DANO MORAL NO DIREITO BRASILEIRO *
Paulo Roberto Saraiva da Costa Leite
Ministro do STJ
A noção do que constitui dano moral é de fácil apreensão, não assumindo relevo os pequenos desencontros na doutrina a propósito da sua conceituação jurídica, eis que reponta um elemento conceitual comum, suficientemente abrangente, qual seja o caráter não patrimonial da lesão. Segundo enfatiza Agostinho Alvim, o caráter primordial do dano moral é negativo, ou seja, não ser patrimonial.
Após afirmar que o dano moral não pode ser definido mais que em contraposição ao dano patrimonial, Zannoni acrescenta que daño no patrimonial, en consonancia con el valor negativo de su misma expresión literal, es todo daño privado que no puede comprenderse en un daño patrimonial, por tener por objeto um interés no patrimonial, o sea que guarda relación a un bien no patrimonial.
A distinção entre dano material e dano moral não decorre da natureza do direito, mas do efeito da lesão, do caráter de sua repercussão sobre o lesado, como observa Aguiar Dias, que, recorrendo à lição de Minozzi, conclui que o dano moral deve ser compreendido em seu conteúdo, que é a dor, o espanto, a emoção, a injúria física ou moral, em geral uma dolorosa sensação experimentada pela pessoa, atribuída a palavra dor o mais largo significado.
Desde Clóvis, declaradamente um dos paladinos da tese, consoante anota Wilson Melo da Silva, que a doutrina pátria, com raríssimas exceções, inclinou-se em admitir a reparação do dano moral, o mesmo não ocorrendo, entretanto, com os nossos tribunais, que, por décadas a fio, resistiram à idéia.
Em descompasso com o que acontecia alhures, onde a responsabilidade civil já ganhara contornos mais definidos, nossa jurisprudência mostrava-se refratária, prevalecendo uma interpretação restritiva e pouco criativa do nosso Código Civil, em uma postura informada principalmente pela inquietação da consciência em dar preço à dor.
Isso foi bem apanhado por Eduardo Espínola Filho. Há mais de meio século, precisamente em 1944, em artigo publicado em revista jurídica da época, seguindo as pegadas de outros notáveis juristas, asseverava que "a aceitação de que pode ser objeto de uma compensação em dinheiro, o mal que se reduz a sofrimento moral, a despeito do apoio encontrado da parte dos juristas teóricos, encontrou sério obstáculo, para a sua objetivação, nos escrúpulos de uma extrema delicadeza de sentimentos, repercutida na má vontade com que os tribunais encaram tais pedidos de indenização".
Aguiar Dias, no prefácio da 1ª edição do clássico "O Dano Moral e Sua Reparação", da autoria de Wilson Melo da Silva, que veio a lume em 1955, não poupou a crítica mordaz, ao sublinhar que "temos por aí, multiplicada, a vasta descendência do juiz de paz que MARTINS PENA satirizou, com toda a certeza sem desconfiar nem das distâncias nem das alturas a que atingiram os seus dardos".
O que aqui se pinçou a título de ilustração encontra-se à larga, a mancheias na literatura especializada, evidenciando o inconformismo dos nossos doutrinadores, que não deixou de refletir na parcela mais arrojada da magistratura, valendo lembrar aqui o pioneirismo de Pedro Lessa, tido por Rui como o mais completo dos nossos juízes. Em célebre julgamento do Supremo Tribunal Federal, nos idos de 1915, praticamente delineou o que só viria a pacificar-se na jurisprudência décadas após, reconhecendo não ser necessário a lei conter declaração explícita acerca da indenização por dano moral para que esta fosse devida, por isso que na expressão dano está incluído o dano moral.
