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A guerra dos Estados
Unidos contra o Iraque ainda não teve impacto, na prática, no
ritmo das negociações
para a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Mas especialistas
brasileiros concordam que o conflito terá efeitos geopolíticos que poderão
tanto acelerar quanto emperrar a integração continental. Incertezas à
parte, começa a crescer, do lado brasileiro e do americano, um movimento em
direção a acordos comerciais bilaterais, na perspectiva de um
enfraquecimento das organizações multilaterais e regionais."Não houve mudança
no ritmo negociador, trabalhamos como se a guerra não estivesse acontecendo",
diz o conselheiro Tovar Nunes,
coordenador-geral para as negociações da Alca do Ministério
das Relações
Exteriores. Desde novembro, Brasil e Estados Unidos
co-presidem as
negociações da Alca. Em abril, o Comitê de Negociações
Comerciais da Alca se
reúne e, em maio, o chanceler Celso Amorim se encontra com o representante comercial dos
EUA, Robert Zoellick. Qualquer mudança deverá ser sinalizada aí. O
Brasil adotará nessas reuniões um tom muito firme, avisa Nunes. "O
Mercosul vai demonstrar unidade em defesa de seus interesses no
processo de
integração." Do lado americano, Richard Fischer, ex-número dois do
USTR (Escritório de
Representação Comercial dos EUA, responsável pela negociação dos acordos
comerciais do país), diz que a diferença de posições em relação à guerra
não deve impedir um avanço das negociações para a Alca. Ele admite que
será difícil fechar o acordo de livre comércio englobando todo o continente
americano, como prevê a Alca, e sugere que seria mais fácil um acerto
entre Brasil e EUA. Se a guerra do Golfo resultar em recessão nos
EUA, o progresso em direção à Alca ficará ainda mais improvável, prevê
Fischer. Isso não significa, diz ele, que os dois países não devam
se empenhar na busca de acordos que liberalizem o comércio. A defesa
dos acordos bilaterais vem crescendo no empresariado brasileiro.
Para Raul Sulzbacher, presidente do Conselho dos Representantes
de Países Estrangeiros
da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, a União Européia (UE) estará
rachada, o que dificultará o acordo com o Mercosul, e a Alca não será
parte da agenda dos EUA. "Nessa nova geopolítica, o
multilateralismo cederá lugar às relações bilaterais." Antecipando-se
a esse cenário, a Fecomércio-SP acaba de criar um
conselho internacional para incrementar as relações
bilaterais do Brasil
com países que não são parceiros tradicionais. De início, o
grupo terá
Brasil, Espanha, México, Equador, Nicarágua, Marrocos,
Indonésia e
Bangladesh. "Nosso foco são as pequenas e médias empresas. "A
expectativa
é que novos países se juntem ao grupo. Retaliação - Os
negociadores brasileiros não têm indícios de retaliação dos EUA ao
País por causa das críticas do governo à invasão do Iraque sem
o aval da ONU. Mas Zoellick já afirmou que Washington não
poupará esforços
para defender os interesses de seu país nas negociações da
Alca. Há quem acredite que Washington se empenhará em acelerar a
Alca após a
guerra, até porque as negociações da Rodada Doha da OMC estão
travadas
pelo impasse agrícola - o que pode se acentuar com os
desacordos entre os
EUA e os países europeus contrários à guerra. Esse quadro
aponta para o
fracasso da Rodada, e os EUA poderiam se voltar com mais
vontade para as
negociações no continente americano. (OESP)
Bombas Inteligentes
destroçam a Alca
A
invasão americana do Iraque reverbera globalmente. Atinge a
credibilidade do sistema de
segurança coletiva da ONU e a coesão da Otan. Esgarça a União
Européia, evidenciando
as divergências internas e destruindo o sonho de uma política externa comum. Aqui, no
"Hemisfério Ocidental", bombardeia o projeto da Área de Livre Comércio das
Américas (Alca). A Alca é um projeto acalentado por Washington há
mais de uma década,
desde que George H. Bush - o pai do atual "pequeno Bush", na
feliz expressão de
Saddam Hussein - anunciou sua Iniciativa para as Américas. A corrente principal da
diplomacia brasileira sempre encarou a Alca como ameaça para a economia
industrial do país e para o projeto nacional de integração do Cone Sul.
Enquanto Bill Clinton pressionava pela aceleração das negociações da área
continental de livre comércio, o Itamaraty desdobrava-se para
fortalecer e ampliar o Mercosul. O sonho brasileiro consistia em reunir a
América do Sul em tomo do "núcleo duro" do Mercosul e contrabalançar as pressões
de Washington com negociações simultâneas direcionadas para os Estados
Unidos e a União Européia. O colapso argentino arruinou os alicerces
da estratégia brasileira, abrindo caminho para uma "ofensiva final
de Washington na etapa derradeira das negociações da Alca. A
Casa Branca registrou a fragilidade do Mercosul. Há dois meses,
apresentou uma proposta de tratado que conserva todo o arsenal protecionista
americano, ao mesmo tempo que divide a América Latina em fatias e
oferece as condições mais desvantajosas para o Brasil e a Argentina. Pouco
antes, o pequeno Bush tinha recebido Lula e extraído garantias de que o
governo brasileiro permaneceria comprometido, até o fim, com as
negociações da Alca. Na campanha eleitoral, Lula qualificou a Alca
como "projeto de
anexação, não de integração". Mas, independentemente das
declarações do
candidato, o sentido da reunião entre Lula e o pequeno Bush
não podia ser mais
claro: o novo governo brasileiro engajava-se na missão de "vender"
a Alca para a opinião
pública interna. A missão já era difícil antes da invasão do Iraque.
No ano passado, durante
a campanha eleitoral, um plebiscito contra a AIca organizado
pela CNBB teve a
participação de mais de 10 milhões de pessoas. Agora, depois das bombas e das crianças
mortas, a explosão do sentimento antiamericano joga uma pá de cal sobre as
esperanças de convencer a opinião pública brasileira das hipotéticas
vantagens de um bloco comercial com a hiperpotência. A AIca
tomou-se um produto invendável. O paradoxo, contudo, é que
precisamente agora Washington precisa vender a Alca. A confecção de
um esboço de tratado simbolizaria algum nível de solidariedade das Américas
com a hiperpotência, no momento em que, nas ruas do mundo inteiro,
milhões de manifestantes bradam contra a "Nova Roma". É por isso que a Casa
Branca vai pular na jugular de Lula, exigindo que o principal Estado
sul-americano compense suas declarações de crítica à guerra com atos positivos
na direção da Alça.
No
contexto da "guerra da Alca", uma batalha crucial será travada nas
próximas semanas, nas eleições argentinas. O ex-presidente Carlos
Menem, tradicional
defensor da dolarização e de "relações carnais" entre Buenos Aires e Washington, é o
candidato da Casa Branca. Sua vitória representaria o
desmantelamento completo do Mercosul e o isolamento diplomático do
Brasil. A conexão tríplice Bagdá-Washington-Buenos Aires é a nova
dor de cabeça de Lula. (Demétrio Magnoli, doutor pela USP)
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