Hayles (2005), é motor que tem desenvolvido
as tecnologias em geral, sobretudo as computacionais. Este efeito ocorre também
em sentido contrário, no qual as tecnologias alteram a subjetividade, produzindo
um loop no processo em que existe um condicionamento mútuo, o que evoca uma
compreensão, através de um olhar complexo, na análise das relações entre humanos
e máquinas. Assim, nosso entendimento, aqui, sobre o ciborgue alinha-se com a
perspectiva de Haraway (2000), ou seja, tomamos o ciborgue como uma figura que
apresenta um potencial analítico, crítico e construtivo. Ao mesmo tempo que
produz denúncia e análise, produz a construção de um novo estatuto através de
uma severa crítica às dicotomias. Com este novo estatuto, temos também a
possibilidade de um olhar crítico e reflexivo sobre o panorama que se desenha
através da emergência/predominância das tecnociências.
Latour (1994) também criticou a perspectiva moderna sob a qual a interação entre
humanos e não-humanos é extirpada, ocultando os híbridos formados no decorrer
das pesquisas, tornando-as plasticamente objetivas. Ao se referir aos
modernos, que orientam os discursos sobre as ciências e produzem estatutos de
separação entre a ciência e a sociedade, Latour (1994: 33) argumentou que eles
inventaram nosso mundo moderno, um mundo no qual a representação das coisas
através do laboratório encontra-se para sempre dissociada da representação dos
cidadãos através do contrato social.
Nesta crítica, Latour (1994) apresenta a produção científica como
intrinsecamente híbrida, constituída por uma mescla de elementos reais,
coletivos e discursivos. Assim, quando pensamos o espaço de construção dos
artefatos científicos, pensamos simetricamente uma rede de elementos, que,
convergindo para um nó formalizado pelo laboratório, produz as tecnologias que
irão afetar a sociedade.
Os objetos não são meras coisas, colocadas no mundo e atribuídas de sentido pela
sociedade constituída ao seu redor, mas ativos, produzindo sentidos próprios em
processos de interações simétricas, o que permite pensar sujeito e objeto como
misturas inseparáveis. Os objetos são compostos por natureza (estrutura de
partículas) e cultura (elementos construídos socialmente), sendo que dissociar
um elemento do outro incorrerá em perda parcial ou total, tanto no sentido de
produção, quanto no direcionamento da tecnologia para o meio social a que se
destina.
Cabe lembrar que esta atuação dos não-humanos, enquanto ativos, na produção de
sentidos na sociedade é constantemente fruto de equívocos, pois, ao se atribuir
agência aos mesmos, constantemente pensa-se em dar poderes místicos a eles
(Weber, 2010); ou seja, acredita-se que os não-humanos irão agir como os
humanos. A agência, quando é estabelecida, ocorre de forma bilateral, sendo
necessário considerar tanto o par humano quanto o não-humano.
Sob esta perspectiva, o conceito de hibridismo atua como um desconstrutor do
estatuto da modernidade, reconstituindo as mesclas entre natureza e cultura,
humano e não-humano, em uma série de misturas simétricas que conformam a
sociedade e a produção científica. O estudo da sociedade, bem como o estudo da
produção científica, não podem ser dissociados, pois os elementos que conformam
os dois espaços, assim como as implicações causadas por mudanças nas
articulações dos elementos que os conformam, produzem efeitos que extrapolam o
campo de percepção desses espaços, em consequências interconectadas.
Tanto o conceito de ciborgue trabalhado por Haraway (2000), como o de
hibridismo, analisado por Latour (1994), apresentam a característica de promover
uma compreensão do universo social através da dissolução de barreiras,
ultrapassando as relações binárias estabelecidas pelo estatuto moderno.
A perspectiva de ruptura, quando se fala na interação entre humanos e
não-humanos, é uma constante em várias obras que tratam do assunto; entretanto,
a concepção de ciborgue assume dimensões bastante peculiares, apresentando
abrangência mais ou menos ampla em relação a esta interação.
Para Gray (2002: 2), o ciborgue (cyborg) é qualquer tipo de organismo animado
que se mescla a um elemento inanimado conformando um sistema. Deste modo, podem
existir ciborgues humanos ou não-humanos, sendo necessário para isso possuírem
parte natural e parte construída através de um direcionamento humano. Esta
concepção de ciborgue está relacionada ao processo de ciborgização (6)
(cyborgization), ou seja, de transformação de determinados elementos naturais,
como, por exemplo, a gravidez, em um processo mesclado com tecnologias nas quais
suas consequências produzem reordenamentos políticos e transformações
paradigmáticas.
Gray (2002) foca sua análise nas profundas transformações/implicações da
ciborgização nos campos econômico, político, social e cultural. Sob esta ótica,
sua concepção de ciborgue assume uma conotação essencialmente política. Esta
perspectiva amplia a visão de Haraway (2000), para a qual o ciborgue é uma
mistura de humanos e máquina, de realidade e ficção, ou seja, é uma figura que
necessita de elementos humanos, seja na construção do imaginário como na
construção dos corpos.
A perspectiva de Haraway (2000) é corroborada pelos estudos de Hayles (1999 e
2005), cuja concepção de pós-humano, pensada através da literatura, busca
estabelecer uma relação entre universo ficcional e real, produzindo uma
compreensão de humano que ultrapasse a noção de ser natural, naturalizando a
ideia de interação com máquinas. De outro lado, está bastante próxima à
concepção de Latour (1994, 2000 e 2008), na qual o universo humano, ao dar
sentido sobre as coisas, relaciona-se com os não-humanos, os quais não são
inertes, apresentando ação na produção de sentidos.
