parte II


4. O Direito da Responsabilidade Civil : necessidade de adequação em face de suas funções na sociedade contemporânea


Ao lado da eclosão da tutela dos direitos meta-individuais, que refletiu os postulados do movimento universal pelo acesso à justiça, também outros institutos jurídicos começaram a ser vislumbrados sob novas óticas e novos contextos, reflexo da necessidade do Direito acompanhar os fatos e os valores que lhes estão atrelados.
O Direito da Responsabilidade Civil, pois, não escapou à essa nova realidade, uma vez que "hoje o número e a medida dos danos, que não podem ser reconduzidos ao fato voluntário de uma pessoa, aumentaram consideravelmente e assim tiveram de encontrar substancial compensação".
A principal inovação no enfoque dado à responsabilidade civil, acreditamos, deve-se primordialmente à descoberta de que suas próprias funções sofreram sensível transformação. Como anota ANDRÉ TUNC, através dos séculos, a responsabilidade civil parece ter servido ao menos a cinco funções estreitamente ligadas: ao castigo de um culpado, à vingança e à indenização da vítima, ao restabelecimento da ordem social e à prevenção de comportamentos anti-sociais.
Aos poucos, entretanto, tais funções especificaram-se nas duas últimas, ou seja, à indenização e, em especial, à prevenção de comportamentos anti-sociais por dissuasão. Aliás, a função primeira da responsabilidade civil, no direito positivo, sempre foi a de prevenir os danos muito mais do que os reparar ou recompensá-los, e sob esta ótica atrelou-se o instituto às noções de prevenção a comportamentos antijurídicos (dolosos ou culposos) que pudessem ensejar danos. A partir disso, os diversos ordenamentos jurídicos erigiram regimes de responsabilidade fundamentados na ação antijurídica, baseada na culpa lato sensu do agente.
Todavia, sobretudo com o advento da Revolução Industrial, e com a utilização cada vez maior pelo ser humano de altos potenciais de energia térmica, química, elétrica, atômica..., enfim, com a transformação da sociedade de massas, tornou-se claro que se fazia necessário, em face à freqüência de acidentes decorrentes de determinadas atividades consideradas "de risco", muito embora fossem consentidas pelo seu relevante valor social, adotar-se um regime de responsabilidade por danos daquelas atividades derivados. Tal regime, pois, apontava automaticamente como responsável pelos danos eventualmente causados, aquele que exercitasse a atividade "danosa" ou de "risco", mesmo que não se lhe pudesse imputar qualquer conduta imprudente ou negligente. Em suma, preconizava-se a objetivação da responsabilidade civil, com fundamento no exercício de atividades de risco, previamente caracterizadas pela lei.
Aliás, foi justamente com a admissão de que a lei poderia determinar a reparação de danos causados a alguém sem que a pessoa obrigada a tal tivesse praticado, em sentido estrito, "ato ilícito", que os limites tradicionais da responsabilidade civil foram cedendo espaço às concepções da responsabilidade objetiva, diante da qual "o sujeito responsável se coloca ante ao objeto da responsabilidade: a reparação dos danos causados à vítima; esta responsabilidade objetiva não cessou de estender seu império, e a objetivação da responsabilidade civil é hoje uma constante em todos os países industrializados".
Todavia, como bem assevera ORLANDO GOMES, nas hipóteses em que se verifica o dever de reparar o dano por imposição legal com a eliminação da culpa, em verdade não seria apropriado aludir-se à "responsabilidade", uma vez que não se compreende seja alguém "responsável" por ato que não praticou culposamente. Tal equívoco, destaca o professor baiano, "tem concorrido para retardar o explêndido movimento que visa colocar em outra perspectiva o problema da reparação dos danos extracontratuais. Apegados à idéia de "responsabilidade", seus partidários encontram pela frente séria objeção. Não há como considerar alguém responsável sem culpa. Contudo, não é preciso declarar essa pessoa "responsável", para lhe impor, em dadas circunstâncias, a mesma obrigação de reparar um dano. Razões de eqüidade justificam se lhe imponha esse dever, mas não porque tenha propriamente responsabilidade. O de que mister se faz é libertar o jurista dessa idéia de responsabilidade, a que se conserva preso, porque, em outros tempos, se entendeu necessário um comportamento culposo para justificar a obrigação de reparar o dano".
Neste passo, de certa forma verifica-se que, em se abstraindo a figura do responsável, abandona-se o campo da responsabilidade civil propriamente dita para adentrar-se na chamada solidariedade coletiva, cujos fundamentos e mecanismos de efetivação seriam diversos daquela.
Essas considerações acerca do rompimento dos domínios clássicos da responsabilidade civil, outrora encerrados nos estreitos limites de uma "responsabilidade subjetiva", servem para destacar a revolução operada. De fato, até mesmo ao analisarmos a terminologia empregada ao se referir a um "Direito da Responsabilidade Civil", aferimos que se está a indicar, de forma evidente, a orientação que se volta prioritariamente à concreta e justa recomposição dos danos sofridos por alguém, mormente quando se pensa em danos que atingem quantidade indeterminada ou indeterminável de indivíduos.
Adentra-se, assim, à matéria propriamente atinente à responsabilidade civil por danos causados aos direitos difusos e coletivos que, inobstante os mecanismos propiciados por determinados "microssistemas" específicos, de ordinário continua sendo tratada à luz das regras gerais da responsabilidade subjetiva.


