Folha de S.Paulo 12/07/2003
O mundo ainda vai ouvir muito sobre a Terceira Via
ANTHONY GIDDENS
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"
Seis anos atrás, quando a primeira Cúpula da Governança Progressista
reuniu líderes de centro-esquerda de todo o mundo, perto de Londres, a
situação política dos EUA e da Europa era muito diferente da atual. Bill
Clinton estava na Casa Branca e era um dos mais ardentes defensores desse
tipo de encontro. Dos 15 países da União Européia, 11 eram governados por
partidos ou coalizões de centro-esquerda. A Terceira Via
-social-democracia modernizada- parecia estar triunfando em praticamente
todos os lugares. Agora quase tudo isso parece ter mudado. Os republicanos
dominam o cenário nos EUA, e a União Européia está sob o comando da
direita. Será que a Terceira Via morreu?
Absolutamente não, é o que respondo. Os partidos de centro-esquerda podem
ter perdido terreno na União Européia, mas registraram sucessos em outros
lugares. Os governos da República Tcheca, da Hungria e da Polônia -além
dos da Suécia, da Alemanha e do Reino Unido- agora vêm seguindo programas
revisionistas fortemente influenciados pelas idéias e políticas da
Terceira Via. O mesmo se aplica ao novo governo do Brasil. O presidente
Luiz Inácio Lula da Silva abandonou a retórica esquerdista mais
tradicional de seus primeiros dias na política em favor de uma posição que
se assemelha fortemente à dos partidos social-democratas modernizantes da
Europa.
Os críticos dizem que a Terceira Via não tem conteúdo, que foi inventada
pelos especialistas em marketing político. Mas é exatamente o oposto que é
verdade. O pensamento da Terceira Via é dominado pela inovação política e
pela necessidade de reagir às mudanças sociais. Seus contornos são tão
claros como sempre foram: a reestruturação do Estado e do governo para
torná-los mais democráticos e responsáveis; a reformulação dos sistemas de
seguridade social para adequá-los aos principais riscos que as pessoas
enfrentam hoje; a ênfase na criação de empregos, acoplada à reforma dos
mercados de trabalho; o compromisso com a disciplina fiscal; o
investimento em serviços públicos, mas apenas nas áreas ligadas à reforma;
o investimento no capital humano como fator crucial para o sucesso na
economia do conhecimento; o equilíbrio entre os direitos e as
responsabilidades dos cidadãos e uma abordagem multilateralista quanto à
globalização e às relações internacionais.
Os recentes sucessos eleitorais da direita não nasceram de uma nova
ideologia política capaz de se equiparar ao pensamento da Terceira Via. O
conservadorismo compassivo pode ter ajudado George W. Bush a chegar ao
poder com enorme dificuldade, mas dificilmente se poderia classificá-lo de
uma filosofia política desenvolvida. Na Europa, a direita foi reconduzida
ao governo com base em uma onda de populismo de extrema-direita. Os temas
universais dessa "revolta populista" são a ansiedade quanto à imigração,
ao multiculturalismo e ao crime. É um movimento que se opõe às
instituições, reflete a inquietação em relação aos mecanismos democráticos
ortodoxos e se aproveita da preocupação com a perda de identidade
nacional, na Europa, e, de maneira mais geral, com o impacto da
globalização. O centro-direita normalizou alguns desses temas populistas e
os incorporou às suas perspectivas. O sucesso que obteve foi, em larga
medida, fruto do oportunismo.
O centro-esquerda continua em posição forte. Mas ninguém deveria duvidar
de que há muito a repensar. Os progressistas precisam responder não só às
questões que a direita populista colocou em foco mas também às mudanças
mundiais mais amplas. O mundo se alterou enormemente desde o começo dos
anos 90. Naquela época, o ambiente mundial parecia relativamente benigno,
com o final da Guerra Fria e a perspectiva de crescimento constante a
longo prazo. Depois de 11 de setembro de 2001, houve os conflitos no
Afeganistão e no Iraque, os protestos populares contra a globalização, o
estouro da bolha financeira e os escândalos corporativos que se seguiram.
E, com o crescimento econômico rateando em quase todas as partes, as
coisas parecem mais difíceis.
Ao formular a nossa resposta a esses desdobramentos, devemos observar as
experiências dos governos e partidos de centro-esquerda em toda a Europa,
na América do Norte e em outras partes. Precisamos, por exemplo, de uma
defesa mais robusta da esfera pública, dos bens e interesses públicos, do
que a que o pensamento progressista atual vem conseguindo apresentar.
Acredito que seja possível reviver a confiança no governo, e deveríamos
trabalhar para garantir isso. Novos modelos de governança corporativa
deveriam ter posição importante na agenda, e o mesmo se aplica a maneiras
radicais de eliminar as desigualdades, que continuam a crescer no mundo
todo.
Alguns críticos descartam esse tipo de evento, dizendo ser uma fuga à
"verdadeira política" aquela política que envolve enfrentar as
preocupações cotidianas do eleitorado e os dilemas do governo. Mas nossas
discussões terão impacto prático e poderão dar forma ao pensamento e às
práticas da esquerda por muitos anos.
Anthony Giddens, nascido em 1938, é diretor da London School of Economics
e preside os grupos de políticas públicas da Cúpula da Governança
Progressista