Em oposição, para Gray (2002: 30), esta produção de sentidos dos não-humanos é
uma ilusão, pois, ao atribuirmos agência aos não-humanos, estaremos retirando a
capacidade de pensar a esfera política. Para o autor, estes não-humanos estariam
atendendo a demandas políticas humanas e, desta forma, seriam construídos pela
sociedade para atendê-la, posicionando a política como essencialmente humana.
No entanto, se pensarmos, por exemplo, em softwares ligados ao mercado de ações
que fazem milhares de cálculos produzindo gráficos variados que serão analisados
pelo consultor, a produção destes gráficos independe da capacidade humana, pois
basta ligar o software que ele executa a ação. De outro lado, a forma de ação
deste software irá influenciar a forma como o consultor vai produzir o seu
trabalho, gerando um efeito adaptativo com o pesquisador. Esta perspectiva
adaptativa do ser humano, interagindo com elementos não-humanos e produzindo
alterações na sua percepção, é aquilo para que Clark (2003) chama atenção na sua
concepção de ciborgue, estando esta relacionada, de um lado, à agência dos
não-humanos, e, de outro, à plasticidade humana de relacionamento.
Entendemos que as perspectivas analíticas sobre a relação humanos-não-humanos de
Latour, Hayles (2005), Haraway (2000) e Clark (2003), embora com enfoques
distintos, atuam de forma complementar na compreensão dos hibridismos
resultantes da tecnociência contemporânea. Já a perspectiva de Gray (2002)
distancia-se de certa forma, ao problematizar as questões políticas inerentes
aos não-humanos, enquanto para Latour (2008), em sua Teoria do Ator-Rede, estes
são inseridos como elementos políticos no processo de análise do social. Para o
autor, a sociedade deve ser analisada em forma de rede, da qual façam parte
elementos humanos e não-humanos, produzindo ação com importâncias isonômicas.
Esta rede inclui elementos políticos, culturais, econômicos, enfim, tudo aquilo
que afeta direta ou indiretamente tanto os humanos quanto os não-humanos.
Gray (2002) contribui para a abordagem da interação entre humanos e não-humanos,
pensando a política de forma híbrida com outros elementos humanos, ou seja, não
existem campos separados. Economia, cultura, ciência e outros elementos sociais
se influenciam mutuamente, não podendo ser analisados como espaços
independentes, mas sistemas interligados. Sob este viés, aproxima-se da
concepção de Latour (1994, 2000 e 2008); entretanto, desconsidera que estes
elementos possam ser analisados sob o viés dos não-humanos.
Assim, estabelecer uma forma de análise essencialmente complexa, vinculada à
compreensão de misturas no campo político (Latour, 2004 e 2008), torna-se
indispensável na promoção de um modelo político que vá além da visão moderna de
ciência, a qual é ainda chancelada pelo modo de organização de comitês e na
forma de análise de políticas públicas (Jasanoff, 2005).
As tecnologias que permitem a constituição do ciborgue estão dispersas nas mais
diversas áreas. Um exemplo desta interação é o aparelho de cirurgia denominado
da Vinci (7) . Com este sistema, é possível que o médico faça cirurgias de alta
precisão controlando um sistema de pinças a distância através de uma tela. Com
isto, a cirurgia torna-se quase um jogo, no qual perder significa a morte do
paciente. No campo da biotecnologia, temos vários exemplos, sendo talvez os mais
polêmicos a clonagem e a utilização de células-tronco embrionárias. Neste
universo, as políticas geram profundas desestabilizações. Como bem ressalva
Jasanoff (2005), elementos cognitivos e políticos são mutuamente alterados,
evocando uma nova forma de pensar a política fora dos cânones modernos.
Neste aspecto, Gray (2002) traz uma ampla gama de exemplos demonstrando como a
constituição de ciborgues produz mudanças políticas na concepção do mundo e na
ação do Estado. Um caso bastante emblemático é a questão da guerra, na qual os
soldados não são mais humanos lutando contra humanos, mas ciborgues
tecnologicamente avançados, tendo superioridade bélica aquele que possui a
melhor e mais produtiva simbiose.
Outro ponto importante ressaltado através de vários exemplos, como manipulação
genética, mudanças na forma de gravidez e órgãos artificiais, diz respeito à
contínua desnaturalização de órgãos, componentes humanos e evolução(8) frente
a um projeto político que prevê alteração, de forma bastante ampla, das
capacidades humanas. Este projeto de ciborgização (cyborgization) (Gray, 2002)
faz parte da composição política atual, e a compreensão de suas formas e
implicações é crucial para pensarmos em outras forma de cidadania.
No meio deste debate está a figura do ciborgologista (cyborgologist) (Gray,
2002), ou seja, de ciborgues altamente influenciados pela política de
ciborgização, os quais atuam na produção de novas tecnologias para criar
ciborgues. Esta figura, contida em laboratórios e escritórios, é decisiva para a
compreensão de como os ciborgues estão sendo constituídos, bem como em que
sentido a capacidade humana tem sido amplificada. Porém, o ciborgologista não
deve ser pensado apenas como um mero construtor de ciborgues, mas também como um
agente que estuda, envolve-se e dissemina a figura/metáfora do ciborgue, sendo,
portanto, um agente político.
Pensar este tipo de relação, de produção de tecnologias, quem as produz, como
são apropriadas, significa romper com padrões essencialistas e dicotomistas.
Isto porque, como ressalva Gray (2002), não existem padrões de homogeneidade,
tanto no campo da tecnologia quanto no campo da forma de associação. Algumas
tecnologias podem ser imensamente produtivas, assim como outras imensamente
negativas, e olhar de forma crítico/reflexiva torna-se essencial.
Romper com a visão dicotomista no campo da análise é uma das principais
dificuldades, pois exige tratar de forma equivalente os elementos humanos e os
não-humanos dentro dos jogos políticos. Como bem lembra Latour (2004), ao
tratarmos de uma política que leve a sério os não-humanos, devemos romper com a
velha forma de fazer política que se limitava aos humanos, e ao mesmo tempo,
romper com as novas nas quais os não-humanos são exaltados. Significa tratar
de forma isonômica natureza e cultura, humanos e não-humanos.
