O ABUSO DO PODER ECONÔMICO NO PROCESSO ELEITORAL


Prof. Des. Luíz Melíbio Uiraçaba Machado
Desembargador do TJ/RS; Presidente da 4ª Câmara Criminal do TJ/RS ("Câmara de Prefeitos"); ex-Presidente do TRE/RS; um dos mentores da Lei dos Juizados Especiais Civeis e Criminais (Lei nº 9.099/95) e do voto eletrônico; Professor de Processo Civil na UFRGS.

Sumário

1. Introdução.
Legitimidade do sistema representativo e lisura do processo eleitoral: Correlação. As liberdades públicas e a igualdade jurídica dos partidos e candidatos. 2. Abuso do poder econômico: dificuldade conceitual. A metodologia do caso. O caso Sebastião Paes de Almeida. 3. Abuso do poder econômico no plano conceitual. Distinção entre uso do poder e abuso. Abuso do poder econômico e corrupção: distinção. 4. Abuso do poder econômico no plano probatório. A prova do fato do uso do poder econômico e a prova do uso abusivo do poder econômico. Questão de fato e questão de direito. 5. Abuso do poder econômico no processo eleitoral: conseqüêcias jurídicas. 6. Conclusão.

1. Por força de princípios constitucionais fundamentais, somos uma democracia representativa, fundada no pluralismo partidário e político. A legitimidade do sistema depende da lisura do processo eleitoral. Esta, por sua vez, somente se alcança quando o processo é isento dos vícios do abuso do poder econômico, do abuso do poder político, da fraude e da corrupção. O pluralismo político e partidário, de seu lado, resulta, sempre, da observância do princípio da igualdade jurídica dos partidos e candidatos, concretizada pela igualdade de oportunidade de participação no processo de formação de vontade popular. No plano político, essa vontade se expressa por meio de eleições periódicas, nas quais o sufrágio seja universal e a manifestação do eleitor livre de qualquer vício.

2. Abuso do poder econômico, abuso do poder político (exercício abusivo da função pública), corrupção e fraude designam condutas ilícitas inteiramente diversas. Na verdade, porém, são conceitos indeterminados, que só podem ser classificados com base nos fatos. Tais fatos, entretanto, não poucas vezes, apresentam-se complexos, pois poder econômico, poder político e fraude se interpenetram de tal forma, que pode ser difícil sua exata qualificação jurídica.
Tudo isso considerado, conclui-se que a metodologia do caso é ainda a melhor para elaborar a doutrina capaz de auxiliar os operadores do Direito em situações concretas. De outro lado, o método indutivo é mais científico.
Abordando a temática do abuso do poder econômico, pelas circunstâncias históricas em que se verificou, o melhor paradigma é o célebre caso Sebastião Paes Almeida - Acordão nº 3.922, de 7-9-95, estampado no Boletim Eleitoral de outubro de 1965.
A espécie resumia-se no seguinte: Sebastião Paes de Almeida, dono de uma extraordinária fortuna, elegera-se Deputado Federal pelo Estado de Minas Gerais, onde jamais residira, e pretendia concorrer ao cargo de Governador daquele Estado. Teve, porém, o registro de sua candidatura impugnado., sob a alegação que obtivera seu mandato eletivo graças à influência do poder econômico. Segundo consta dos autos, fora ele o mais votado, com 80.057 votos, seguido, muito longe, por Tancredo Neves, com 58.090 votos , este o político de maior prestígio no Estado. O fenômeno não encontrava explicação política razoável. Verificou-se porém, que num passado recente, mas já alcançando o período pré-eleitoral, Sebastião Paes Almeida, por sua conta exclusiva e com enormes recursos financeiros próprios, promovera e executara melhoramentos de benefício geral em diversas localidades, tais como pavimentação de ruas, ansiosamente reclamados pela população em geral. Além disso, por atos de pura filantropia, prestara auxílio financeiro a hospitais, creches, entidades esportivas e culturais, clubes sociais, associações das mais diversas espécies, sempre desinteressadamente, jamais tendo exigido qualquer compromisso ou contraprestação. Todavia, em face das circunstâncias - ausência de tradição política ou quaisquer vínculos com o povo da terra -, a extraordinária votação alcançada só era explicável pelo reconhecimento dos eleitores aos atos de mecenato que praticara usando sua inesgotável fortuna pessoal. Ponderando tudo isso, o Tribunal Superior Eleitoral declarou o candidato inelegível por abuso do poder econômico e, por via de conseqüência, indeferiu o registro de sua candidatura ao cargo de Governador.