Da negativa peremptória à plena aceitação da tese da reparabilidade do dano moral em sua verdadeira acepção, passamos por um estágio de transição, marcado basicamente por duas posições. Uma, com raízes na chamada doutrina eclética, que ainda hoje encontra adeptos, exigindo a repercussão, o reflexo patrimonial, com o que, em verdade, indeniza-se o dano econômico indireto, e não o moral, e a outra, posta em admitir a reparação do dano moral de forma oblíqua. O verbete 491 da Súmula do Supremo Tribunal Federal resulta dessa última. Ao dizer indenizável o acidente que causa a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado, admitiu um hipotético dano de natureza material, à guisa de sucedâneo, indenizando-se, destarte, o dano moral sob o color da reparação de lesão patrimonial.
Antes mesmo que a jurisprudência tivesse atingido o patamar mais elevado da sua lenta evolução no pertinente ao tema, a reparação do dano moral acabou erigindo-se em mandamento constitucional, com o advento da Carta Política de 1988. Assim é que o inciso V do art. 5º estabelece que "é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem". Já no inciso X definiu-se que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. O inciso LXXV, que representa notável avanço nos domínios da responsabilidade civil do Estado, dispõe que o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença, achando-se aí compreendida, à evidência, a reparação do dano moral decorrente.
Com a disciplina constitucional, é importante que se realce isso, não mais prevalecem, no que diz com dano moral, as chamadas indenizações tarifárias. O princípio da proporcionalidade que a Constituição expressamente refere não se compadece com os limites estabelecidos por certos diplomas legais.
Admitir expressamente a indenização por dano moral, como fez a Constituição de 88, é bom que se diga, não constituiu algo inédito em nossa legislação. Já o tinham feito antes o Código Brasileiro de Telecomunicações, a Lei de Imprensa e a Lei dos Direitos Autorais, ainda que no plano da especialização.
Em nossa ordem jurídica, no plano geral, o Código Civil já continha os pilares de sustentação da reparabilidade do dano moral. Clóvis Beviláqua apontava para a norma do art. 76, entendendo outros eminentes civilistas, entretanto, que o fundamento mais consistente se encontrava mesmo no art. 159.
Em verdade, segundo observa Caio Mário da Silva Pereira, a aceitação da doutrina que defende a indenização por dano moral repousa numa interpretação sistemática de nosso direito, abrangendo o próprio art. 159 do Código Civil que, ao aludir à "violação de um direito" não está limitado a reparação ao caso de dano material apenas.
O Superior Tribunal de Justiça, que, em sua missão constitucional de tutelar a autoridade e a unidade do direito federal, culminou consagrando definitivamente a tese da reparabilidade do dano moral, ateve-se justamente na interpretação sistemática do Código Civil, a partir do princípio inscrito no art. 159.
Não se pretenda que o termo prejuízo há de ser entendido como dizendo apenas com dano material, como remarcou o Ministro Eduardo Ribeiro, demonstrando que o contrário resulta da própria lei, pois a segunda parte do art. 159 remete aos dispositivos que regulam a liquidação das obrigações e, entre eles, alguns dizem indiscutivelmente com dano moral (REsp 4236-RS).
Este precedente, aliás, inclui-se entre os que ensejaram a edição da Súmula 37 do STJ, que, pondo uma pá de cal em antiga controvérsia, consolidou a jurisprudência no sentido de que são cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato.
Deveras, se há um dano material e outro moral, que podem existir autonomamente, se ambos dão margem a indenização, não se percebe porque isso não deva ocorrer quando os dois se tenham como presentes, consoante enfatizou Sua Excelência.
Em tal contexto, surge uma outra questão relevante, que diz respeito ao dano estético. Consoante anota Wladimir Valler, a lesão estética pode ou não envolver um dano patrimonial, conforme provoque ou não um prejuízo suscetível de apreciação pecuniária. Certo, entretanto, que constitui modalidade de dano moral, daí ter decidido o Superior Tribunal de Justiça, em pelo menos duas oportunidades, sendo que num dos casos funcionei como relator (Resp nº 57824-8 - MG), que a indenização por dano estético não pode ser cumulada com a indenização por dano moral, sob o mesmo título. Não é possível deferir-se a última em razão unicamente da dor causada pela lesão estética. Mas nada obsta o deferimento na hipótese de o dano moral, à guisa de exemplo, resultar do padecimento no hospital, com submissão a várias cirurgias, ou seja, sob outro título. Vai daí que, no caso de lesão estética, reponta a possibilidade de tríplice indenização. Pelo dano estético em si, pelo dano moral e pelo dano patrimonial.