Produzir reflexões sobre temas relacionados à utilização de tecnologias, meio
ambiente, simbioses entre humanos e não-humanos envolve complexificar as
análises. Em muitos casos, o meio ambiente (Latour, 2004), bem como outros
não-humanos estão no foco da discussão. Deste modo, pensar na perspectiva do
ciborgue evoca uma ruptura epistemológica e uma ruptura política, constituindo
uma compreensão paradigmática ampla de misturas necessárias para se conseguir
produzir compreensão sobre o panorama no qual estamos inseridos e no qual as
tecnologias estão intimamente conectadas com a forma de interagirmos com o
mundo. A ciborgização (Gray, 2002) como projeto político/ científico do século
XXI, também coloca os não-humanos (Latour, 1994, 2000, 2004 e 2008) como agentes
ativos neste processo, exigindo uma análise que tenha misturas consideradas
profanas para a perspectiva moderna.
3. Somos todos ciborgues: possibilidades para o exercício da
nova cidadania
A figura do ciborgue coloca-nos frente a um novo contexto marcado por
hibridismos diversos que estão repercutindo profundamente na cultura humana
neste início do século XXI. A anulação da distância entre o orgânico e o
maquínico com a intensa produção de atores híbridos re-significa nossa maneira
de viver. Haraway (2000) já afirmava na época de seu manifesto que, no final do
século XX, somos todos híbridos teóricos e fabricados, de máquinas e organismo,
enfim, somos todos ciborgues, e, à medida que o capitalismo tecnocientífico e
informacional foi se desenvolvendo, sua afirmação foi se concretizando e
tornando-se cada vez mais radical.
Vivemos hoje um momento histórico-social em que qualquer futuro imaginado
torna-se possível devido à dinâmica real da produção tecnocientífica, e esta
relação entre a imaginação e a tecnociência resulta em uma proliferação de
ciborgues. Temos, assim, o que Gray (2002) nominou de tecnociências ciborgue (9),
as quais, através de seu crescente poder, estão transformando nossa sociedade em
uma sociedade ciborgizada a uma velocidade incrível, especialmente nos domínios
da medicina, da guerra, do entretenimento e do trabalho, redefinindo os
conceitos mais básicos da existência humana.
No mundo atual, a tecnociência está
constantemente desconstruindo a ideia do impossível (Gray, 2002: 194),
interferindo na materialidade fundamental de nossos antes naturais (10) atos de
ver, falar, ouvir, sentir, imaginar, enfim, viver e morrer. Esta materialidade é
agora descoberta e/ou sofre a interferência de novos artefatos tecnológicos, os
quais, integrando-se à totalidade de nossas práticas e delas também adquirindo
nossas características, reafirmam a necessidade
do questionamento das fronteiras entre humanos e não-humanos.
A partir de Castells (1999), diríamos que as tecnociências tornaram-se
amplificadoras e extensões de nosso corpo e de nossa mente, questionando os
limites da criação e ação puramente humanas e propiciando diversas formas
de simbiose entre humanos e máquinas. Neste sentido concordamos com Vinge
(1993) quando afirma que estamos entrando em um caminho de construção de
super-humanos, uma vez que interfaces computador/humano podem tornar-se
tão íntimas que os usuários podem razoavelmente ser considerados com uma
inteligência super-humana (Vinge, 1993).
A possibilidade desse tipo de convergência ocorre, em grande medida,
conforme Haraway (2000), a partir da informação estruturada como matéria
da organização social e material em um sentido amplo. Tanto os elementos
humanos como os não-humanos podem ser traduzidos em bits informacionais
que facilitam a realização de misturas e arranjos entre múltiplos elementos, e
alimentam as redes que se tecem nos/entre os mais diversos campos da cultura
contemporânea (11).
Concordamos assim com a perspectiva de que os corpos, a todo momento,
são re-escritos e re-significados, tanto quantitativa como qualitativamente, pelas
influências dos desenvolvimentos do capitalismo tecnocientífico, pois, como diz
Haraway (2000: 99), esses ciborgues da vida real [...] estão ativamente reescrevendo
os textos de seus corpos na sociedade. A sobrevivência é o que está em
questão nesse jogo de leituras. Compartilhando esta ideia de Haraway, Gray
(2002: 194) destaca que os [...] seres humanos tornaram-se um sistema de
ciborgues, através do qual os textos dos humanos e das tecnologias, no contexto
da natureza, estão cada vez mais entrelaçados com a civilização.
Porém, as re-escritas e re-significações das maneiras de viver, em uma
sociedade-cultura ciborgizada, são feitas em um complexo emaranhado de
questões sociais, culturais, políticas e econômicas, logo, não são livres de contradições.
A figura/constituição dos ciborgues coloca-nos frente a possibilidades,
limites e problemáticas socioculturais do contexto tecnocientífico pós-moderno (12). Sobre estes aspectos, a leitura política das tecnociências ciborgue
continua ainda bastante marcada pelo pessimismo em relação ao desenvolvimento
tecnológico.
Ao apresentar a relação entre tecnociência e pós-modernidade, Gray (2002:
15) afirma que, para muitos humanistas, as mudanças tecnológicas e científicas
que têm produzido materialmente e qualitativamente o pós-modernismo,
ameaçam nossa própria humanidade [...]. Em sua análise, Gray critica, principalmente,
o conhecido pessimismo de Baudrillard (1991), para o qual a tecnociência
é apenas produtora de simulacros, levando assim ao desaparecimento
da realidade. Pós-modernamente, podemos dizer que estas visões se referem a
um modelo de sistema fechado (13), pois evidenciam apenas as negatividades e as
problemáticas do atual processo de ciborgização.