4.1 A responsabilidade civil por danos causados aos direitos difusos e coletivos

Na esteira da revolução estrutural operacionalizada em nível de tutela jurisdicional dos direitos difusos e coletivos, através da sistematização das ações coletivas, a responsabilidade civil e o ressarcimento dos danos produzidos globalmente experimentaram novos contornos. Já WALDEMAR MARIZ DE OLIVEIRA JR., antevendo as profundas alterações que adviriam diante da então apenas imaginada revolução na tutela dos direitos meta-individuais, anotava que "a responsabilidade civil de quem causa o dano não será mais a tradicional, com características restritas, quase sempre individual. Em outras palavras, nas ações ideológicas, quem produz o prejuízo não será responsável perante um único indivíduo ou uns poucos indivíduos, mas sim ante um grupo social, ou categoria profissional, ou classe de pessoas ou, enfim, uma coletividade inteira. Dessa forma, a responsabilidade civil alcançará, nas ações coletivas, dimensões inimagináveis, nunca alcançadas nas de natureza meramente individual, como tradicionalmente, acontece hoje".
Quanto à reparação do dano, o ilustre professor previa a complexidade de sua aferição, sendo todavia justificável uma nova orientação na aplicação do poder jurisdicional, uma vez que de nada adiantaria que o juiz condenasse o infrator coletivo a ressarcir um ou poucos prejudicados que ingressaram com ação em juízo, pois tal decisão não teria efeito eficaz, direto e objetivo contra o réu que, em não sendo afetado relevantemente, sob o ponto de vista financeiro, poderia até mesmo sentir-se estimulado em continuar ou reiterar a prática lesiva.
Identificando os "pontos sensíveis" da problemática da tutela jurisdicional dos interesses metaindividuais, BARBOSA MOREIRA afirma incisivamente que "em grande número de hipóteses é irreparável a lesão consumada ao interesse coletivo: nada seria capaz de reconstituir a obra de arte destruída, nem de restaurar a rocha que aformoseava a paisagem; inexiste, ademais, prestação pecuniária que logre compensar adeqüadamente o dano, insuscetível de medida por padrões econômicos. Em poucas matérias se revela de modo tão eloqüente como nesta a insuficiência da tutela repressiva, exercitada mediante a imposição de sanções e, quando necessário, pela execução forçada da condenação. O que mais importa é evitar a ocorrência da lesão; daí o caráter preventivo que deve assumir, de preferência, a tutela jurisdicional".
Inobstante as considerações precisas acima mencionadas, certamente que, mesmo no mais das vezes não propiciando o retorno ao status quo ante, a importância da reparação ao dano provocado não pode ser negada, tanto por sua função indenizatória em si, como pelo próprio caráter de prevenção especial que enseja. No mesmo sentido, CARLOS ALBERTO BITTAR ressalta que "tanto o lesado como o lesante e, indiretamente, a sociedade podem sentir os reflexos da sua aplicação, sob as idéias básicas de que, no sancionamento ao lesante, existem, ao mesmo tempo, ação e reação, e, na definição do modo de reparação, se estabelecem exemplos para o balizamento de condutas dos integrantes da comunidade".
E neste aspecto, a insuficiência do ordenamento jurídico positivo no campo da reparação aos danos difusos e coletivos, sem dúvida, constituiu e ainda constitui óbice aos reclames da vida social. Os sistemas de responsabilidade civil, tanto contratual como aquiliana, baseados na culpa, revelam-se à evidência inadequados para um sistema geral de reparação àquelas espécies de danos, derivados da produção em série, da distribuição e consumo em massa.
Não se pode olvidar, é certo, que a responsabilidade civil dita subjetiva, entre nós fundada na norma geral ordinária do artigo 159 do Código Civil, alicerçando o dever de indenizar à verificação da culpa amplo sensu do agente pela prática de ato ilícito, "possui uma vocação universal, e seu império é ilimitado: assim que inexiste qualquer indicação jurídica específica, a responsabilidade por culpa está presente, visando a reparação dos resultados danosos suportados", constituindo-se, pois, em verdadeiro "remédio geral às lacunas do direito, às fraquezas do legislador e às modificações das circunstâncias".
Contudo, a persistência de um tal regime revela-se incompatível com a plena e eficiente recomposição do bem coletivo lesado, sobretudo pela transformação da própria ótica sob a qual se vislumbra o objeto da reparação.


