A Instituição da Propriedade e sua Função Social
VLADIMIR DA ROCHA FRANÇA
Mestrando em Direito Público pela U.F.P.E.
Advogado em Natal/RN
Sumário: 1. Importância do Tema - 2. Interação e Processo Social - 3. Direito como Instrumento de Controle Social - 4. .A Instituição da Propriedade - 5. A Função Social da Propriedade - 6. A Concretização da Função Social da Propriedade - Bibliografia.
1. Importância do Tema
A apropriação dos bens que nos propiciam riqueza, status, estabilidade econômica e conforto sempre mereceram por parte da sociedade um papel importante.
Desde que deixamos a propriedade comunal e optamos pela apropriação privada dos benseconomicamente apreciáveis, a propriedade tem se apresenta como um dos pontos de potencialização dos antagonismos entre os homens. Consciente da tensão que ronda todoaquele que dispõe da propriedade, a sociedade procurou edificar mecanismos que a preservassem.
Contudo, embora tenhamos atingido um elevado grau de interdependência social, decorrente do aumento da intensidade e velocidade das relações sociais, bem como do impacto da unificação dos mercados econômicos mundiais, ainda se persiste numa regulamentação do fato social lastreada por uma perspectiva essencialmente individualista, principalmente quando se trata da propriedade.
O direito está inevitavelmente envolvido no processo, pois através dele as sociedades mais desenvolvidas estabelecem o seu grau máximo de controle na vida de cada um de nós.
O objetivo do presente e despretensioso estudo é procurar, ou melhor, se aproximar de novos paradigmas para a regulação jurídica das relações sociais que estão na órbita da disposição da propriedade. Os apontamentos que apresentamos constituem uma tentativa de compreensão da propriedade como fenômeno social e como fenômeno jurídico, integrado numa realidade ainda ignorada pelas estruturas clássicas do ciência do direito.
2. Interação e Processo Social
O processo fundamental da sociologia é o da interação social, cuja falta comprometeria a existência das sociedades humanas. Pois "uma sociedade não somente existe por meio de interação, mas é interação" (Pierson, 1964: p. 177).
A interação social constitui um processo padronizado de conhecimento e de aculturação, onde os indivíduos procuram projetar sentimentos, idéias e vontades no espaço social, junto aos seus semelhantes. Deve ser entendida, nas palavras de Cláudio Souto e Solange Souto, como "a ação relacionada e exteriorizada de compostos siv, sendo s = sentimento; i = idéia e v = volição (vontade positiva ou negativa: querer ou não-querer)" (Souto & Souto, 1985: p. 69).
O pólos que se encontram em um processo sócio-interativo são chamados de compostos siv, que podem abranger tanto uma pessoas como um grupo delas. Na interação social, temos um processo contínuo de percepção, conhecimento e ação, no qual os homens comunicam e exteriorizam propostas e reações (elaboradas em sua mente) diante da conduta dos que o cercam, que edificarão a norma social. Sem sentimento, idéia e vontade, elementos inerentes ao processo mental humano, inexiste o fato social e, por conseguinte, a própria sociedade.
Como nos ensina Cláudio Souto e Solange Souto, o elemento s dos compostos orgânicos siv é sentimento: "sentimento do que deve ser (agradável) e do que não deve ser (desagradável).
A atividade biopsíquica siv é um movimento contínuo de conhecer (i), de sentir (s) que algo deve ou não ser em função de i, e de atuar (v) em função de si. Atuar quer internamente (mentalmente), quer externamente"(Souto & Souto, 1985: p. 70). O elemento i não pode ser dissociado dos demais, a não ser por abstração, dando o conteúdo cultural do composto siv, sendo influenciado e influenciando os elementos s e v. Estes se caracterizam por uma variação
constante, determinada pela afetividade, indicando um sentimento de agradabilidade ou de desagradabilidade, que por sua vez, podem ensejar uma ação positiva (querer) ou negativa (não querer).
O meio de comunicação no processo de interação social é a linguagem. Diante de sua indispensabilidade, Donald Pierson propõe a existência de dois tipos de interação social: a interação não-simbólica e a interação simbólica.
Na interação não-simbólica, a relação se faz de modo inconsciente, num sentido
estímulo-resposta, onde temos um processo de comunicação baseado nos sentidos animais, nos gestos e reações diante de um olhar, um odor, etc. Já na interação simbólica, há maior precisão na linguagem. Nesta, a linguagem é orientada para provocar uma resposta definida, a elaborar um significado, que se interporá entre o estímulo e a resposta. É através da interação simbólica "que os seres humanos obtêm um nível de experiência não conhecido pelos animais ‘inferiores’, e que chegam a agir num plano mental nitidamente diverso"(Pierson, 1964:
p. 180).
A sociedade procura padronizar o processo de interação social, no sentido de dotá-la de um significado construtivo e que estimule a coesão social, de modo que possa atender as necessidades básicas de seus membros. Na interação social, os indivíduos conhecem as regras que orientarão sua entrada no corpo social, tomam conhecimento de sua interdependência com seus semelhantes, informando-se qual o significado(s) que melhor se coadunem com a estabilidade das relações sociais. Ou como preferem alguns, que manifeste um sentimento de agradabilidade ou de justeza. "É através da interação que o ser humano aprende que a sua
própria interação com os seus semelhantes é limitada, controlada"(Souto & Souto, 1985: p. 73; grifo nosso).
A interação social pode ser: recíproca ou não-recíproca, pois nem sempre sua expressão se faz de modo superorgânico, podendo tanto ter um caráter receptivo-ativo(recíproco), como meramente ativo(não-recíproco), permitindo a inclusão dos pólos expressos fisicamente por um aparelho de TV ou um impresso, pois viabiliza uma espécie de interação social indireta entre o polo siv humano e o polo siv que procura difundir idéias através dos meios de comunicação de massa; primárias ou secundárias, conforme o maior ou menor distância social entre os atores do processo intersiv; simples ou grupal, inexistindo naquela permanência na interação. Embora não seja necessariamente expressa de forma superorgânica, a ação social sempre será intermental A interação social será grupal (ou associativa) quando se constata sua permanência, informada por uma idéia de semelhança entre os polos siv interagentes.
Na interação social grupal, o intersiv exteriorizado logra a estabilidade dos laços edificados na relação interativa, diante da superioridade qualitativa e quantitativa das idéias de semelhança sobre as de dessemelhança. Se para haver interação social é preciso que os compostos siv (indivíduos ou grupos de indivíduos) constituam um diálogo, onde expressaram seus sentimentos, idéias e vontades, temos a interação social grupal somente quando há aceitação do intersiv exteriorizado.