Entendemos que o problema das visões resultantes deste modelo de sistema
fechado é que as mesmas, ao apropriarem-se das tecnociências somente sob seus
aspectos não-produtivos, acabam disseminando o repúdio e o medo às tecnologias
e seus constantes novos processos. Sob este modelo, ciência, tecnologia
e sociedade são tomadas de maneira isolada e sem qualquer possibilidade de
se inter-relacionarem. Este modelo também não leva em consideração, como
referencia Jasanoff (2004: 16), que [...] o design da tecnologia raramente é acidental;
reflete as faculdades imaginativas, as preferências culturais e os recursos
econômicos ou políticos de seus fabricantes e usuários [...].
Destacamos, portanto, a necessidade da constituição de um modelo de
sistema aberto, que não faça apenas a celebração simplista da tecnociência e
seus processos, mas que, sem negar/desconhecer as suas contradições, considere
também as possibilidades a partir de uma avalição positiva (ou progressiva (14))
da sociedade-cultura ciborgizada. Um sistema aberto, que reconheça que a simbiose
entre ciência, tecnologia e sociedade representa mais do que cada parte e,
assim, expresse uma compreensão ampla e rica da figura do ciborgue, da sociedade
e tecnociências ciborgues.
Sob esta ótica e no emaranhado de questões contraditórias que perpassam
a ciborgização pós-moderna, as novas tecnologias hibridizaram os espaços reais
com os virtuais, desterritorializando a economia, a política, a sociedade e a cultura e rompendo com as limitações tradicionais do tempo e do espaço. Esta
reorganização do tempo e do espaço, além de influenciar em questões institucionais
preestabelecidas pela modernidade, [...] atua na transformação do conteúdo
e da natureza da vida social cotidiana (Giddens, 2002: 10). Analisando
a construção de contra-hegemonia no processo de globalização, Santos (2004)
destacou as tecnologias emergentes no final do século XX como instrumentos de
produção e divulgação de novos arranjos para a criatividade e, aproximando-
se do pensamento de Lévy (1999), chegou a falar em um verdadeiro mundo da
inteligência.
Concordamos, com Vinge (1993), que as novas tecnologias, através de
interfaces altamente interativas que intensificaram a integração humanos-
máquinas, permitem a produção de competências e capacidades científicas,
sociais, políticas e culturais intensificadas se considerarmos as mesmas como
resultado apenas das condições humanas/biológicas dadas. É através destas
competências e capacidades, que indivíduos e grupos estão a fazer alterações e
novos traçados em condições que, sob o signo da modernidade, eram inquestionáveis.
Intensificando a reflexividade social, as tecnociências pós-modernas
possibilitam a configuração de uma [...] ordem pós-tradicional, na qual os
indivíduos têm, mais ou menos, que se engajar com o mundo em termos mais
amplos se quiserem sobreviver nele [...] (Giddens, 1997: 15).
O que queremos evidenciar aqui é que este mundo da inteligência
(Santos, 1996), ou um mundo de pessoas inteligentes (Giddens, 1997), e,
portanto, de reflexividade social aumentada, é um mundo de ações, reações e
exigências de todas as ordens, impulsionadas e/ou facilitadas pelo desenvolvimento
tecnocientífico atual e que expressam o exercício da cidadania tanto em
sua dimensão civil, como nas dimensões política e social. Reforçamos nossa
ideia com uma afirmação de Jasanoff (2004: 14), quando diz que [...] não
seria totalmente imprudente escrever a história política do século XX em termos
de suas realizações tecnocientíficas mais marcantes, como: as descobertas do
átomo e da bomba, o gene e sua manipulação, a comunicação por rádio, televisão,
voos, computadores, microcircuitos e a medicina científica.
Contraditoriamente, se as tecnociências ciborgue podem oferecer aos
Estados e a outras instituições uma série de novos poderes, também oferecem
aos indivíduos novas e amplas oportunidades de comunicação. De acordo com
Gray (2002), o entendimento de cidadania está sendo reconfigurado pelas tecnociências
ciborgue e pelos desafios colocados à própria ideia de humano, provenientes
da genética, da informática, da medicina e das tecnologias militares.
Rompendo as fronteiras tradicionais e manifestando descontentamentos
com a rigidez da política moderna e seus mecanismos ortodoxos, os corpos,
as vozes e os hibridismos, que representam/constituem a figura do ciborgue
oferecem possibilidades produtivas radicais. Gray (2005: 143) diz que [...] o
cyborg pode ser um lugar para aprender uma nova concepção de agência [...]; e, destacando o pensamento de Judith Butler, acrescenta, uma prática instituída
em um campo de restrições.
O exercício da cidadania pós-moderna diz respeito ao corpo ciborgue
quando o mesmo, através da engenharia genética e outras amplas variedades de
intervenções, se torna uma questão de escolhas e opções, ou seja, de algo que
desejamos ser (15). Temos aqui uma íntima relação entre cidadania pós-moderna/
auto-identidade/reflexividade, favorecida pelas tecnologias ciborgues em que a
reflexividade do eu se estende ao corpo, e este passa a ser parte de um sistema de
ação em vez de ser um mero objeto passivo (Giddens, 2002: 76).
Enquanto o corpo moderno se submetia aos padrões estabelecidos de comportamento,
o corpo pós-moderno apresenta possibilidades para ser um sistema
de ação, o que significa múltiplas oportunidades de autodesenvolvimento propiciadas
pelas tecnociências e expressa fecundamente também o significado da
metáfora ciborgue. Sob esta ótica, destacamos, como exemplo, as cirurgias de definição/
redefinição do sexo (16), as quais, além das possibilidades para o exercício da
nova cidadania através do estímulo da consciência reflexiva, significam também
a diluição da rígida compreensão/oposição moderna entre masculino e feminino.