Questão crucial é a que diz respeito à quantificação do dano moral. A dificuldade que isso apresenta constituiu-se, aliás, em um dos grandes óbices à aceitação da tese da reparabilidade do dano moral.
A indenização por dano moral, contrariamente ao que ocorre com a concernente ao dano material, não se funda na restitutio in integrum, pois é impossível repor o estado anterior à lesão, em decorrência mesmo do efeito desta. Outra é a sua natureza jurídica. Consoante Windscheid, visa a compensar a sensação de dor da vítima com uma sensação agradável em contrário. A indenização tem, pois, caráter compensatório. A compensação pode residir, inclusive, no simples reconhecimento judicial, a exemplo das conhecidas ações de um dólar dos norte-americanos.
Sem embargo de ser possível, em alguns casos, outra modalidade de reparação, consiste a regra na reparação pecuniária.
De acordo com o que escorreitamente observa Maria Helena Diniz, traduzindo o pensamento que predomina na doutrina e na jurisprudência, a reparação em dinheiro viria neutralizar os sentimentos negativos de mágoa, dor, tristeza, angústia, pela superveniência de sensações positivas de alegria, satisfação, pois possibilitaria ao ofendido algum prazer que, em certa medida, poderia atenuar o seu sofrimento".
Nessa ordem de idéias, tem-se que a reparação deve ser proporcional à intensidade da dor, que, a seu turno, diz com a importância da lesão para quem a sofreu.
Não se pode perder de vista, porém, que à satisfação compensatória soma-se também o sentido punitivo da indenização, de maneira que assume especial relevo na fixação do quantum indenizatório a situação econômica do causador do dano.
Proceder à estimação adequada, porém, é tarefa das mais difíceis. Aqui e além fronteiras, é grande a preocupação com essa delicada questão.
Não existe, ainda, a balança exata, cientificamente certa, na qual se pudesse pesar os imponderáveis da justiça e com a ajuda da qual o cuique tribuere pudesse se materializar sem a interferência do arbítrio judicial, como assinala Wilson Melo da Silva, ao advertir sobre a necessidade de separar as aspirações justas das miragens do lucro.
Tem sido árdua a busca de critérios mais precisos, com a doutrina e a jurisprudência indicando-nos alguns, mas não há como eliminar-se uma certa dose de subjetivismo na liquidação de dano moral, como bem ressaltou o Ministro Athos Carneiro no voto que proferiu no Resp nº 3003/MA.
Com efeito, não há um parâmetro próprio para estimar-se o valor a ressarcir, tal asseverou o Ministro Barros Monteiro, em palestra no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, acrescentando que há o Juiz de recorrer aos princípios da eqüidade, ao bom senso, ao arbitrium boni viri, com menção ao magistério de Cáio Mário da Silva Pereira, segundo o qual a soma não deve ser tão grande que se converta em fonte de enriquecimento, nem tão pequena que se torne inexpressiva. Os excessos só levam à desmoralização do instituto. Em suma, o que se deve ter em vista é o princípio da razoabilidade, cuja aplicação em nosso direito tem hoje o mais largo espectro.
A liquidação do dano moral é procedida na forma do art. 1553 do Código Civil, ou seja, por arbitramento, nada impedindo, porém, que o juiz fixe desde logo o valor da indenização, quando possível. (Resp 6048-RJ). Não comporta pensionamento, que é próprio da indenização por dano material, como ressuma do art. 1539 do Código Civil.