O sistema social é construído segundo a natureza das interações simples e grupais que estão em contínua evolução. A interação social, como já vimos, nada mais é senão um processo comunicativo de sentimento, idéia e vontade que são exteriorizados durante uma relação interativa determinada consoante os padrões sugeridos pela a sociedade.
O processo de interação social exige a presença do composto siv, que representa o indivíduo ou grupo de indivíduos que integram a sociedade e que estão num relacionamento contínuo. O polo siv representa, portanto, a unidade do processo social.
Quando o processo social se torna grupal, isto é, o intersiv exteriorizado consegue almejar a preponderância da similitude sobre a dessemelhança, constata-se a presença de uma idéia de aceitação, de identificação dos pólos siv com aquilo que foi comunicado. O significado do que se tentou passar no intermental expresso reveste-se de um conteúdo de semelhança, de estabilidade, de segurança, produzindo um sentimento de agradabilidade.
A supremacia da idéia de semelhança elimina uma maior distância social entre os pólos siv interagentes, que necessitaram de uma menor energia para o deslocamento do que desejam expressar entre si. O que, por conseguinte, constitui a garantia de uma maior probabilidade de equilíbrio do sistema social. É preciso alertar que "a semelhança preponderante, que explica o
equilíbrio social, não é porém qualquer semelhança, mas a semelhança entre os compostos sentimento, idéia e vontade interagentes"(Souto & Souto, 1985, p. 87).
Os processos sociais básicos que são construídos sob a distância social dos pólos interagentes são os processos sociais de aproximação e os processos sociais de afastamento.
Os processos sociais de aproximação caracterizam-se por edificarem os pólos siv em interação significados dotados de um conteúdo de semelhança, reduzindo a distância social entre eles. O sentimento e a vontade desses compostos siv são orientados a produzir uma sensação de agradabilidade e uma ação voltada para uma maior associação (cooperação) entre os pólos interagentes. Havendo um sentido construtivo e coerente com a interdependência social, o sistema social passa a conhecer uma maior estabilidade e coesão no âmbito das interações que o integram.
Permanecendo a relação interativa, "quanto menor a distância social entre os pólos interagentes, tanto maior é o índice relativo de interação entre eles"(Souto, 1992: p. 103). Se esse intersiv exteriorizado, a partir de sua permanência no espaço e no tempo, representa um elemento de equilíbrio para o sistema social, o processo social pode ser considerado como associativo. Enfim, a idéia de semelhança é preponderante e o sentimento é o de agradabilidade e a vontade é orientada para a coesão social.
Contudo, na evolução de cada composto siv, estamos suscetíveis as falhas e fraquezas de ser animal limitado por sua própria linguagem. O processo comunicativo humano nem sempre consegue induzir em cada um, o significado que se espera. Surgem então outros significados, não desejados e não construtivos para a vida em sociedade, que o indivíduo vai absorvendo no curso de sua existência.
Temos os processos de afastamento quando a dessemelhança prepondera sobre a
semelhança, causando a abertura de uma distância social maior entre os pólos interagentes. A interação social passa a ocorrer dentro de uma base de competição ou de conflito, numa tensão dissociativa entre compostos siv, que aprofunda as diferenças de vontade, idéia e sentimento. No processo social de afastamento, há uma maior presença de um sentimento de desagradabilidade, que compromete o equilíbrio do sistema social posto.
A padronização do elemento i (idéia) dos pólos interagentes é diretamente proporcional á semelhança entre eles, mais favorável ao equilíbrio social. Se essa padronização se faz de modo científico-empírico, haverá uma maior possibilidade de precisão no elemento i (idéia), e por conseguinte, de sua padronização. Em existindo a aceitação , ou uma tendência neste sentido, de sua obrigatoriedade, o processo social grupal se torna mais equilibrado, produzindo nos pólos interagentes um sentimento de agradabilidade, tranqüilidade, de justeza.
Para Cláudio Souto e Solange Souto, "um grupo social só o é na medida em que seus indivíduos se assemelham e cooperam. Não o é, na medida que eles se desassemelham e competem. Se a competição preponderar sobre a cooperação, já não há grupo, pois já não existe uma carga normativa comum preponderante, radicada nos organismos individuais. O grupo se dissolve ou se reduz a novos grupos menores, onde prepondere a semelhança"(Souto & Souto, 1985, p. 93). Ora, o composto siv somente encontra sua efetiva tranqüilidade quando se sente realmente integrado ao grupo social no qual nasceu. Se o grupo social
procura educar os seus membros numa lógica de conflito e de competição acirrada, este tende a segregar àqueles que falharam, por uma razão ou outra, excluindo-os das melhores oportunidades; pois não importa a tal sistema as razões pelas quais a pessoa não pode se enquadrar nos padrões ideais postos, mas sim a mera confrontação dos caracteres do composto siv ao que se espera de um "cidadão de bem", seja por critérios étnicos, culturais,ou econômicos, este preponderante nas sociedades capitalistas. Nesse processo de exclusão, dissociativo, os seus membros se sentem mais distantes entre si, necessitando de um maior grau de energia para poder se comunicar. Diante de sua marginalização, esses compostos siv procuram formar novos grupos, onde tentam reconstruir a semelhança reprimida.
Esses grupos de marginalizados passam a construir e elaborar instituições e interesses diversos daqueles preconizados pela sociedade que os excluiu. Em outras palavras, edificam uma ordem social autônoma daquela que formalmente os regeria.
3. Direito como Instrumento de Controle Social
A sociedade procura desenvolver o caráter social, padrões de comportamento que viabilizem uma vida uniforme para os seus membros. Procura transformar o indivíduo em pessoa humana.
A existência da ordem social demanda a redução das dessemelhanças entre os membros da sociedade, consoante a padronização prévia de pensamentos, sentimentos e atividades, sem se eliminar, todavia, todas as diferenças individuais (cf. Souto & Souto, 1985: p. 102).
Os esforços da sociedade em obter uma padronização construtiva do comportamento de seus membros dá-se o nome de socialização. Pode ser definida como "a modalidade de interação social em que um dos pólos siv interagentes tem maior índice de energia que os outros"(Souto & Souto, 1985: p. 104). Destaca-se nessa relação, "a padronização do elemento idéia: o padrão comunicado pelo pólo socializador (para recepção e adoção - ‘interiorização’ - pelo pólo ou pólos socializados) é de natureza grupal"(Souto & Souto, 1985: p. 104). O indivíduo
apreende sua personalidade e cultura através da socialização.