As mudanças em aspectos íntimos da vida pessoal, resultantes da reflexividade
sobre o eu em contextos de informações que se renovam cotidianamente,
são importantes questões políticas relativas à autoidentidade/identidade
do ciborgue no que tange a uma nova cidadania ao possibilitá-lo ser um agente
de resistências; ou seja, além de ser uma entidade física, o corpo é um sistema
de ação, um modo de práxis (Haraway, 2000; Giddens, 2002; Gray, 2002).
Concordamos com a ideia de Giddens (2002), que, reafirmando o papel/importância
das tecnologias reprodutivas e da engenharia genética nestas escolhas e
decisões sobre o estilo de vida, diz que, por mais íntimas/pessoais e privadas
que sejam, estabelecem conexões sociais de grande amplitude. Porém, preferimos
quando Haraway (2000) e Gray (2002), categoricamente, destacam a
importância de se ir além, ou, como diríamos, de colocar as escolhas e decisões
refletidas individualmente em redes de resistências.
De um lado, Haraway (2000) critica os dualismos dos socialistas americanos
e feministas entre corpo e mente, animal e máquina, idealismo e materialismo
e as fontes analíticas que insistem num corpo orgânico imaginado que
integre a nossa resistência, e, com um interessante confronto dialético envolvendo as novas tecnologias de produção e reprodução do ciborgue, expresse
a necessidade de conexão entre as práticas de resistência no contexto pós-
moderno. De outro lado, Gray (2002) explicita a importância de práticas
políticas (ou micropolíticas) em rede, e, através de seu conceito de cidadão
ciborgue, expande o sentido do que compreendemos como resistência e reposiciona
o que entendemos por agência na era informacional. Nesta era, o senso
de conexão dos ciborgues com os seus instrumentos e com os Outros tem
aumentado consideravelmente.
Com base nestas perspectivas, pontuamos a questão do ciberespaço, o qual
caracterizaremos aqui como um espaço ampliado de possibilidades, uma
contradição produtiva, se lembrarmos as origens marcadamente militares da
internet e sua atualidade que também muito se presta aos objetivos do capitalismo
tardio. A partir do pensamento de Haraway (2000) sobre a filiação dos
ciborgues, diríamos que a internet é filha ilegítima do militarismo e do capitalismo
tardio, mas extremamente infiel às suas origens. Seus pais são, afinal,
dispensáveis (Haraway, 2000: 40).
Assim, como um espaço ampliado de possibilidades, em um sentido geral,
temos, com a internet, a possibilidade, que a cada dia se concretiza quantitativa-
mente, a experiência de nos tornarmos um ciborgue. Se aceitamos a ideia de Gray
(2002), seguindo os passos de Haraway (2000), de que, para se ser um ciborgue
não precisa necessariamente de se configurar uma síntese homem-máquina,
então devemos lembrar que, quando nos conectamos à rede e entramos no espaço
cibernético, nos tornamos um ciborgue em um sentido muito real, ampliando-se
tanto a sociedade ciborgue como as implicações do processo de ciborgização.
Considerando-se que pela rede correm fluxos de poder de todas as ordens,
sendo eles do domínio do Estado, dos domínios das transnacionais, mas também
dos domínios dos cidadãos ciborgues para o enfrentamento destes e de
outros poderes centrais, colocamos como possibilidade política, por excelência
da internet, o remodelamento das redes reais de poder no contexto do capitalismo
pós-moderno. Através de novas formas de organização e demandas as
mais diversas, os cidadãos ciborgues ressignificam o entendimento sobre o que
é participação, reconfigurando o sentido da cidadania.
Ao apresentar sua análise sobre as questões referentes à ciberdemocracia, Gray
(2002) destaca a emergência do ciberespaço como um novo pseudobiossistema
marcadamente ciborgizado que, segundo ele, nos coloca frente a importantes
reflexões políticas, como por exemplo, será que ele vai se tornar apenas outra
droga para a alienação como a televisão se tornou? (17) mais um centro de
lucro para as megacorporações? Ou será um lugar para as pessoas se comunicarem
e construírem comunidade uma região virtual que pode incentivar a
autonomia e a democracia? (Gray, 2002: 48-49).
Neste sentido, ao visualizarmos a internet (e todas as novas tecnologias
de informação, comunicação e entretenimento) como um espaço ampliado de
possibilidades no atual contexto sociopolítico, entendemos que estas tendências
coexistirão. Não é um espaço moderno (e logo, puro/limpo), mas um espaço
pós-moderno, híbrido de formas/práticas ciborgues envolvendo ciber-reacionários,
ciber-progressistas, ciber-anarquistas, ciber-capitalistas, ciber-policiais,
ciber-feministas e outros inúmeros ciber. Baseados neste hibridismo, lemos as
negatividades do ciberespaço como movimentadoras de possibilidades produtivas
como a autonomia, a cidadania e a democracia.
É bastante ilustrativo quando Gray (2002: 47-48) afirma que a internet é a
tecnologia perfeita para promover zonas autônomas temporárias (18), ou
seja, [...] um espaço de liberdade real, mas temporária, no seio do Estado do
espetáculo/informacional [...]. Portanto, mesmo presos ou dependentes das
decisões de instituições capitalistas, os ciborgues cidadãos têm um espaço
privilegiado para fazerem emergir novas práticas de participação e resistências.
Ao implementar materialmente a chamada lógica de redes, analisada sob
diferentes perspectivas teóricas (Castells, 1999; Haraway, 2000; Gray, 2002), a
internet potencializa a constituição de corpos políticos ciborgues (Gray,
2002), os quais não são apenas corpos locais potenciais para a promulgação de
novas subjetividades, mas, interligados no mundo cibernético através de diversas
próteses, constituem práticas corporais de poder que operam no sentido da
reconstrução dos órgãos políticos instituídos. O espaço ampliado de
possibilidades atinge seu significado maior então, quando entendemos a internet
como mecanismo de conexão nos e entre os novos movimentos políticos que
emergiram e caracterizam a política pós-moderna.
