A ARBITRAGEM COMO FORMA ALTERNATIVA DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS* .

 

Demócrito Ramos Reinaldo Filho

 

Juiz de Direito em PE e Professor da ESMAPE

E-mail: democ@elogica.com.br

 

A Lei 9.307, de 23.09.96, que se tornou conhecida como "Lei Marco Maciel", vem a lume como fruto de um esforço tendente a revitalizar o instituto do juízo arbitral. De inspiração nitidamente privatística, aparece justamente no momento histórico em que as relações comerciais rompem de uma maneira nunca dantes vista as fronteiras territoriais dos países, fazendo aparecer o fenômeno que se convencionou chamar de "globalização da economia". Embalada pelo avanço tecnológico, a economia se superdimensiona, oportunizando a que empresas de qualquer parte do mundo possam realizar investimentos e auferir lucros nos mais diversos países, cujas economias estão integradas pelos laços da rede mundial de comunicação, tendo como centro desse novo império e como poder hegemônico os Estados Unidos da América.

Essa circunstância cronológica, de coincidência da edição do novel texto de lei com esse momento ímpar porque passa o cenário econômico mundial, tem levado alguns a profligarem-na com a invectiva de que não atende aos anseios do povo, mas a "ideologias do neoliberalismo capitalista".

Não é de hoje que se tenta reformular a figura do juízo arbitral. Somente na última década foram apresentados três anteprojetos no intuito de aperfeiçoar o instituto. É forçoso reconhecer, no entanto, que com o fenômeno da "globalização da economia" ou depois da formação dos blocos econômicos (União Européia, Nafta, Mercosul, etc.) cresceu nos meios jurídicos o interesse pela arbitragem, crescimento esse que foi gerado pelo empenho das multinacionais e grandes empresas em criar um ambiente propício para modificar a legislação brasileira, com o fim de possibilitar o desenvolvimento da arbitragem. A economia mundial se expandiu de tal forma que as fronteiras nacionais passaram a ser um obstáculo para a desenvolução do comércio internacional. Foram unificadas tarifas alfandegárias, tributos internos, regimes de competição entre empresas, tudo isso em prol da economia globalizada, para remover todos os empeços à expansão do capital . Não causaria surpresa a ninguém que a Justiça não ficasse indene a esse processo avassalador. A arbitragem despontou como uma solução viável para compatibilizar os interesses multinacionais em foros nacionalizados, como uma opção não-estatal para a solução de conflitos entre pessoas de países diferentes. Inegavelmente esse quadro político e econômico, de profundas transformações, serviu como pano de fundo para apressar a reforma legislativa que sobreviria com a edição da Lei 9.307/96.

Sem a disposição de ensejar um debate ideológico, sobre atender ou não às exigências do pensamento neoliberal, pensamos que a nova lei procura adequar nossa ordem jurídica interna à realidade da sociedade moderna, onde as relações econômicas, globalizadas, favorecidas pela rede mundial de comunicação, se dão num ritmo frenético, aumentando vertiginosamente a produção e distribuição dos bens de consumo de forma ainda mais dinâmica do que a proporcionada pela "revolução industrial", surgindo daí a necessidade de aperfeiçoamento e melhoria dos mecanismos de distribuição de justiça - demasiadamente carregados pela pletora de demandas decorrentes desse processo - através da formulação de novas técnicas e métodos alternativos de solução das controvérsias, dos quais a arbitragem vem servir como o mais lídimo, avançado e renovador exemplo.

Pode parecer que vivenciamos, na realidade, uma involução no processo de controle e exercício da jurisdição, porquanto sabemos que originariamente o Estado não detinha o monopólio da função jurisdicional, sendo comum em épocas mais remotas de as partes, de forma livre e soberana, valerem-se de árbitros para solucionar suas pendências. Na verdade, o que estamos captando em profundidade é a "busca da identidade perdida", porquanto a idéia concebida na atualidade de que a função jurisdicional, na sua inteireza, deve ficar sob a responsabilidade do Estado, não frutificou como uma natural evolução desse processo, mas surgiu a partir do momento em que o Estado apoderou-se exclusivamente da função jurisdicional com a intenção de "exercer um maior controle sobre o jurisdicionado e de suprimir outras jurisdições comunitárias", que pudessem naturalmente surgir da liberdade dos particulares de resolverem suas pendências, na órbita privada, com o auxílio de árbitros. Encontra suas raízes no momento histórico em que o Estado romano, fortalecido nas batalhas militares e, receoso de "perder o controle das massas populares, num ambiente territorial em constante expansão, investiu-se da capacidade de exercer a função jurisdicional em sua plenitude (cível e criminal), monopolizando-a".