Quando o processo de socialização apresenta falhas, isto é, o que deveria ser aprendido e edificado na personalidade da pessoa para que esta pudesse efetivamente se integrar a vida em sociedade não é totalmente absorvido, a sociedade procura exercer sobre o indivíduo ou grupo o controle social. Constitui o controle social o mecanismo de retificação, por parte da
sociedade, daquilo que foi esquecido, não-adquirido ou mesmo desrespeitado pelo grupo ou indivíduo. Atua o controle social para a preservação do que foi considerado essencial para o equilíbrio do sistema social e que foi ameaçado pela falha constatada no processo de socialização.
Na interação social verificada no controle social, tem-se a presença de pólo siv interagente dotado de maior energia, que atua mediante o elemento v (vontade) sobre o pólo siv que se deseja controlar. O que pode ensejar tanto um sentimento de agradabilidade como um sentimento de desagradabilidade, consoante o que se deseja retificar.
Como afirma Nelson Saldanha, o "todo social se integra de instituições e convivências, que implicam em normas, dominações, equilíbrios e valores"(Saldanha, 1970: p. 59).
O instrumento mais poderoso a disposição da sociedade para exercer o controle social é o direito.
Durante a interação social, padrões e regras de comportamento são comunicados entre os pólos siv interagentes (cf. Souto & Souto, 1985: p. 230), influenciados e influenciando os elementos sentimento (s), idéia (i) e vontade (v), presentes em cada indivíduo ou grupo humano. Se essas propostas de conduta permanecem na mente do composto siv, sem serem exteriorizadas na interação social, temos uma norma mental (individual) ou uma norma social armazenada (que é comunicada ao composto siv e absorvida como regra de conduta pessoal). Somente havendo a exteriorização da proposta de conduta, é possível afirmar a
existência de uma norma social e, se tal proposta é elevada a regra de conduta, a norma social torna-se grupal.
A proposta de conduta é elevada a regra de conduta quando há sua aceitação pelos pólos siv interagentes. Como já vimos, o composto siv tenderá a recepcionar como justo aquilo que lhe foi exteriorizado com a idéia de semelhança, produzindo uma sensação de suavidade e de afetividade.
O direito constitui a forma principal de controle social, dotada de um alto teor impositivo e de maior complexidade técnica, se comparada com as demais modalidades de controle social
(Saldanha, 1970: p. 61), retirando não somente de si mesmo, mas também através da ação de forças sociais a sua efetividade (cf. Saldanha, 1970: p. 60).
As normas jurídicas são as normas sociais mais fundamentais, por conter as regras de conduta que são as mais caras para o equilíbrio do sistema social, e, portanto, dotadas de uma maior intensidade de atração. As normas jurídicas são as presilhas da estabilidade social, que são comunicadas de modo objetivo e involuntário aos indivíduos (Pontes de Miranda, 1980: p. 156).
A maior energia de atração que a norma jurídica tem, quando comparada às demais normas sociais, decorre do fato que a mesma exige a construção de mecanismos institucionais que lhe concedam as necessárias estruturas formais. O Estado constitui o meio mais usual das ociedades desenvolvidas exercerem sobre seus membros o controle social através do direito, que sistematiza a forma pela qual ele será efetivado, garantindo assim, aos controlados, certeza e estabilidade nas interações sociais.
Estado deve ser entendido aqui como o pólo siv que dispõe do poder de impor à sociedade um sistema jurídico escalonado, energia esta decorrente da aceitação da própria sociedade de sua necessidade ou justeza. O Estado também pode ser encarado como um composto siv que logrou chegar ao poder.
Émile Durkheim, ao explicar sua teoria da divisão de trabalho social, analisou a relação do direito com a alta intensidade da especialização de funções sociais nas sociedades mais desenvolvidas. Quanto mais desenvolvida a divisão de trabalho, mais a coesão social se torna um fator essencial para a integração geral da sociedade, pois:
"(...) o número destas relações é necessariamente proporcional ao das normas jurídicas que as determinam. Com efeito, a vida social, por todo o lado onde ela existe de uma maneira durável, tende inevitavelmente a tomar uma forma definida e organizar-se e o direito não é outra coisa senão esta mesma organização, naquilo que ela tem de mais estável e de mais preciso. A vida geral da sociedade não pode estender-se num certo sentido sem que a vida
jurídica para aí se estenda ao mesmo tempo e na mesma proporção. Podemos assim estar certos de encontrar refletidas no direito todas as variedades essenciais de solidariedade social"(Durkheim, 1980: p. 123).
Entretanto, o direito não se restringe somente a sua forma de manifestação, mas também demanda um estudo científico-empírico quanto ao seu conteúdo, "pois do simples discernimento do que é e do que não é fenômeno jurídico resulta, entre muitos outros dados exatos, a discriminação do que podia e do que não podia ser imposto pelo legislador, pelo Estado, do que, dentre o direito escrito, deve e do que não deve ser atendido ou aplicado, bem com do que, ainda que não escrito, não votado e não promulgado, deve ser tido por direito e, portanto, observado na prática jurídica"(Pontes de Miranda, 1980: p. 157). Ou nas palavras de Cláudio Souto, que ciência é essa que diz que "apenas que a água é um composto químico?" (Souto, 1992: p. 100).
O controle social proposto pela sociedade através do direito deve estar embasado em dados científico-empíricos, de modo que a sua ação através do sentimento (sugestão), conhecimento (persuasão) e força (coerção) possa obter uma maior aceitação junto aos compostos siv em contínua interação. Desse modo, o direito pode encontrar uma maior precisão e certeza, podendo ensejar o sentimento de agradabilidade que justifica sua existência como instrumento
de socialização e controle social.
Outro elemento essencial que explica o alto grau de atração da norma jurídica é o fato que elas são construídas na interação social como regras de conduta diretamente ligadas à preservação da própria espécie humana (Souto, 1993: passim). Onde outros instrumentos de controle social falham ou são insuficientes para a manutenção do equilíbrio social, o direito constitui a última barreira social contra uma conduta atentatória a paz social.