Utilizando-se da internet e das redes
sociais, os novos movimentos tornam
visíveis suas demandas e lutas. Através de amplas hibridações, lutam contra a
ordem política e sociocultural em que estão inseridos, desafiando as decisões
de governos em todas as partes do mundo, questionando os lucros do também
ciborgue capitalismo financeiro e, através de cada ato, conclamando para um
processo de globalização mais democrático. Por meio dessa lógica interacional,
os ciborgues, no mundo-como-um-todo, tomam conhecimento, solidarizam-se e, de diversas maneiras, engajam-se em ações que visam a [...] modificar
de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de
experiência, poder e cultura [...] [sendo] o poder dos fluxos mais importante
que os fluxos do poder [...] (Castells, 1999: 497).
Representativo deste poder dos fluxos, destacamos o Fórum Social
Mundial, que, utilizando-se do ciberespaço, amplia o processo de hibridação
entre os novos movimentos e as práticas de nova cidadania do cidadão ciborgue. O
encaminhamento do Fórum-2005 é especialmente significativo quando a Organização,
utilizando-se da internet, disponibilizou um sistema de buscas em formulários
das oficinas e seminários, forneceu a lista de contatos e endereços eletrônicos
dos diversos movimentos responsáveis pelas iniciativas, buscando com isto que
os diálogos e articulações, entre os que lutam por um mundo novo, comecem antes
do Fórum Social Mundial, contribuindo para tornar as atividades posteriores, no
espaço tradicional, mais ricas, mais diversas e mais capazes de gerar
alternativas e ações (FSM, 2005).
Se a informática contemporânea tornou o
Estado pós-moderno logisticamente
viável (Gray, 2002), assim também o fez com as práticas pós-modernas
de contrapoder, propiciando multiplicidades, diversificações nas negociações
e confrontos que dão concretude ao corpo político ciborgue (Gray 2002;
2005), caracterizado pelas fronteiras mutáveis de sua representação. O corpo
político ciborgue, formado por uma rede de ciborgues interligados, supera as
hegemonias do Estado através de sua auto-organização e automobilização.
Exemplo recente deste corpo político ciborgue é o que foi chamado de
Primavera Árabe, movimento que, a partir do sacrifício do jovem tunisiano
Mohamed Bouazizi (19), ganhou força e se espalhou pelo Mundo Árabe com uma
rapidez extraordinária. As ações no ciberespaço (tendo papel central a
juventude ciborgue), burlando a censura e opressão dos Estados, tornaram
possível
a organização e as práticas de resistência que culminaram nas insurreições
populares. O corpo político ciborgue tem sua eficiência porque se constrói na
rede e em rede, tornando impossível sua desconstituição (ou desligamento)
pelo poder central do Estado. O insucesso do Egito, ao tentar uma desconexão
geral, mostra a força da dinâmica desta rede, que se caracteriza pela dispersão,
abertura, comunicação ampliada, expansão ilimitada e um sistema altamente
integrado de informação, como denomina Castells (1999: 79).
O corpo político ciborgue tem mostrado suas práticas de resistência através
de inúmeros outros movimentos e demandas das mais diversas. Do Oriente
(direitos humanos) à Europa (direitos sociais e problemáticas da política
institucional)
e Wall Street, o corpo político ciborgue em suas múltiplas comunidades
e conexões, redefine o que hoje entendemos por máquina política, comunidade
política, participação e cidadania, e amplia as possibilidades das políticas de
associação (Haraway, 2000; Gray, 2002). As ações políticas deste corpo
constituem
uma política híbrida (Gray, 2002), desde os aspectos ideológicos da
constituição e reinvidicações até às questões de espaço, estabelecendo um
processo
de conexão e interação entre o espaço moderno e o espaço pós-moderno
de lutas.
Assim, ao contrário do que muito se tem
apregoado, as tecnociências apresentam
contradições produtivas que ampliam as possibilidades para o desenvolvimento
humano em sua totalidade. O ciborgue não tem como única opção ser
uma massa muda, como havia proclamado Baudrillard (1985), mas, através
das tecnociências ciborgue tem a possibilidade de refletir sobre o seu corpo,
sua subjetividade e estilos de vida, e, em rede, constitui um corpo político
ciborgue,
que no lugar da passividade e da aceitação dos poderes instituídos, tem um
espaço ampliado de possibilidades para o exercício de uma nova cidadania.
4. Considerações finais:
traçando os desafios
A partir de nossa análise, podemos
dizer que um dos traços característicos
do capitalismo multinacional/tardio foi a consolidação da relação entre ciência
e tecnologia. A tecnociência pós-moderna, em sua estreita relação com a cultura
e a política atuais, intensificou as chamadas mudanças do contemporâneo
que se processaram em todos os aspectos da vida social no final do século
XX. No cerne destas mudanças, está o enfraquecimento das metanarrativas da
modernidade e, com isto, das oposições binárias que insistiam nas separações e
fragmentações.
Destacamos aqui, como produto representativo da tecnociência, a figura
do ciborgue, que surge, como disse Haraway (2000), da transgressão das clássicas
fronteiras entre animais e humanos, entre humanos e máquinas e entre
o físico e o não-físico. Com estas transgressões, o ciborgue é uma mistura e
produz misturas por muitos consideradas profanas. Expressando ironia, crítica
e denúncia da separação entre natureza e cultura, o ciborgue reposiciona a
relação
entre seus elementos.