O fato é que, no momento atual, as conseqüências desse intervencionismo estatal nos assuntos, antes, da alçada exclusivamente privada, repercutem com maior intensidade, ficando à mostra os problemas introduzidos na distribuição da Justiça por força do monopólio estatal, tais como procedimentos complexos e obedientes a exigências formais, morosidade, estruturação de serventias arcaicas dotadas de um corpo de servidores desestimulados, aspectos negativos esses que, com toda a certeza, ficam agravados pelo fenômeno da formação dos blocos econômicos, expondo a obsolescência, o exaurimento e, porque não dizer, a falência do sistema . Hoje, mais do que nunca, fica à mostra o descompasso entre a burocracia estatal que emperra a prestação jurisdicional e as exigências da chamada sociedade pós-moderna, que caminha num ritmo desenvolvimentista alucinante.

Diante desse quadro, de impulso na velocidade das transformações sociais, parece-nos que não basta apenas aparelhar o Judiciário para dar conta dos conflitos decorrentes desse processo. O Judiciário teria que se modernizar numa rapidez muitas vezes superior a que a programação das verbas orçamentárias permite. Para acompanhar as novas exigências sociais, todas as medidas tomadas até agora não têm sido suficientes. A criação de juizados especiais e a reforma do processo, embora tenham representado medidas ousadas e inovadoras, ficaram a passos largos do desejado atendimento e solução em tempo razoável de processos que dão entrada nos diversos órgãos judiciários. Nos últimos tempos, as estatísticas têm comprovado que, a cada dia, cresce a quantidade dos feitos que entram no Judiciário em comparação com os que são julgados.

Há alguns anos atrás, era unânime o pensamento de que o atraso no julgamento dos processos devia-se exclusivamente ao reduzido número de juízes. Essa constatação simplista do processo parece estar comprovadamente ultrapassada. Somente no nosso Estado (Pernambuco), quase que foi quadruplicado o número de juízes num espaço de poucos anos, sem que a sociedade tenha sentido nenhum resultado positivo desse aumento nos quadros da magistratura local. Pelo contrário, as queixas contra a lentidão da Justiça só aumentaram. Muitos magistrados e profissionais do Direito estão convictos, agora, de que, como medida acessória, é indispensável uma reforma processual profunda, que venha a sumprimir recursos e formas protelatórias - a recente Reforma do Código de Processo Civil, sob a responsabilidade da Escola Nacional da Magistratura, não teria sido suficiente, pois não atacou esses pontos, não tendo surtido nenhuma repercussão em termos de agilização processual.

Concordamos que, realmente, afigura-se imperiosa uma reforma processual mais "radical". Uma das principais causas de estrangulamento da prestação jurisdicional consiste no exagerado formalismo do nosso sistema processual, rico em recursos e procedimentos complexos, o que favorece, na prática, a "eternização" das demandas em juízo. Qualquer proposta tendente a reformular a sistemática processual teria que, a nosso ver, estar voltada para um único objetivo: a supressão de instâncias e o estreitamento das vias recursais. Figurando o exagerado número de formas recursais existentes na linha de topo dos fatores de postergação do andamento dos processos, poderia a lei, desde que respeitado o duplo grau de jurisdição, por exemplo, definir decisões irrecorríveis, condicionar a interposicão de recursos a depósito prévio de valor variável (dependendo das hipóteses e de acordo com a hierarquia da instância julgadora) e frear a interposição de recursos para tribunais superiores, nas causas em que o direito das partes se fundasse unicamente em legislação "local".

Mas, mesmo sobrevindo uma reforma processual que atenda a esse propósito, inclusive com alterações de ordem constitucional - imprescindível para uma reforma no sistema recursal de grande extensão -, estamos convictos que, mesmo assim, a prestação jurisdicional de forma ampla, em todas as hipóteses evolvendo questões patrimoniais privadas, tende sempre a ser um serviço com padrão de qualidade de baixo nível, porque continuariam a existir todas as mazelas próprias do serviço público. Todos os burocratismos e entraves por eles criados continuariam a existir. A vitaliciedade dos juízes e estabilidade dos servidores, a falta de estímulos, a baixa remuneração, a ausência de programas de treinamento e especialização, todos esses fatores que levam à baixa produtividade, aliados a outros, como o interesse de certos advogados de que essa situação perdure, formam um círculo vicioso e difícil de corrigir, prejudicando a distribuição da Justiça e refletindo em último caso como fator de desagregação social.