O direito procura edificar, então, um sistema de sanções organizadas e efetivas que têm a sua aplicabilidade realizada independentemente da anuência do infrator. O controlado pode até sentir uma disforia quanto a sua imperatividade. Embora todas as interações sociais de competição, conflito, ou de hierarquização representem, em si mesmas, processos de afastamento no espaço social, o direito não prescinde dessas modalidades de interação social
quando elas são necessárias para a prevenção de um afastamento maior, fertilizado por uma conduta social, cuja tolerância comprometeria o próprio equilíbrio da sociedade (Souto, 1993: p. 70). A coercibilidade e a imperatividade somente se justificarão se a sociedade, como um todo, tiver um sentimento de agradabilidade quanto a necessidade da atuação do direito
proposto, pois se o Estado, órgão responsável pela preservação do ordenamento jurídico positivo, deixa de atuar no sentido da conservação da espécie humana, passa a ser contestado e, em última instância, destruído e substituído por outro que o faça.
Em seu aspecto formal (cf. Souto, 1992: pp. 9-17), o modelo que tem se mostrado mais estável para a sociedade é aquele constituído por um ordenamento jurídico escalonado e dotado de máxima unicidade e completude, lastreado pela norma fundamental (Bobbio, 1995: passim). Caberá a chamada norma fundamental conceder a validade e eficácia formal das normas jurídicas que integrarão o sistema positivo de direito (Bobbio, 1995: p. 67). A hierarquia e a coercitividade, instrumentos de concretização lógica do direito, das normas jurídicas, servem como garantia formal da certeza, para o controlado, do modo que será empregado para a retificação da conduta social lesiva à sociedade.
A segurança da norma jurídica também está condicionada ao fato de dever ser parte integrante de um ordenamento jurídico formalmente positivado. Se existe uma norma que lhe seja desviante, é porque ela integra um ordenamento que lhe é divergente ou alternativo. A importância da sistematização do direito está diretamente ligada ao padrão de desenvolvimento das interações sociais. O conteúdo sem forma é tão arbitrário como a forma sem conteúdo, principalmente quando se fala de uma sociedade mais complexa e de maior refino tecnológico.
O estudo do direito não deve ficar restrito à sua perspectiva lógico-formal. É preciso que se construa métodos cientificamente aceitos para a apuração do conteúdo da Jurisprudência, que poderão assegurar ao jurista não somente a coerência do ordenamento jurídico que está aplicando, como também a identificação do significado da norma jurídica com a realidade social que se deseja regular. Pois como o direito pode reivindicar sua imperatividade ignorando os sentimentos, idéias e vontades daqueles que se submetem ao seu controle, se é justamente pelo sentimento de agradabilidade, pela idéia de semelhança e pela ação voltada para o equilíbrio social que se justifica o próprio poder?
Podemos então definir a regra de conduta jurídica aquela que é comunicada por um pólo siv interagente dotado de maior energia (poder), dentro das formas usualmente estabelecidas no ordenamento jurídico positivo, que prescreve os padrões de comportamento que devem ser seguidos obrigatoriamente pelos pólos siv controlados, lastreados por dados obtidos por métodos científico-empíricos, e justificados por sua relevância para a conservação da espécie humana.
As prescrições jurídicas se fazem sempre presentes quando há uma maior precisão e consolidação dos padrões de comportamento que regerão as interações sociais (Durkheim, 1980: p. 125). Mas nem por isso as interações que não são regulamentadas pelo direito ficam indeterminadas, pois em tais casos, a sociedade recorre a outras modalidades de controle social como a moral e a eqüidade (Souto, 1992: p. 102).
Contudo, é possível que o ordenamento jurídico contenha prescrições que, aparentemente, atribuem ao pólo siv a faculdade de optar ou não, pelo padrão de comportamento proposto, ou mesmo, ensejem uma conduta distante da idéia de semelhança e do sentimento de agradabilidade que devem prevalecer nas interações sociais.
4. A Instituição da Propriedade
A norma jurídica, quando é comunicada, tem por objetivo propor soluções para os conflitos que continuamente surgem na sociedade, ou seja, fulminar no corpo social àqueles processos sociais dissociativos, cuja permanência é prejudicial ao equilíbrio e coesão sociais. Quanto maior a complexidade da sociedade, maior a necessidade que a conduta proposta no preceito jurídico tenha a forma mais precisa e um conteúdo mais estável, para que possa satisfazer as exigências da divisão social de trabalho.
Se a conduta jurídica proposta é aceita como adequada para a interação que se queira regulamentar, tem-se a construção de uma instituição jurídica (Coing, 1962: p. 7). Esta passará a orientar todos que precisarem do tipo de processo social por ela regido, devido ao alto grau de compatibilidade com a solução posta e o problema apresentado. Contudo, os problemas e instituições variam no tempo e espaço sociais, seguindo os passos da evolução histórico-social da própria sociedade na qual surgiram, e, guardando, algum grau de semelhança entre o passado e o presente (Coing, 1962: p. 7).
Um dos focos de alta probalidade de conflito e de dissociação tem sido, no decorrer de toda a evolução da humanidade, a disposição dos bens economicamente apreciáveis. Que costumamos reduzir a uma palavra: propriedade.
A propriedade, como instituição jurídica, surgiu como regramento para os homens no trato de seus bens materiais. Como sempre ensejou disputa e litígio, as sociedades humanas resolveram, por bem, estabelecer rigorosos mecanismos de controle social, centralizados no direito, para que a produção, acumulação e posse de bens econômicos se fizesse da forma mais pacífica e estável possível.
Entendemos a instituição jurídica da propriedade como o sistema normativo proposto pelo direito a fim de estabelecer padrões de comportamento viáveis para as relações que se desenvolvem em torno do patrimônio.
A instituição jurídica da propriedade sofreu uma evolução bastante interessante quanto as soluções que propunha para o regramento estável e preciso do problema da propriedade.
Como ensina Helmut Coing, a propriedade, como instituição, mantém uma evolução
intrinsecamente ligada aos padrões de conduta propostos para quem a detém (cf. Coing, 1962: p. 7).
Conseqüentemente, a instituição da propriedade reflete a visão da sociedade de como os detentores dos bens de valor econômico devem conduzir e fruir das vantagens materiais decorrentes de sua posição da sociedade. Assim como, sofre profunda influência de como a sociedade produz e estabelece o que é válido, precioso ou indispensável para a existência material para o ser humano.
Se a instituição da propriedade não reflete mais o intensamente desejado para a satisfação do desejo material do homem, ela estará sujeita às alterações que se fizerem necessárias para adequá-la aos novos tempos. Em não sendo efetivada formalmente as mudanças demandadas pelo novo estágio de divisão de trabalho alcançada, o preceito jurídico se torna, então, obsoleto e ignorado por quem deveria segui-lo, por não haver mais no mundo social aquela interação social, tal como estava regulamentada.