Entendemos então a figura do ciborgue como representativa dos hibridismos
contemporâneos, e como tal, nos coloca frente a uma rede de conexões
envolvendo novos fenômenos e indefinições que geram possibilidades de vários
tipos. Esta figura/metáfora perpassou nosso trabalho expressando as
inter-relações
atuais entre ciência-tecnologia-cultura-poder. Estas redes são tecidas pelas
tecnociências ciborgues através de nós que representam novas tecnologias
reprodutivas, clonagem, organismos transgênicos, nanotecnologias, mudanças
climáticas, novas tecnologias de informação, comunicação e entrenenimento e
tantos outros nós que destes emergem. Uma rede de relações que configura
uma sociedade-cultura ciborgizada e em constante processo de ciborgização.
Com base nestas ideias e nas teorias que embasaram nosso artigo, reafirmamos
que somos todos ciborgues (ou não seria melhor dizer somos cada
vez mais ciborgues?). Para alguns, a afirmação ainda pode causar estranheza;
para outros, incredulidade. Existe um grupo que resiste, e outro que mostra
satisfação. Se pensarmos com Gray (2002), vamos dizer que somos uma sociedade
ciborgue, mas negamos isto porque não queremos assumir a responsabilidade pelo que fazemos com a tecnociência. Na verdade o que se está negando é
a conexão com o mundo em que se está inserido. Desta maneira, muitos, ainda
insistindo nas separações entre ciência, tecnologia, sociedade, cultura e política,
produzem apenas acusações ao desenvolvimento atual da tecnociência. Porém,
o enfoque do atual processo de ciborgização apenas como um problema acaba deixando de lado as implicações políticas, éticas e socioculturais deste processo.
Portanto, o princípio estruturante de nossa análise, e que reafirmamos
aqui, é o de que as tecnociências ciborgues não produzem apenas contradições
não produtivas, mas apresentam possibilidades produtivas para a cultura como
um todo.
Sobre este princípio, e com base em nosso objetivo central, confluímos nossas
ideias para a relação entre as tecnociências ciborgues e as práticas de uma
nova cidadania. Afirmamos, então, que desta relação emergem proliferações,
deslocamentos e participações que podem influir progressivamente nas políticas
de vida. Entendemos que esta influência vai na direção daquilo que Giddens
(1997) chamou de democracia das emoções, mas que também abre possibilidades
para a democracia em um âmbito mais global. Sob este aspecto, o corpo
político ciborgue acabou evidenciando o fracasso da política moderna, baseada
em metanarrativas, rigidez, fechamentos e oposições.
Privilegiando a questão do ciberespaço como representativo da ciborgização
pós-moderna, relacionamos o ciborgue e o corpo político ciborgue com
uma nova cidadania, concluindo que as complexas conexões entre tecnociência,
indivíduos, grupos e movimentos sociais podem reconfigurar os poderes oficiais/
tradicionais e também, a partir das palavras de Haraway (2000), podem
nos ajudar na tarefa de reconstruir as fronteiras da vida diária em conexão parcial
com os outros, em comunicação com todas as outras partes.
Como principais desafios colocados pelo processo de ciborgização, destacamos
aqui a abertura para a aceitação de nossa condição de ciborgues, e de
sociedade-cultura ciborgizada. Entendemos e concordamos com as ideias de
Haraway (2000) e Gray (2002), que a metáfora do ciborgue é de grande valia
para a compreensão de quem somos e no que podemos nos tornar. Portanto,
esta aceitação pode ter um caráter libertador e emancipador, mas também nos
coloca frente ao desafio da responsabilidade sobre nossas práticas tecnocientíficas,
o que significa recusar uma demonologia da tecnologia como muito bem
expressou Haraway (2000).
Estas questões convergem para o desafio de renovação das Ciências Sociais
e Humanas neste contexto histórico concreto. Estamos nos referindo aos desafios
teórico-metodológicos que nos são proporcionados pensar através das teorias
que aqui apresentamos. Ao questionar o binômio natureza-cultura, constituinte
central das ciências sociais, as tecnociências ciborgues e a figura do ciborgue
colocaram em questão também categorias analíticas, formas de categorizar
e formas de compreender o universo social. Mostraram os limites destas formas
quando tratamos de processos, fenômenos e conceitos dinâmicos, que para sua
compreensão crítica requerem um tratamento interdisciplinar.
Concordamos com a crítica que Jasanoff (2004), ao analisar as inter-relações
entre ciência-tecnologia-cultura e política, faz às disciplinas das Ciências
Sociais
e Humanas neste contexto de alta complexidade. Reafirmamos, portanto, a
insuficiência das teorias, categorias e conceitos ainda dominantes na
sociologia,
na ciência política e na economia, para uma apropriação efetivamente crítica dos
hibridismos geradores e resultantes do atual desenvolvimento tecnológico.
Destacamos a importância da área de estudos da ciência e tecnologia, pela
natureza interdisciplinar da mesma. A partir de diferentes enfoques teórico-metodológicos, abrem-se possibilidades para uma compreensão rica das incertezas,
dos riscos, dos processos irregulares e suas possibilidades, associados às
atuais tecnociências ciborgue. Portanto, torna-se indispensável a inter-relação
entre muitas raízes disciplinares, incluindo aí História, Filosofia, Sociologia,
Política, Direito, Economia e Antropologia.
Compreendemos que um olhar centrado nas contradições produtivas das
tecnociências ciborgue constitui-se como princípio político complexo, instigante
e mais sofisticado em relação ao olhar tradicional que gira em torno apenas das
negatividades.
Se entendemos que nossa realidade é fluida, dinâmica, feita de colagens e
bricolagens de todas as ordens, inclusive as contraditórias, e nela se tecem
juntos
tecnologia, ciência, cultura, política, conhecimento, vontade e poder, poderemos
não só afirmar que somos todos ciborgues, mas, que preferimos ser um
ciborgue a ser um deus.