3. O estudo do aresto permite a elaboração da doutrina do abuso do poder econômico no plano conceitual e no plano probatório.
No plano conceitual, por uso do poder econômico tem-se o emprego de dinheiro mediante as mais diversas técnicas, que vão desde a ajuda financeira, pura e simples, a partidos e candidatos até a manipulação da opinião pública, melhor dito, da vontade dos eleitores por meio de propaganda política subliminar com aparência de propaganda meramente comercial. de que é exemplo didático o caso Getúlio Boscardin, do Rio Grande do Sul (Acórdão nº 13.428, de 4-5-93).
O uso do poder econômico, quando se faz por intermédio dos partidos e com obediência estrita à legislação pertinente, é lícito e moralmente admissível. O que o torna ilícito, e moralmente reprovável, é o seu emprego fora do sistema legal, visando a vantagens eleitorais imediatas, com o fato de intervir no processo eleitora, definindo os resultados, de acordocom determinados interesses. Sem este nexo causal, o ato abusivo, para os efeitos da ação processual constitucional, é irrelevante, embora possa ter interesse e repercussão em outras províncias do Direito.
Por suas conseqüências jurídicas diversas, é importante distinguir o abuso do poder econômico da corrupção.
Nesta, a regra é o procedimento grosseiro e corriqueiro da compra-e-venda do voto. Há sempre a ação do corruptor e um sujeito passivo, o corrompido. Na corrupção capta-se a vontade do eleitor de maneira torpe., e entre o corruptor e o corrompido, se estabelece uma relação de cumplicidade. Naquele, no abuso do poder econômico, não há a figura do corrompido; a captação do voto se faz de maneira indireta, sutil, imperceptível até mesmo para o próprio eleitor, que é o sujeito passivo. Na verdade, quer-se-lhe ganhar a adesão conquistando-lhe o coração e a mente., mediante artifícios. Por aí se vê que o titular do uso do poder econômico não age como um corruptor do eleitorado, e os meios que emprega são moralmente admissíveis. A ilicitude está no desequilíbrio, na ofensa ao princípio da igualdade de oportunidades, relativamente aos partidos e candidatos que se conduziram, no decorrer da propaganda eleitoral, dentro dos parâmetros legais.
Este último registro é de extraordinária importância. É que nos casos de corrupção , o comprometimento da lisura e normalidade da eleiçaõ se afere, logo no primeiro plano, pelas relações candidato-eleitor e, no segundo plano, pela quebra da igualdade jurídica. Já o comprometimento, pela via do uso do poder econômico, afere-se visualmente apenas no segundo plano.

4. A caracterização do uso do poder econômico é questão de fato.
No plano da prova, portanto, os fatos básicos caracterizadores do uso do poder econômico devem ser provados mediante de prova inconcussa; capaz, portanto, de gerar certeza moral. Mas sua qualificação como atos abusivos é questão de direito. Em decorrência, é desnecessário um segundo degrau de prova, tal como a comprovação documental e testemunhal de que esses fatos causaram efetivos prejuízos. A isso chega-se por meio de inferências, pois concluir se tais fatos comprometeram a lisura da eleição só pode ser o resultado da própria operação mental do julgador, autorizado por sua experiência como juiz eleitoral.
Isso tudo porque, no emprego do poder econômico, não há liame entre candidato e eleitor (como se viu); não há imediata relação a determinados eleitores; também não há como indagar dos eleitores, dado o sigilo, as razões de seu voto. Dessa forma, não há como se fazer esta prova, do nexo causal, nestes termos. Todavia, mesmo se fosse posível tal prova, que é diabólica, e não se demonstrasse qualquer prejuízo efetivo, bastaria o prejuízo potencial para autorizar a qualificação dos fatos como comprometedores da legitimidade e normalidade da eleição.