O controle da disposição dos bens econômicos se faz através da padronização jurídica do processo de sua preservação (produção, distribuição e consumo), que por sua vez, orienta o poder de dispor do trabalho e dos meios de produção.
Todo o estágio do desenvolvimento econômico está sujeito a regulamentação de bens, bem como a uma ordem de trabalho "As instituições legais que operam essa regulação submetem o mundo de matéria, pedaço por pedaço, à vontade de indivíduos escolhidos, uma vez que a comunidade só existe através de seus membros individuais", provendo o indivíduo de detenção, para que possa dispor dos objetos e possuí-los (Renner, 1980: p. 149).
Tradicionalmente, a propriedade é encarada como uma aspecto que interessa tão somente ao seu próprio detentor, que deve ter garantida pela sociedade sua plena disposição. Retirar da propriedade qualquer um dos poderes classicamente inerentes ao proprietário, a saber, o uso, gozo, fruição e livre disposição, podendo opor contra qualquer um que ameace sua posse, a prerrogativa de proprietário do bem reivindicado, significaria atentar contra um dos alicerces
do ordenamento jurídico.
A instituição da propriedade inicialmente era posicionada dentro dos preceitos jurídicos que regulavam a esfera jurídica individual de cada composto siv. Bastaria sua detenção para que configurasse a plena legitimidade da posse e disposição do bem econômico.
Em sua sociologia aplicada ao capitalismo, Karl Marx mostra-nos como o sistema capitalista de produção e de acumulação de riqueza está intrinsecamente ligado ao conflito de classes entre os proprietários dos meios de produção e aqueles que, para sobreviver, necessitam vender sua força de trabalho para os primeiros. A propriedade, como leciona, Marx, somente pode ser estudada quando inserida no modo de criação, produção e distribuição de riqueza, do capital. E a apropriação privada da riqueza constitui o instrumento, por excelência, da
preservação das relações sociais no capitalismo. Sem propriedade privada, não haveria o poder econômico individual que exerce tanta influência na vida social (apud Dahrendorf, 1982: p. 25; para uma apreciação crítica da teoria marxista, ver Souto & Souto, 1985: p. 13).
Para o jurista, ele faz um importante alerta:
"Em todas as épocas históricas, a propriedade se desenvolveu de modo diferente e sob condições sociais diferentes. Definir a propriedade burguesa significa nada menos que descrever todas às condições sociais da produção burguesa. A tentativa de definir a propriedade como uma relação independente, como uma categoria especial, como uma idéia abstrata é eterna não é nada mais que uma ilusão da metafísica ou da jurisprudência"(apud Dahrenforf, 1982: p. 23).
Entretanto, o ordenamento jurídico pode exercer influência sobre as relações de produção de riqueza. Malgrado o desenvolvimento da sociedade capitalista tenha acirrado as diferenças e conflitos sociais, a divisão de trabalho social, que resulta de cada salto do sistema, implica na maior complexidade e interdependência nas interações sociais. Quanto mais as funções atribuídas aos bens se tornam mais especializadas e assume um grau de abstração técnico-jurídica mais árido à sua regulamentação; o que antes representavam normas e
instituições jurídicas efetivamente adequadas aos novos tempos, são deixadas de lado e não encontram mais respaldo na sociedade em contínua mudança. Portanto, os padrões de comportamento que devem orientar a disposição da propriedade precisam partir de um enfoque compatível com a maior interdependência social alcançada.
Mas nem todos os setores da sociedade tomam consciência da obsolescência de práticas antigas de disposição da propriedade como, por exemplo, o latifúndio, onde a terra é acumulada e subtilizada para fins estritamente especulativos e, por conseguinte, antisociais, à medida que destrói a pequena propriedade rural e força os antigos proprietários a rumar para as cidades, contribuindo ainda mais para a estratificação irracional da sociedade. Esses elementos são encarados de forma insensível por estes pólos siv, na vã ilusão que os efeitos
de sua conduta não comprometem a própria estabilidade de suas posses, haja vista a tarefa assumida por quase toda totalidade dos Estados conhecidos em oferecer ao detentor da propriedade os meios de sua disposição.
O caráter explosivo das frustrações acumuladas por aqueles que foram excluídos do processo de produção de riqueza, seja pela falta da posse de condições materiais mínimas de subsistência, seja pelo desemprego, representa um foco constante de tensão social. A propriedade se torna, então, um processo social de afastamento, que serve como um poderoso catalisador das reações violentas e intempestivas de quem viu recusada sua concreta integração social.
Se há um aumento na interdependência social, se as interações sociais se tornam cada vez mais dependentes da estabilidade de toda sociedade e de suas instituições, porque ainda insistir no emprego de soluções que não correspondem mais com a realidade social?
A liberdade jurídica do detentor da propriedade existe de forma inquestionável na ordem proposta pelo direito. Contudo, ao propor regras de conduta para o proprietário, ainda se parte da antiga instituição da propriedade individual, consagrada e grau máximo do altar das ideologias liberais.
É interessante para o tema a opinião de Karl Renner sobre o assunto:
"A função de um direito in rem não é revelada apenas por uma persona ou res, nem pelo poder legal da persona sobre a res, que é meramente liberdade de ação concedida pela lei.
Sua função é revelada pelo uso ativo do direito, na maneira do exercício - que na maioria dos casos fica fora da esfera da lei. (...) O exercício do direito, entretanto, não é apenas de relevância social, ele próprio é determinado pela sociedade. O camponês isolado decide, a seu prazer, como utilizar sua terra, mas o produtor capitalista é motivado pela posição do mercado, pela sociedade. Legalmente livre, ele é economicamente preso, e seus liames são formados pela relação entre ele próprio e todos os demais objetos-propriedades. Desde que
o exercício de um direito não é determinado pela lei mas por fatos fora da esfera legal, a lei perde controle da matéria" (Renner, 1980: p. 150).
Na edificação da instituição da propriedade, é preciso se atentar para tal aspecto. Não importa a forma através da qual se padroniza a conduta a ser seguida pelos detentores da propriedade na interação com aqueles que não a possuem, contanto que ela apresente a necessária estabilidade e coerência com o ordenamento jurídico posto. Mas a regulamentação da apropriação e utilização dos bens econômicos deve levar em consideração a relevância que a sociedade atribui para a maneira de seu exercício. A sociedade, quando atribui faculdades
legais ao proprietários dos meios de produção, não pode ignorar o impacto econômico de sua fruição na própria estabilidade das relações sociais, bem como, a sua importância para a conservação da própria espécie humana.