4.2 Tendência à objetivação da responsabilidade por danos provocados aos direitos difusos e coletivos


Como se percebe, há nítida "tendência universal que se verifica em matéria de direitos difusos, no sentido de abandonar-se os sistemas clássicos da responsabilidade subjetiva, que não mais atendem às necessidades atuais da sociedade".
Tal insuficiência ainda é destacada por ANDRÉ TUNC, assinalando que, do ponto de vista da vítima, o regime da culpa sempre é um critério insatisfatório de responsabilidade, sendo seus interesses melhor servidos "si l'on ne tenait pas compte de ses propres erreurs et si, d'autre part, la faute ou l'erreur de l'auteur du dommage n'était pas le critère de la responsabilité, l'indemnisation étant assurée soit par une responsabilité de plein droit ou par quelque assurance, privée ou sociale. La responsabilité pour faute peut ainsi apparaître comme mal adaptée aux besoins de la victime, particulièrement dans une civilisation industrielle où, fatalement, des dommages nombreux et importants se produisent larges domaines de responsabilité sans faute ou dépassant la faute on été créés pour répondre aux besoins sociaux".
Parecem uníssonos os apelos da moderna doutrina no sentido de se imprimir ao "Direito da Responsabilidade Civil" uma completa revisão, a fim de o mesmo possa constituir instrumento de regulação social, ao mesmo tempo simplificado e efetivo.
Desta forma, como assevera TRIMARCHI, "l'assicurazione della responsabilità civile si coordina bene con la responsabilità oggettiva, della quale constituisce il necessario complemento perché trasforma il rischio in un costo... Nei settori dove è opportuna la responsabilità oggettiva, il principio dovrebbe essere applicato in modo coerente, eliminando ogni interferenza del principio della colpa".
A adoção de uma sistemática geral de reparação aos danos provocados aos direitos difusos e coletivos, baseada em uma responsabilidade de pleno direito, mais do que aspiração doutrinária, corresponde à necessidade premente da sociedade de nossos dias, ávida pela efetividade da tutela jurisdicional. Mais do que isto, a própria evolução operada em nosso ordenamento jurídico em nível da proteção dos direitos transindividuais, com a incrementação de exuberante sistema de ações coletivas (como supra verificado), requer uma respectiva evolução sob o ponto de vista do direito material, de modo a definir inequivocamente os parâmetros nos quais devem pautar-se os julgadores quando da análise "dano/agente/-nexo causal".
Como supra aduzido (nº 4.2), a pretensão de reparação aos danos difusos e coletivos deduzida através de uma ação coletiva traduz realidade diversa daquela tradicionalmente invocada à reparação de lesão individual. Naquelas hipóteses, "la relation classique de la responsabilité civile est civile est un face à face d'un responsable-débiteur et d'une victime-créancière : ce sont deux personnalités juridiques bien déterminées qui s'affrontent. Or l'évolution technologique du monde industrialisé genère des dommages collectifs où la relation de responsabilité se traduit par la confrontation de deux nébuleuses: celle des entreprises responsables fondues dans l'indétermination juridique d'une profession ou de holdings internationaux, et celle des victimes en séries, dont les dommages s'égrènent au long de mois et d'années,. Le conflit prend alors une ampleur démesurée à laquelle nos schémas classiques en matière de responsabilité tentent difficilement de s'adapter".
Em sentido consonante com o acima exposto, leciona CAPPELLETTI, citando DUPEYRON : "dans les cas de l'action collective...la "réparation" due à cette lésion (de l'intérêt collectif) est elle-même, au moins pour la plus large, étrangère à la notion d'un dommage éprouvé. Elle dérive donc nécessairement d'un autre principe et obéit à d'autres règles de mesurage que procèdent moins de l'idée de réparation que des idées de prévention et de répression... L'action collective déroge aux règles du droit privé et procède d'une nature propre qui apparente à l'action publique... Il reste donc que l'action collective...aboutit par sa nature propre à des sanctions pécuniaires ou publicitaires...sans relation nécessaire avec le préjudice subi".