Daí porque o Estado deve urgentemente voltar-se para formas alternativas de prestação de Justiça. Não podemos fugir ao processo de pensar a melhoria da prestação jurisdicional, mesmo que isso implique na adoção de propostas que importe em abalar estruturas que antes estavam incólumes a qualquer tipo de revisão. É natural, por outro lado, uma certa hesitação em implantar o novo, em aceitar inovações que fujam ao esquema de poder preestabelecido e sedimentado na sociedade, mas essas resistências têm que ser removidas em prol dos avanços sociais. Nesse sentido parecem evidentes as melhorias que a arbitragem pode trazer como técnica de solução de conflitos. É de entendimento de expressiva corrente da doutrina que, dentre outras vantagens, que justificam a opção das partes pelo procedimento arbitral, preterindo a forma de jurisdição estatal, encontram-se em primeiro plano: a) a celeridade, como decorrência da simplificação do procedimento e extinção de formas processuais solenes; b) o sigilo, evitando que se exponham fatos e documentos que, pela sua natureza, possam ensejar influências externas que prejudiquem a isenção de ânimos na composição do litígio, diferentemente dos processos que são julgados em sede judicial, onde a regra geral é a da publicidade dos atos processuais, não aplicável somente aos casos previstos em lei; c) o não cabimento de recurso das decisões arbitrais, o que repercute no resultado imediato da decisão, ao contrário do que ocorre na sentença judicial; e d) como diferencial vantagem entre um sistema e outro, a liberdade das partes na escolha da pessoa habilitada para julgar a causa (o árbitro), o que confere a neutralidade do julgador escolhido e, por conseguinte, uma maior segurança quanto à sua imparcialidade, podendo se acrescentar ainda a circunstância de que, sendo o árbitro por vezes detentor de conhecimentos especializados, traz à decisão uma maior precisão técnica.

A tentativa do resgate da arbitragem atende, portanto, a uma necessidade de se oferecer uma via alternativa ao jurisdicionado, que se pode revelar mais adequada para a solução de litígios de natureza patrimonial privada, reservando-se ao Judiciário a competência para processar e julgar as lides que envolvam direitos e interesses indisponíveis, de cunho social, político ou institucional, em que o controle da legalidade deva ser exercido como exigência do interesse coletivo. Com efeito, o compromisso arbitral não pode versar sobre direitos indisponíveis como, v. g., questões de família, de falência, de incapazes e outras que exigem procedimento com a participação obrigatória do Ministério Público, bem como não pode abranger questões que se submetam aos procedimentos de jurisdição voluntária, dada a natureza pública que existe em todos esses procedimentos.

A função do controle da legalidade é eminentemente estatal e constituiu a própria razão da existência do Poder Judiciário. Inúmeras ações que constituem o sistema de controle da legalidade, e que portanto não podem ser levadas ao âmbito do juízo arbitral, podem ser identificadas. O mandado de segurança, a ação popular, o "habeas corpus", o "habeas data", o mandado de injunção, a ação civil pública, dentre outras, não poderiam ter foro mais apropriado do que o Judiciário, porque, como garantias do cidadão e integrantes do sistema de controle da legalidade, devem ser processadas no órgão independente funcionalmente e com atribuições de equilíbrio e proteção da ordem jurídica.

A indispensabilidade da atuação do Judiciário não somente se revela na correção de condutas administrativas, mas dentro de um espectro bastante amplo de atos jurídicos que surtam repercussão, malferindo direitos e interesses coletivos. Por exemplo, no processamento de ações coletivas em defesa dos direitos dos consumidores ou visando a proteção ambiental. Nesses casos, ninguém está melhor aparelhado do que o Estado para, usando do seu poder de coação, intervir preventivamente ou de forma corretiva em favor da sociedade, determinando a cessação de atividade empresarial nociva ou mandando retirar produtos periculosos do mercado, só para exemplificar algumas situações em que a jurisdição arbitral não se mostra adequada a atender aspirações sociais. A jurisdição criminal, da mesma forma, não pode ser entregue ao juízo arbitral, por revestir-se de elevado interesse público.