5. A Função Social da Propriedade
A instituição legal, quando tem a pretensão de regular as interações sociais que se processam em torno dos bens econômicos, concedem ao pólo siv liberdade de agir, oportunidade e poder jurídico para que possa instrumentalizar a propriedade no sentido de satisfazer suas necessidades materiais. Tais pretensões são causadas por um sentimento ligado a subsistência, utilidade ou mesmo, meramente ligado ao seu conforto sócio-econômico. Entretanto, como os
bens econômicos são peças que movem o chamado processo de produção, circulação e
apropriação de riqueza, sua disposição está necessariamente condicionada aos padrões e formas econômicas, de natureza técnico-científica, que a sociedade prescreve para a sustentação da ordem de funcionamento do sistema econômico vigente.
A ordem de funcionamento do sistema econômico seguido pela sociedade compreende a ordem de trabalho social, que segundo Karl Renner, "determina as atividades reais e dá um conteúdo concreto aos claros que a lei fornece", concedendo "a toda pessoa uma imutável máscara de caracterização e a todo objeto uma forma econômica definida" (Renner, 1980: p. 151). Portanto, isoladamente, a instituição jurídica é completamente incapaz, se considerada de modo isolado, de compor o conteúdo das condutas que deverão orientar os processos
sócio-econômicos de apropriação da propriedade, sob pena de se tentar impor padrões normativos muito distantes dos problemas sócio-econômicos enfrentados pelo direito.
O direito tem a função social de apresentar a sociedade um ordenamento normativo dotado da coerência e lógica exigidas pelo alto grau de desenvolvimento tecnológico que nossas sociedades normalmente apresentam, mediante uma forma que permita ao jurista uma aplicação segura e precisa da norma jurídica, na prática judicial e administrativa do direito. O
que permitirá, conseqüentemente, que a sociedade exerça o controle social daquelas condutas estrita e essencialmente ligadas à preservação da espécie humana e, concomitantemente, à estabilidade que os processos sociais demandam, conferindo-lhes um caráter associativo e favorável a coesão social.
Junto à forma do direito, é preciso que o controle social realizado pelas vias judiciais leve em consideração que somente é alcançada a consolidação da instituição legal quando esta atenda sua função social. E isto assume um elevado patamar de relevância para a instituição da propriedade.
A propriedade somente preenche suas funções essenciais, prescritas pela ordem de
funcionamento, quando em conexão com instituições jurídicas que lhe são complementares.
"Não importa quão cuidadosamente se decomponha o conteúdo dos direitos de propriedade (o poder geral de disposição) em competências individuais, não se descobrirão os efeitos nocivos da propriedade, pois eles se desenvolvem apenas quando a propriedade é combinada com o contrato de emprego, o contrato de empréstimo e o resto" (Renner, 1980: p. 150).
Para que a instituição da propriedade possa efetivamente se apresentar para os compostos siv como um complexo de normas jurídicas que efetivamente ofereçam padrões de comportamento adequados para os processos sociais incidentes sobre bens de valor econômico, é indispensável sua compatibilidade com sua função social. Há a concretização da função social da propriedade quando a sua instituição jurídica serve de instrumento para a preservação da ordem de funcionamento prescrita pela sociedade, atuando de maneira integrada com as demais instituições jurídicas a ela correlacionadas.
É perfeitamente possível que a sociedade ainda tolere alguns mecanismos de apropriação e produção de riqueza completamente incompatíveis com o seu próprio equilíbrio, como por exemplo nos casos do latifúndio improdutivo ou o desmatamento indiscriminado de reservas florestais, técnicas consideradas pela ciência como gravemente prejudiciais e perigosas a longo prazo para a humanidade. A tolerância de elementos dissociativos no sistema econômico é
proveniente muito mais da força sócio-econômica dos permanecem na conduta de
afastamento do que, propriamente, da ausência de instrumentos jurídico-positivos orientados para o controle social específico do comportamento nocivo à sociedade.
A sincronia entre a instituição jurídica da propriedade e a função social da propriedade representa a reprodução de um processo social associativo.
Vimos ao estudar os processos sociais, que eles podem assumir tanto um caráter associativo como um caráter dissociativo, consoante o sentimento, a idéia e a vontade manifestadas e alcançadas na interação social.
Quando a propriedade-objeto constitui o foco das atenções dos pólos siv, há o
estabelecimento de todo um complexo de interações sócio-jurídicas que se desenvolvem orientadas pela ordem de funcionamento prescrita pela sociedade. Quanto maior a complexidade da disposição da propriedade-objeto, maior a necessidade de padrões de comportamento que assegurem a estabilidade da ordem de funcionamento que deve ser seguida.
As interações sociais decorrentes da apropriação e exercício das faculdades concedidas pela posse da propriedade-objeto, são asseguradas pela instituição da propriedade, que procura padronizar e adequar a conduta do proprietário às exigências da ordem de funcionamento da economia, atendendo-se sua função social.
Acontece que as interações sociais incidentes sobre uma propriedade-objeto cuja utilidade e o impacto de sua disposição fica restrito à esfera econômica individual, segundo a ordem de trabalho social, estão sujeitas a um menor grau de intervenção do controle social instrumentalizado pelo direito. Se a relevância da propriedade-objeto é essencial apenas para o consumo e subsistência do seu detentor, o controle social tem uma natureza mais tênue.
Nas interações sociais voltadas para aquela propriedade-objeto que, segundo a ordem de funcionamento, tem um papel de alta relevância e complexidade para a produção, distribuição e circulação de riqueza. Aí o controle social se faz mais intenso, restringindo o alcance das faculdades as quais gozariam, aparentemente, de toda plenitude na esfera econômica individual, haja vista o impacto social de sua disposição abusiva na esfera econômica coletiva.
E, não raras vezes, aquelas normas previamente estabelecidas no direito estatal para a resolução dos conflitos em torno da propriedade-objeto são ignoradas, e até mesmo, descumpridas, face sua distância da ordem de funcionamento consagrada nos processos de interação social.
Joaquim Falcão, ex-professor da Universidade Federal de Pernambuco, realizou uma
importante pesquisa, fundamentada em dados científico-empíricos, sobre as invasões de propriedades urbanas por famílias de baixa renda na Região Metropolitana do Recife, ocorridas entre 1963 e 1980 (cf. Falcão, 1993: passim).