Atento a todas as razões de ordem prática e técnica que suplicam pela superação da clássica aferição da responsabilidade pela culpa lato sensu do agente, nas hipóteses de lesão aos direitos difusos e coletivos, RODOLFO C. MANCUSO é categórico ao preconizar o afastamento da responsabilidade aquiliana, fundada na culpa (art. 159 do CC), visto que "esse sistema, que remonta às bases romanísticas é adeqüado aos conflitos intersubjetivos (Tício versus Caio), onde é ponderável o fator da intenção do agente, a par das mais diversas causas de exclusão da culpa (força maior, caso fortuito, culpa ou proveito da vítima etc.). Mas ele não se adapta à responsabilidade por danos causados a bens e interesses coletivos e difusos, onde a ótica é deslocada antes para a efetiva reparação do dano causado à sociedade ou à "categoria", do que para a aferição da culpabilidade na conduta do agente. Daí porque, de maneira geral, tem-se admitido que a responsabilidade, em matéria de interesses difusos, deve ser a objetiva, ou do risco integral, as únicas que podem assegurar uma proteção eficaz a esses interesses".
Trata-se de orientação pragmática, voltada em primeiro plano à aplicação de um direito consonante com a realidade imperante na ordem social vigente, e que funciona como instrumento de integrativo de uma justiça comutativa ou distributiva, cuja invocação em sede de indenização aos danos provocados aos direitos difusos e coletivos verifica-se imprescindível, rompendo com o conceitualismo e dogmatismo tradicionais no campo da responsabilidade civil. Concebendo-se a integral reparação devida ao bem coletivo como imperativo de justiça, "la philosophie du droit confronte les solutions apportées par le législateur, la jurisprudence et la doctrine aux problèmes de justice renouvelés par l'évolution des techniques, des moeurs et des mentalités: lorsque la justice distributive de la solidarité doit en prendre le relais: c'est encore une leçon de notre vingtième siècle".
Desta forma, a cada dia torna-se mais evidente, sobretudo no concernente ao regime da responsabilidade civil por danos a direitos metaindividuais, a dissonância entre a dogmática e a pragmática, sendo vocação inequívoca da doutrina a extensão àqueles danos do regime hoje assente em matéria de direito ambiental e dos consumidores.
Somente com a devida assimilação de tal ideal é que se pode conotar à reparação dos danos produzidos aos direitos difusos e coletivos o seu sentido pleno, com inflexões político-sociais que, transcendendo ao interesse individual por excelência vislumbrado na reparação derivada da responsabilidade civil convencional, revela "a imprescindibilidade de utilização do Direito como um sistema de controle social, idéia esta que deve ser contrastada, por ser praticamente oposta à concepção liberal e individualista da sociedade, pois nesta se pregava e intencionalmente se realizou uma vivência destituída de maiores controles e sem maior ingerência estatal na vida do indivíduo, pulverizados, por outro lado, o quanto possível os grupos sociais, havidos como componentes nefastos".
Ao mesmo tempo, consoante DENTI, "Qui veramente si può dire che i remedies hanno proceduto i diritti, almeno nel senso che degli interessi diffusi non è stata ancora individuata una categoria ordinante che trovi il consenso dei giuristi, oscillanti fra la tendenza a riportare gli interessi di questo tipo alla logica del diritto soggettivo, e quella a restringerli nell'area degli interessi legittimi".Ainda analisando a defesa dos "novos direitos" sob os preceitos pragmáticos de um modelo diferenciado de tutela jurisdicional, DENTI preconiza a atuação criativa da jurisprudência, "allo stesso tempo più creativa e più flessibile, meno condizionata da presupposti dogmatici, affinché il pur corretto richiamo ai principi costituzionali consenta la individuazione di criteri idonei ad una valutazione comparativa degli interessi che si contrappongono...".