Quando o dano moral resulta de ofensa à honra não há maior dificuldade. O critério estabelecido no parágrafo único do art. 1547 do Código Civil constitui um bom parâmetro. Levando-se em conta que a multa criminal hoje tem certa expressão, é perfeitamente possível fazer-se aplicação analógica do que ali se contém. Alcançar-se-ia hoje indenização de até 3.600 salários mínimos, soma bastante significativa.
No campo probatório, impera a presunção hominis. Com efeito, é absolutamente desnecessário demonstrar, por exemplo, que a perda de um filho ou uma deformação física acarretou sofrimento, sendo conseqüência da natureza das coisas. É o entendimento que se encontra estampado, entre outros, nos acórdãos do STJ nos REsps nºs 17.073-MG e 50.481-1-RJ.
Questão interessante, a despeito de não receber a devida atenção dos doutrinadores, diz com a titularidade do direito à indenização, que se projeta no plano da legitimação ativa ad causam. No que se refere ao dano material, o que importa é o desfalque patrimonial e aí a questão se reduz ao mais simples. Tratando-se, no entanto, de dano moral resultante de morte, a questão é mais complexa, na medida em que a lesão que autoriza a indenização pode atingir numerosas pessoas, até mesmo quem não guarda vínculo de parentesco com a vítima. Pelo menos em regra, a melhor solução, quero crer, está em considerar apenas o círculo familiar mais estrito. Em certa medida, isso se ajusta ao que dispõe o parágrafo único do art. 76 do Código Civil.
Questão das mais tormentosas, que tem suscitado aceso debate doutrinário, sem que, a propósito, a jurisprudência haja fixado os seus rumos, é a consistente em saber se a pessoa jurídica é suscetível de sofrer dano moral.
Zannoni ressalta que as pessoas jurídicas tiénen también atributos que si bien, indirectamente, les son conferidos para la consecución de su fin u objecto, son reconocidos públicamente como un modo de ser sujeto a la valoración extrapatrimonial de la comunidad en que actúan. De Cupis, por sua vez, parte do pressuposto que existem danos não patrimoniais subjetivos e danos não patrimoniais objetivos, sustentando que as pessoas jurídicas podem sofrer estes últimos, que envolvem ofensas ao bom nome, à reputação, dentre outros.
Essa posição tem encontrado boa receptividade entre nós, mas há críticos severos. Wilson Melo da Silva, um dos nossos tratadistas de peso, acentua que a difamação, a ofensa ao bom nome, classificadas por De Cupis como danos morais objetivos, apenas são danos de tal natureza no tanto em que, sem nenhuma repercussão sobre os bens do patrimônio econômico, possam determinar, para o lesado, sofrimentos interiores e angústias, depressão moral, vergonha ou vexame. Fora disso, não constituiriam propriamente um dano extrapatrimonial.
Citando Agostinho Alvim, arremata o mestre mineiro:
Convenha-se que se trata de objeção séria, mas, por outro lado, há certo tipo de lesão indicado pelas máximas da experiência e que ficaria, então, sem reparação, sobretudo tratando-se de sociedade civil sem fins lucrativos. Até mesmo com empresa isso pode ocorrer, constituindo-se o abalo de crédito no exemplo clássico. Dir-se-á que o dano é patrimonial. Sucede que nem sempre é possível aferi-lo economicamente. O banco pode deixar de conceder empréstimo sem declarar o verdadeiro motivo da recusa. Esta conseqüência de ordem prática faz quando menos meditar. Yussef Cahali sustenta que "se deve dar preferência à reparação do dano moral, estimada pelo arbítrio judicial, se de difícil comprovação os danos patrimoniais concorrentes". Talvez o caminho seja por aí. Cumpre à jurisprudência, em reflexão paulatina, fixar os seus rumos. A propósito, anoto que já há decisão do Superior Tribunal de Justiça sinalizando no sentido afirmativo.