Crime organizado

Crime organizado

 

Luiz Vicente Cernicchiaro

Ministro do Superior Tribunal de Justiça e professor titular da Universidade de Brasília

 

O crime surgiu com a sociedade. Substancialmente, é conduta negativa. Formalmente, o que a lei definir. Não significa, entretanto, o tipo penal esgotar todas as considerações. O Direito Penal (dogmaticamente) relaciona-se com outras considerações científicas que têm também o crime como objeto. A Criminologia moderna busca as causas da delinqüência, sugere modelos para impedir a conduta delituosa e, por fim, evitar a reincidência. Em terceiro plano, a Política Criminal se faz presente. Não se concebe mais a norma ser analisada formalmente, sem indagar a repercussão social da interpretação.

 

Está superado o momento histórico do tecnicismo jurídico (significativa a afirmação de a Filosofia ser dos filósofos e o fato social interessar apenas aos sociólogos). O crime é fenômeno social. O juiz, no momento da sentença, precisa pensar o caso concreto, suas causas e conseqüências. A não ser assim, promoverá raciocínio próprio da Escola da Exegese que teve a pretensão (na verdade, simples miragem) de a lei formal haver trazido todas as soluções jurídicas.

 

O delito, outrossim, revela várias espécies. Hoje, o objeto jurídico é o critério predominante.

 

Em se observando o fenômeno na sociedade, ganha espaço a classificação: criminalidade de massa e criminalidade organizada. A primeira projeta a idéia de infrações penais impulsionadas, na maioria dos casos, por circunstâncias de oportunidade. A segunda, ao contrário, difusa, sem vítimas individuais; o dano não é restrito a uma ou mais pessoas. Alcança toda a sociedade.

 

O conceito de crime organizado ainda não está assente. A doutrina, no entanto, evidencia inclinação para as referidas características, sem desprezar a tendência transnacional. Ainda: hierarquia dos integrantes, como se fosse organização de empresa, responsabilidades definidas, procedimentos rígidos, divisão territorial. Autores acrescentam preocupação (permanente) de fazer cessar a eficácia dos controles formais de combate à criminalidade. Em conseqüência, busca atrair agentes do Estado para anular a atuação, obtendo, assim, verdadeira impunidade. Ao lado da insinuação da corrupção, tantas vezes, valem-se da violência a fim de, pelo silêncio, não ser importunado.

 

O desenvolvimento do crime organizado vez por outra é encoberto por atividade comercial lícita. Com a aparência, busca esconder a realidade. Acentua-se ainda, explora atividade proibida que, no entanto, não recebe censura da sociedade. Nos Estados Unidos, a chamada Lei Seca é sempre mostrada como exemplo. Quando proibida a venda de bebida alcoólica, marginalmente, era oferecida; revogada, tornando lícito o comércio, podendo o comerciante legalmente estabelecido ofertá-la à população, o ilícito deixou de existir.

 

Urge incentivar a descriminalização do uso de entorpecentes. Hoje, são vendidos ilicitamente e a preço extorsivo. Isso explica o incremento do tráfico (internacionalizado) e os lucros dos intermediários. Não se esqueça ainda, sem receita para o Estado!

 

O combate ao crime organizado reclama especial atenção à tendência ao caráter transnacional. Não encontra obstáculo no limite dos estados. O trânsito internacional diga-se assim, ganha espaço, cada vez maior com a globalização da economia, o aperfeiçoamento dos meios de comunicação e métodos internacionais de negócios, ensejando a transferência de capitais com facilidade, burlando a fiscalização oficial.

 

Não se pode olvidar ainda ponto importantíssimo: o desequilíbrio econômico das nações precisa ser lembrado. O rompimento de fronteiras, a aproximação das nações, mercados comuns, não obstante a desigualdade econômica desses países, facilitam o intercâmbio criminoso. O tráfico de drogas, por exemplo, faz a ponte de país produtor, de trânsito e de consumo.

 

Esses grupos são dotados de poder econômico. Elegem determinado produto, mantêm rede de agentes.

 

As legislações de cada país são meticulosamente analisadas. Valem-se dessas leis. Sabido, há países que, dado não disporem de montadoras de veículos, facilitam a entrada de automóveis, caminhões e tratores, fechando os olhos quando ali ingressam. De outro lado, dificultam, ou não envidam esforços para restituí-los ao local de origem.

 

A chamada ''lavagem de dinheiro'', então, torna-se conseqüência. O produto da delinqüência, o lucro, enfim, não pode aparecer de um momento para outro. O depósito é efetuado nos chamados paraísos fiscais. Estes, por sua vez, têm que contar com a tolerância do respectivo país. Tantas vezes interessados em incrementar os depósitos, praticamente o grande ''produto nacional''.

 

O crime organizado, portanto, não se confunde com o crime de Quadrilha ou Bando (C.P, art. 288). Aqui, sem dúvida, há concerto, plano de pessoas para cometer crimes. Todavia, diverge fundamentalmente quanto ao modo de agir e aos efeitos que produz, repercutindo na estrutura do delito.

 

O crime organizado transnacional preocupa a ONU; a sua Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal das Nações Unidas está desenvolvendo estudos para impor sanções a países que deliberada, ou negligentemente, colaboram com esses grupos da delinqüência. Além de recomendações, estudam sanções econômicas para os países negligentes.

 

A criminalidade tradicional deixou de ser a grande preocupação. Os grupos organizados no sentido mencionado, ao contrário, ganham as fronteiras e difundem, por meios ilegais, as ações delituosas.

 

O Brasil editou a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995 — ''Dispõe sobre a utilização de meios operacionais para prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas''.

 

O art. 1º menciona regular meios de prova e investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando.

 

Esse texto não se volta, especificamente, para a repressão ao crime organizado. Repita-se: não se identifica com a quadrilha ou bando.

 

Mais recentemente foram publicadas duas leis, estas sim, mais próximas da referida delinqüência. A Lei nº 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, relativa ao porte e uso de arma de fogo, e a Lei nº 9.426/96 que reformulou parte dos crimes contra o patrimônio, conferindo especial atenção quando o objeto material for automóvel para ser remetido para o exterior, ou destinar-se ao desmancho para ocultar a origem, ou promover a venda dos componentes.

 

A ONU, na reunião de maio, em Viena, buscou registrar conceito de crime organizado transnacional. Não houve consenso. Interferem vários interesses. O fato, e aqui não é diferente, acabará por impor a norma. Aliás, é urgente que o faça!

(transcrito do Correio Braziliense)