5. Regime jurídico da indenização por danos individuais, coletivos e difusos sofridos em decorrência da publicidade patológica


Para que possamos aludir a um "regime jurídico" sobre o qual se fundamenta a matéria objeto do presente estudo monográfico, faz-se necessário, lógica e antecedentemente, esclarecer o que efetivamente entende-se pela expressão. Neste sentido, servimo-nos da inigualável orientação de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO: "Se o que importa ao jurista é determinar em todas as hipóteses concretas o sistema de princípios e regras aplicáveis - quer seja a lei clara, obscura ou omissa - todos os conceitos e categorias que formule se justificam tão só na medida em que através deles aprisione logicamente uma determinada unidade orgânica, sistemática, de normas e princípios. A razão de ser destes conceitos é precisamente captar uma parcela de regras jurídicas e postulados que se articulam de maneira a formar uma individualidade. O trabalho teórico do jurista, construído, como é, à vista de aplicações práticas, resume-se e explica-se na tentativa de descobrir a rationale que congrega e unifica um complexo de cânones e normas".
A análise e aplicação de qualquer norma ou instituto jurídico, desde que procedidas de forma restrita, isoladas do conjunto sistemático no qual estão inseridos aqueles, invariavelmente conduz a resultados deturpados e incoerentes, que podem acabar provocando a "implosão lógica" de todo um ordenamento jurídico, frustrando a função precípua do direito que é a de regular a conduta dos homens em conformidade com sua cultura em determinado local e tempo.
Portanto, quando se trata de investigar sobre como entender-se o regime da responsabilidade civil decorrente da veiculação de publicidade enganosa ou abusiva, o enfoque há de recair irretorquivelmente sobre o regulado pelo microssistema das relações de consumo, erigido em nosso ordenamento jurídico pelo Código de Defesa do Consumidor, que foi concebido precisamente no intuito de resolver controvérsias nascidas no seio da civilização de massa.
Antes, todavia, de se proceder a esta análise da Lei 8078/90, há que se buscar o tratamento constitucional dispensado ao tema, já que "a idéia de Constituição como centro de um conjunto normativo activo e finalístico, regulador e directivo da sociedade, é posta em causa de várias formas. O direito só regula a sociedade regulando-se a si mesmo (TEUBNER). Isto significa que o direito - e desde logo, o direito constitucional - é, não um direito activo, dirigente e projectante, mas um direito reflexivo auto-limitado ao estabelecimento de processos de informação e de mecanismos redutores de interferências entre os vários sistemas autônomos da sociedade (jurídico, econômico, social e cultural). Por isso é que o direito, hoje, - o direito constitucional pós moderno - é um direito pós intervencionista (=processualizado, dessubstantivado, neo-corporativo, ecológico, medial)".