Nesse estudo, verificou-se, que diante da relevância e da potencialidade do conflito entre os invasores e os proprietários dos bens esbulhados, os órgãos e representantes legais competentes que atuaram em cada caso se mostraram bem flexíveis quanto a aplicação das formas clássicas prescritas na legislação civil e processual civil, ignorando muitas vezes dispositivos legais expressos e claros. Em quase todos os casos estudados, o Estado interviu direta ou indiretamente na lide, embora formalmente não estivesse prevista sua presença.
Os operadores jurídicos encarregados de compor o litígio enfrentaram a incompatibilidade das formas e concepções previstas na lei e, procuraram, alternativas mais adequadas para o caso concreto. Na maioria dos casos, foram construídos mecanismos mais coerentes com a natureza da lide levada à juízo.
Os juízes aos quais couberam dirimir o conflito acabaram por ter que ignorar o direito estatal e auxiliar as partes a recorrer a outras normas, aparentemente distantes da legislação do Estado.
A legislação processual e civil ainda encara, como se constatou na pesquisa, o conflito decorrente da propriedade como um problema de natureza predominantemente individual. O que impossibilitou, em diversas ocasiões, a obediência férrea aos procedimentos legais.
Embora no Código Civil esteja consagrada uma concepção bem definida de propriedade, aparentemente concedendo a plena disposição da propriedade, e, no Código de Processo Civil, todo um complexo de instrumentos processuais de defesa da posse e da propriedade, viu-se que a natureza eminentemente social do conflito de propriedade trazido à apreciação dos órgãos jurisdicionais impôs novos meios de resolução da lide. O que seria formalmente individual se mostrou materialmente social.
A ordem de funcionamento que edifica os grilhões econômicos da disposição da propriedade condicionaram as normas empregadas nos casos pesquisados, quebrando a impotência das normas estatais elaboradas numa concepção privatista e estritamente individualista da propriedade, para se evitar uma maior discrepância entre o posto pelo direito e o imposto pela ordem de trabalho social. Se as normas estatais tivessem sido aplicadas hermeticamente, é
inegável que assistiríamos nas situações apresentadas graves e violentas lutas.
A responsabilidade do Estado, o composto siv que as sociedades mais organizadas e complexas elegeram como a mais importante fonte de controle social através do direito, deve abranger a conciliação das instituições jurídicas propostas com as demandas de sua função social, sob pena de tornar inaplicável os padrões de comportamento que se deseja promover como os acertados.
A instituição da propriedade não pode ser empregada sem que esta atenda sua função social, pois do contrário, o Estado poderá estar consagrando sob o manto da legalidade um volátil e prejudicial processo social de afastamento entre os pólos siv em interação. Um processo dissociativo que pode provocar um profundo sentimento de desagradabilidade e uma idéia de dessemelhança que impulsiona os compostos siv para a violência. E a violência compromete a preservação da espécie humana e da coesão social indispensável para o equilíbrio das interações sociais.
Desencadeado um processo dissociativo em torno de uma propriedade-objeto que represente uma elevada posição e importância na ordem de funcionamento, sua influência negativa afeta a sociedade como um todo, pois os seus efeitos nocivos não ficam restritos a esfera econômica individual.
Embora a ordem de funcionamento deva condicionar a composição da instituição da
propriedade, e que esta somente pode ser empregada quando em conjunto com outras
instituições jurídicas, o ordenamento jurídico também pode influenciar de forma positva e associativa a ordem de trabalho social, através da construção positiva de normas que preservem efetivamente a paz social.
Cabe ao direito assegurar mediante a prescrição obrigatória de condutas padronizadas e uniformizadas, devendo estas serem informadas por dados científico-empíricos e asseguradas pela sua ordenação lógica e coerente. Desse modo, existirá uma tendência maior por sua aceitação pelos compostos siv nos processos de interação social, como o melhor padrão de comportamento para a situação social posta. Se os compostos siv sentem-se seguros e tranqüilos com o que foi comunicado, assumem uma maior identificação com a instituição jurídica criada.
A instituição da propriedade, tal como o direito como um todo, somente se justificará se houver o atendimento de sua função social. As normas jurídicas que a compõe tem um caráter ressocializador e retificador da péssima e dissociativa disposição da propriedade-objeto.
Compete a mesma oferecer aos compostos siv mecanismos afinados com a ordem de
funcionamento, favorecendo processos sociais associativos e compatíveis com a
interdependência social produzida pelas sociedades modernas.
A legitimidade jurídica da apropriação e disposição da propriedade-objeto está diretamente condicionada a função social que lhe foi imposta pela ordem de trabalho social. Se os critérios técnico-científicos da melhor e mais produtiva disposição dos bens de valor econômico forem observados, haverá uma maior probabilidade da construção de processos sociais de aproximação entre os pólos siv envolvidos na interação em torno da propriedade-objeto.
6. A Concretização da Função Social da Propriedade
A propriedade privada foi consagrada nas sociedades modernas como um símbolo de status, de sucesso e de objetivo maior dos compostos siv em interação. Tem um papel importante nas interações sociais, em virtude de sua posição na ordem de funcionamento da sociedade no trato das questões ligadas a produção, distribuição e circulação de riqueza.
A ordem de funcionamento, ou ordem de trabalho social, tem sua complexidade
técnico-científica diretamente relacionada ao grau de desenvolvimento tecnológico e social das interações sociais que deseja ordenar. A ela competirá definir o modo de operação dos direitos, bem como, as funções sociais de cada agente no trato dos bens que integram o patrimônio material e moral da humanidade.
A ordenação dos processos de interação social que atuam sobre bens de valor econômico, como os que atuam sobre bens de outra natureza (moral, espiritual, humano etc.), demanda a edificação de mecanismos efetivos e seguros de controle social, representados em sua manifestação mais fundamental pelo direito, que permitirão à sociedade retificar aqueles processos sociais dissociativos e comprometedores do equilíbrio e paz sociais.
Quanto mais a sociedade se desenvolve, as interações sociais ocorrem de maneira mais interdependente, assumindo a idéia de semelhança e o sentimento de agradabilidade o caráter de elementos indispensáveis para a permanência, estabilidade e justeza dos processos sociais grupais.
O direito tem a tarefa de constituir a última e mais poderosa barreira contra os efeitos prejudiciais decorrentes das falhas constatadas na socialização, processo pelo qual a sociedade constrói a personalidade humana. Ele reprime e retifica aquelas condutas que a sociedade julga como intoleráveis, através de um sistema organizado de prescrições e sanções jurídicas, que devem obedecer uma perspectiva lógico-formal previamente estabelecida e, bem como, as demandas da interdependência social. O conteúdo da norma jurídica, instrumento de coesão social e de preservação da espécie humana, deve ser informado por hipóteses empiricamente testáveis, de modo que o fato normado e a conduta comunicada
possam dispor da indispensável precisão conferida pelo método científico-empírico de conhecimento.