Ainda que ambos tenham sido engendrados na mesma dança espiralada, prefiro
ser um cyborg a ser uma deusa (Haraway, 2000: 99).
Notas
(1) De acordo com Santos (1996: 20), O meio técnico-científico-informacional é
um meio geográfico onde o território inclui obrigatoriamente ciência, tecnologia
e informação.
(2) Castells (1999) usa esta expressão para se referir à temporalidade dominante
em nossa sociedade, e que, gerada pela influências das novas tecnologias de
informação e comunicação, é uma temporalidade que causa confusão sistêmica na
ordem sequencial dos fenômenos (cf. p. 489).
(3) Latour (2000) torna-se importante referencial sobre esta temática, ao
estabelecer a relação do conceito de técnica e ciência em sua obra Ciência em
Ação. Já Haraway (2000), ao desenvolver sua célebre perspectiva do ciborgue,
estabelece relações que permitem refletir sobre o conceito de tecnociência no
sentido de suas implicações sociais, levando em consideração a questão da
produção tecnológica e o contexto de circulação.
(4) Trabalhamos aqui com este termo de maneira ampla, e sob a ótica dos estudos
sociais da ciência e tecnologia, ou seja, para analisarmos questões referentes
às relações entre homem-máquina tal como proposto por Latour (1994, 2000, 2008)
e Haraway (2000). Porém, frisamos que também em análises mais específicas, como,
por exemplo, sobre o hibridismo cultural tal como proposto por Bhabha (1998) ,
Hall (2003) e Canclini (1998) , entre outros, o que está em jogo, em última
análise, é a questão das fronteiras. Em nosso entendimento, este aspecto tornou
o termo um abrangente cultural, pois o mesmo está presente de maneira central
nas descrições e análises tanto no campo pós-moderno da arte, da literatura e da
política, como também na economia.
(5) Bruno Latour trabalha com o conceito de simetria generalizada, o qual está
presente de forma direta e indireta dentro de toda a sua construção teórica.
Este conceito coloca que tanto natureza quanto cultura devem ser vistos nos
mesmos termos, ou seja, que ambos são mutuamente constituídos, ao mesmo tempo
que estão intimamente interligados (Latour, 1994).
(6) De acordo com Gray (2002), a ciborgização (cyborgization) representa o
ápice do longo relacionamento entre humanos e máquinas com implicações que
abrangem todos os campos da cultura contemporânea.
(7) Informações em
http://www.davincisurgery.com/davinci-surgery/davinci-surgical-system/
(8) Evolução no sentido darwiniano.
(9) Cyborg techosciences.
(10) Ou, como diria Jameson (1996: 144), antes espiritual ato de ver, ao criticar a fotografia e os
vários aparelhos de registro e de projeção.
(11) Sobre este aspecto, estão de acordo Castells (1999), Haraway (2000) e Gray (2002). Sobre os
inúmeros deslocamentos políticos e econômicos causados na cultura contemporânea pelo aumento
do poder das tecnologias de informação, encontramos uma análise aprofundada em Castells (1999)
e importantes insights em Gray (2002).
(12) Nossa relação aqui entre tecnociência e pós-modernidade segue o entendimento de Gray (2002),
quando este ao analisar os guerreiros ciborgue (cyborg warriors cap. 04), afirma que estas
mudanças refletem as normalmente atribuídas à pós-modernidade (p. 56) (These changes mirror
those usually ascribed to postmodernity), tendo como central a relação ciborgiana entre os
humanos e as tecnologias.
(13) Categorização dos modelos imaginários a partir da ficção científica, proposta por Warrick (1980),
onde o modelo de sistema fechado apresenta uma atitude negativa em relação ao computador,
enquanto o modelo de sistema aberto se caracteriza pela aceitação e pela atitude positiva.
(14) Entendemos adequado inserir em nossa análise o posicionamento de Jameson (1996), o qual,
ao apresentar um ponto de vista global sobre o capitalismo tardio, diz que os aspectos negativos
ou lamentáveis (do desenvolvimento atual) são demasiados óbvios (p. 75), sugerindo então que
façamos um esforço no sentido de uma avaliação positiva.
(15) Frisamos que estamos nos referindo aqui a processos/intervenções que são escolhidos/decididos/
consentidos pelos indivíduos, sem nos esquecermos de considerar também nestes processos as
influências dos contextos sociais em que vivemos.
(16) Este exemplo é bastante mencionado por Giddens (2002) para ilustrar a sua teoria da reflexividade
e da política de vida. Gray (2002) também faz referência ao mesmo na exemplificação de
tecnologias ciborgues, acrescentando os processos de terapias hormonais nas reconfigurações dos
sexos. Para este último, a área da medicina é onde as implicações mais surpreendentes da ciborgização
estão se fazendo mais claras e intensas (vide especificamente cap. 05 Infomedicine and the new
body da obra Cyborg Citizen, com questões também relacionadas, nos cap. 06, 07 e 08).
(17) Discordamos que a televisão tenha se tornado apenas um espaço de alienação. Teorias que
afirmam a passividade do receptor hoje são profundamente questionadas.
(18) Expressão utilizada por Hakim Bey (2001) (pseudônimo do escritor Peter Lamborn Wilson), e
que também é título de sua principal obra, para se referir a tendência de as pessoas se reunirem em
busca da liberdade: por elas mesmas, de forma voluntária e não-hierarquizada.
(19) Ao atear fogo contra seu próprio corpo como reação ao assédio das autoridades tunisinas no que
dizia respeito às suas condições (ou falta de condições) de trabalho, Mohamed Bouazizi tornou-se
um símbolo da luta contra o desemprego, a pobreza, a falta de liberdade e a corrupção política no
Mundo Árabe.
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