5.1 Aspectos constitucionais da tutela repressiva contra a publicidade enganosa/abusiva


Não se mostrando alheia às transformações sócio-econômicas verificadas especialmente nas últimas décadas, a Constituição Federal de 1988, atenta à denominada litigiosidade de massa, tratou de explicitar, no plano substancial, além dos direitos e garantias individuais, princípios fundamentais de proteção a valores supraindividuais, como a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, estabelecendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput), a preservação da continuidade e da unidade histórico-cultural do ambiente urbano (art. 18, §4º), e a defesa do consumidor (art.170,V).
Importa salientar-se que, sob a ótica da publicidade patológica, nenhum destes direitos constitucionalmente assegurados afeiçoam-se imunes à violação, sobretudo por conta do princípio da liberdade da atividade publicitária, extraída das previsões também constitucionais da liberdade de expressão (arts. 5º, inc. IX, e 206, inc. II), e livre iniciativa (art. 170, caput). Tal constatação levou juristas, como CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, a estatuir como princípio geral da atividade publicitária o princípio da ordem pública: "A liberdade da actividade publicitária pode colidir, já não com princípios da concorrência e de proteçào do público consumidor, mas com certos imperativos de ordem superior que se sobrepõem às intenções promocionais das empresas (regras morais, bons costumes, direitos e liberdades fundamentais). É este o sentido da proibição da publicidade que ofenda princípios como os da democracia e liberdade, igualdade das pessoas, privacidade, defesa do ambiente, direitos da criança e da mulher, padrões
de vida éticos e estéticos, valores culturais, históricos e religiosos...".
Contra esta infinita gama de direitos que potencialmente são passíveis de lesão pelas mensagens publicitárias, a própria Constiuição Federal estabelece, como fundamentais direitos individuais e coletivos, "o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem" (art. 5º, inc. V), e a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, "assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" (art. 5º, inc. X).
Como percebe-se, pois, a indenização por quaisquer espécies de lesões a direito individual ou transindividual ganha importância constitucional inconteste, devendo-se partir de tal consideração a análise do regime jurídico no qual está inserida a conformação da responsabilidade civil pela publicidade patológica. De fato, as normas da Constituição Federal supra mencionadas, ao assegurar genericamente a indenização pela lesão de direitos individuais ou coletivos, em verdade "não protegem as realidades da vida, os dados reais como...dados ou realidades. Garantem ou protegem esses dados reais, configurando direitos subjectivos (exemplo: direito à liberdade), direitos de prestação (exemplo: direito ao ensino, direito tribunais)... Trata-se, como se vê, dos «efeitos jurídicos» que resultam do facto de uma norma recortar certos «dados da realidade» como objecto de protecção. Para dar operatividade a essa protecção cria ou constitui juridicamente liberdades, prestações, instituições e procedimentos".
Em tal sentido, deflui-se que para a operativização da garantia constitucional da reparação aos danos sofridos em decorrência da lesão a direitos individuais ou metaindividuais, o ordenamento jurídico deve constituir sistema apropriado para que aquela seja implementada da forma mais efetiva possível, condizente com a ideologia extraída da Lei Suprema, uma vez que"le droit de la responsabilité s'adapte pour toujours trouver un moyen d'indemniser les victimes. Le Droit à réparation des victimes n'est d'ailleurs plus seulement une règle de simple responsabilité civile : il est devenu aujourd'hui un véritable principe constitucionnel...".
A pretensão do microssistema das relações de consumo, ao estabelecer como direito básico do consumidor a "efetiva prevenção e reparação pelos danos patrimoniais e morais", pois, é precipuamente tornar viva a ideologia constitucional acima exposta.