Os problemas de socialização ensejam a criação de normas, e, se aceitas e consagradas como necessárias e favoráveis a coesão social, de instituições jurídicas. Estas se apresentam como um complexo lógico e coerente de normas jurídicas que prescrevem os padrões de comportamento que devem ser observados em um dado tipo de interação social.
Dentre as mais importantes instituições jurídicas, está a da propriedade, que constitui a opção da sociedade em construir meios pacíficos de produção e apropriação da riqueza. Do contrário, o saque, a guerra e a invasão ainda consistiriam os meios de aquisição da renda.
A instituição jurídica da propriedade somente tem concreta sua aplicação se atendida sua função social. A função social da propriedade representa a relevância da propriedade-objeto sujeita ao processo social de interação, que é determinada pelos critérios técnicos-científicos fixados na ordem de funcionamento das interações sociais que incidem sobre bens economicamente apreciáveis.
A garantia institucional da propriedade desencadeia um processo associativo de disposição da propriedade se encarada como um elemento integrado a outras instituições jurídicas que mobilizam os efeitos produtivos do exercício das faculdades jurídicas conferidas pelo ordenamento jurídico positivo aos proprietários. A sincronia da garantia jurídica com a sua função social tornam mais suscetível o sentimento de agradabilidade e ensejam junto aos compostos siv maior identidade com as condutas prescritas pelo direito para a situação
concreta.
Desse modo a posse do bem economicamente apreciável passa a ser visto como um elemento real da ordem de funcionamento, contribuindo para a sua estabilidade, coesão e permanência como sistema social; assim como para a diminuição da distância social entre o pólo siv detentor da propriedade-objeto e os demais pólos siv com os quais precisa manter um processo social grupal, que mobiliza economicamente as vantagens de sua condição de proprietário.
Se propriedade-objeto é empregada de forma dissociativa, isto é, divorciada da função social que lhe foi prescrita pela ordem de trabalho social, perde a sua disposição a legitimidade jurídica. As normas jurídicas que disciplinam o trato com a propriedade-objeto devem guardar continência com a realidade da ordem de funcionamento técnica e cientificamente estabelecida pela sociedade, pois correm o risco de que, dissociadas da natureza da matéria a ser
regulamentada, provoquem sua própria inobservância (parcial ou total) pelos pólos siv em interação.
Quando a instituição da propriedade passa a conter prescrições dissociadas da ordem de trabalho social, torna-se passível de contestação dos pólos siv que pretendeu beneficiar. Isso gera intranqüilidade, conflito e desagradabilidade, deixando inseguros e tênues os processos sociais nos quais se deve construir a ordem de funcionamento. Instável a produção, a distribuição e a circulação da riqueza, pela ausência da propriedade, os pólos siv se entregam ao conflito e a competição, comprometendo a preservação da espécie humana.
A falência das concepções individualistas de propriedade pode ser constatada pela crise gerada pela insistência da aplicação de normas, ainda que protegidas pelo véu estatal, condenadas à impotência diante da força das pressões sociais dos injustamente excluídos da fruição das riquezas produzidas pela sociedade. Os conflitos de terra no campo de nosso vasto país são uma demonstração clara e inquestionável do modelo normativo que se tentou implantar numa sociedade onde a interdependência mostra-se cada vez mais forte.
Somente se tem a propriedade efetiva e concretamente tutelada pelo direito quando o jurista, legislador e administrador se mostram sensíveis à sua função social. A inexorável força da ordem de funcionamento condena todo aquele que procura quebrar os laços construídos pelo contínuo desenvolvimento sócio-econômico do homem.
Quebrar o laço imposto pela sociedade para a disposição da propriedade compromete a própria existência da propriedade.
BIBLIOGRAFIA
BOBBIO, Noberto (1995). Teoria do Ordenamento Jurídico. 6 ed. trad. p/ Maria Celeste Cordeiro dos Santos. Brasília: Editora UnB.
COING, Helmut (1962). Formas Básicas de Direito. In: Humboldt. Hamburgo: 2(5), págs. 5-10.
DAHRENDORF, Ralf (1982). Classes e seus Conflitos na Sociedade Industrial. Col. Pensamento Político. nº 28. Brasília: Editora UnB.
DURKHEIM, Émile (1980). Divisão do Trabalho Social e Direito. Trad. p/ Maria Inês Mansinho e Eduardo Farias. In: FALCÃO, Joaquim. & SOUTO, Cláudio (orgs.). Sociologia e Direito - Leituras Básicas de Sociologia Jurídica. São Paulo: Pioneira, págs. 121-130.
FALCÃO, Joaquim (1993). Justiça Legal e Justiça Social: Conflitos de Propriedade no Recife. In:SOUZA JÚNIOR, José Geraldo (org.). Introdução Crítica ao Direito. Brasília: CEAD, págs. 109-120.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti (1980). A Naturalidade do Fenômeno Jurídico. In: FALCÃO, Joaquim. & SOUTO, Cláudio (orgs.). Sociologia e Direito - Leituras Básicas de Sociologia Jurídica. São Paulo: Pioneira, págs.155-157.
PIERSON, Donald (1964). Teoria e Pesquisa em Sociologia. s/trad. 8 ed. São Paulo: Melhoramentos.
RENNER, Karl (1980). Instituições Legais e Estrutura Econômica. In: FALCÃO, Joaquim & SOUTO, Cláudio (orgs.). São Paulo: Pioneira, págs. 147-157.
SALDANHA, Nelson Nogueira (1970). Sociologia do Direito. São Paulo: RT.
SOUTO, Cláudio. & SOUTO, Solange (1981). Sociologia do Direito. São Paulo: LTC/EDUSP.
SOUTO, Cláudio. & SOUTO, Solange (1985). A Explicação Sociológica - Uma Introdução à Sociologia. São Paulo: E.P.U.
SOUTO, Cláudio (1992). Ciência e Ética no Direito - Uma Alternativa de Modernidade. Porto Alegre: saFE.
SOUTO, Cláudio (1993). Modernidade e Pós-Modernidade Científicas quanto ao Direito. In: Anuário do Mestrado em Direito. nº 6. Recife: UFPE/CCJ/FDR, págs. 39-78.
links
artigos