5. O emprego abusivo do poder econômico pode determinar dua s conseqüências jurídicas inteiramente diversas: a inelegibilidade do autor dos fatos abusivos e a perda do mandato do candidato eleito graças ao abuso cometido.
Cada conseqüência há de ter tratamento diverso, pois diversos são as cargas de eficácia das sentenças.
Na ação de inelegibilidade não se cuida de aplicar uma pena, nem de se decretar a perda dos direitos políticos. A sentença tem caráter meramente declaratório-eleitoral. Vale como premissa ou preceito de caráter negativo de elegibilidade, que vai ser considerado se e quando o réu da ação julgada procedente quiser candidatar-se a cargo eletivo. A sentença, por sua vez, só mantém vigência por determinado lapso de tempo.
A procedência de ação de inelegibilidade, como se viu, exige a prova inconcussa do fato do uso do poder econômico. Mas, para se qualificarem tais fatos como abusivos e capazes de comprometer a lisura e normalidade da eleição, basta o prejuízo potencial.
Só é legitimado passivo desta ação o autor dos fatos, pois se procura, por meio dela, preservar um bem futuro, ou seja , a legitimidade e normalidade da eleição futura, tendo em conta os fatos passados cometidos pelo argüido. Daí o caráter meramente declaratório da sentença.
Já para a ação constitucional de perda de mandado pouco importa tenha sido o eleito o autor, ou não, do ato ilícito; basta que se comprove tenha dele se beneficiado. Deve haver, portanto, relação de causa e efeito. Mas há que se distinguir: se o titular do mandato impugnado for ao mesmo tempo o autor do ato ilícito, se se confundirem os sujeitos, pode haver cumulação de pedidos, e as ações (em sentido material) poderão ser julgadas totalmente procedentes, ante a prova inconcussa do uso do poder econômico fora dos limites permitidos pela legislação eleitoral, e do prejuízo potencial dos demais candidatos e partidos.
A sentença, então. além de carga declaratória, tem ainda eficácia constitutiva negativa, porquanto a declaração de inelegibilidade contamina a validade do mandato eletivo obtido, anulável em razão desse vício em um dos elementos intrísecos essenciais: manifestação de vontade do eleitor livre de qualquer defeito.
Por outro lado, se a ação é apenas de perda de mandato, porque o demandado foi o beneficiário do ilícito, deve ser exigida prova inconcussa do fato do uso do poder econômico, e ela ser de ordem tal. que se tenha certeza moral da relação da relação de causa e efeito. É verdade que a tanto se pode chegar mediante presunções, indícios e inferências lógicas. Ou seja, a procedência da ação, neste caso, terá lugar se o Juiz se convencer de que o mandato eletivo foi obtido em razão do abuso do poder econômico praticado por outro, e não em decorrência dos méritos próprios do eleito.
Este é um tema, entretanto, que exige uma investigação mais profunda, que os estudiosos, por certo, realizarão e que não posso desenvolver aqui, num simples painel.

6. Para os efeitos deste painel, recapitulo: o poder econômico deve ficar neutro e não pode intervir no processo eleitoral senão nos termos da lei. Fora dela, sua influência viola o direito de igualdade dos partidos e candidatos e compromete a lisura e normalidade da eleição. Por isso, o simples uso do poder econômico fora das normas financeiras permitidas já caracteriza o abuso e faz incidir a declaração de inelegibilidade do autor dos fatos e a perda do mandato eletivo de seu beneficiário.
O comprometimento da lisura e da normalidade da eleição se afere pelas circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreram as condutas ilícitas e, também, por indícios, presunções, inferências e juízos de razoabilidade.
No exame dessas questões há de ter-se presente que os fins preponderam, e os meios, ainda que lícitos em si mesmos, deixam de sê-lo se o emprego do poder econômico visou a vantagens eleitorais imediatas ou mediatas.




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