5.2 A "efetiva prevenção e reparação pelos danos patrimoniais e morais" como princípio fundamental da tutela dos consumidores


Com o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90) estabeleceu-se regime específico quanto à responsabilidade civil por danos causados aos consumidores.
Em sede de tal microssistema, inequivocadamente o legislador apontou para a objetivação da responsabilidade civil, voltando-se flagrantemente à orientação no sentido de se tornar efetiva a tutela dos direitos difusos e coletivos dos consumidores. Ao lado da expressa previsão do regime de responsabilidade civil de pleno direito às hipóteses dos chamados "acidentes de consumo" (art. 18 do CDC), bem como às hipóteses de lesão pelo "fato do produto ou do serviço" (art. 12 do CDC), a Lei 8078/90 estatuiu, como "direito básico do consumidor" a "proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas impostas no fornecimento de produtos e serviços" (art. 6º, inc. IV), e a "efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos" (art. 6º, inc. VI).
Ante à inexistência de previsão legal expressa (literal) quanto ao regime da responsabilidade civil aplicável aos demais casos de lesões a direitos dos consumidores, dentre as quais as oriundas da veiculação de publicidade patológica, restaria indagar-se: observar-se-ia a sistemática tradicional da responsabilidade civil subjetiva (carecedora da comprovação da atuação culposa ou dolosa do agente provocador do dano) alicerçada, em nosso ordenamento, na disposição do art. 159 do Código Civil?
Bem entendido o sistema ao qual está indissociavelmente atrelada a matéria ora analisada (sistema das relações de consumo), e não se olvidando da visão do conjunto normativo estabelecido pelo CDC, a resposta à indagação supra não demandaria dificuldade. Com efeito, a previsão do art. 6º, inc. VI do estatuto do consumidor deve ser entendida como sendo a definidora do princípio geral em matéria de responsabilidade civil derivada de toda e qualquer lesão a consumidores, derrogando, pois, a norma do art. 159 do Código Civil, inaplicável às relações de consumo (em regra). Assim, tratando-se de matéria concernente a relação de consumo "todo e qualquer dano ocasionado ao consumidor, seja ele derivado do contrato ou extracontratual, de publicidade enganosa ou abusiva".
De fato, esta é a única forma de se alcançar a "efetiva reparação", como quer o CDC, em atenção aliás ao próprio desiderato constitucional (como antes verificado), sobretudo aceitando-se que os danos advenientes da violação dos "novos direitos", tal como se afeiçoa a proibição de publicidade apelativa, "non si tratta, il più dei casi, di danni cruenti, di lesioni materiali, di distruzione fisica di valori, ma di lesioni di interessi nuovi, ai quali, nella mutante scala di valori accreditata dalla coscienza sociale, il giudice non può più reagire in modo rigoristico o minimizzante".
No mais, o regime jurídico preconizado pelo microssistema mencionado de tutela às pretensões difusas, coletivas e individuais inerentes às específicas situações jurídicas de consumo, adota como princípios fundamentais em tema de responsabilidade civil além da responsabilidade objetiva pelos danos causados, a solidariedade entre os agentes causadores do dano, a indenização integral desses danos, a cumulatividade de indenizações por danos patrimomiais e morais e a inversão do ônus da prova em favor do consumidor, operada ope judicis ou ope legis, conforme a específica situação concreta.


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