A Constituição de 1988
A Constituição de 1988 - Um Panorama Histórico

Alexander Araújo de Souza

Graduando em Direito pela UERJ

              Durante o mandato do Presidente Ernesto Geisel, não obstante a utilização de instrumentos discricionários (como a cassação de mandatos parlamentares e o recesso do Congresso Nacional) , teve início o processo "lento e gradual" de refluxo do poder ditatorial. Ao término de seu período presidencial, a Emenda Constitucional n.11, de 13 de outubro de 1978, revogou os Atos Institucionais (entre os quais o AI n.5, que representava a mais exacerbada manifestação de poder autoritário na República) e os Atos Complementares, no que contrariassem a Constituição Federal, mas ressalvava os efeitos dos atos praticados com base neles, excluindo-os de apreciação judicial. Alterações sucessivas restabeleceram a eleição direta para Governadores de Estado, possibilitando a reintrodução do pluripartidarismo, com o mesmo empenho com que fora antes implantado o bipartidarismo. 
 
                Indicado por Geisel, foi eleito também indiretamente pelo Congresso Nacional o General João Baptista de Oliveira Figueiredo. O novo Presidente assume, reafirmando o compromisso de continuar o processo de abertura política, de modo a possibilitar a restauração da legalidade democrática. Apesar do surto de crise econômica e de alguns atentados terroristas, promovidos por setores inconformados com o processo de abertura democrática, não ficou profundamente  afetada  a  trajetória  delineada. Em  janeiro de 1985 devia ser eleito o novo Presidente da República. Desencadeou-se, no entanto, em todo o país, a mais impressionante campanha popular da história política brasileira, envolvendo comícios de grande concentração multitudinária, no sentido de que essa nova eleição fosse feita pelo processo de votação direta (eram as  "diretas já") e não indiretamente por um Colégio Eleitoral, conforme previsto na Constituição de 1969. O  Congresso Nacional, porém, votou contrariamente à Emenda Constitucional que restabelecia as eleições diretas para a Presidência da República, de autoria do Deputado Dante de Oliveira. 
 
                Superada a tentativa de adoção do voto direto, partiu a oposição para a campanha visando a eleição do Presidente da República pelo Colégio Eleitoral, lançando as candidaturas de Tancredo Neves, governador de Minas Gerais, e de José Sarney, que sempre esteve ao lado das forças ditatoriais retrógradas, respectivamente para Presidência e Vice-Presidência da República. 

                Em 15 de janeiro de 1985, é eleita a chapa da oposição, com folgada vitória para Tancredo Neves, o que causou manifestações de contentamento e satisfação em todo o país. No entanto, em comovente fatalidade, o Presidente eleito, acometido de enfermidade grave, não chega a tomar posse, falecendo em 21 de abril de1985. Sua morte chocou todo o povo brasileiro, causando um ambiente de consternação nacional. 

                Assume o Vice-Presidente José Sarney, procurando dar efetividade às promessas levantadas pelo partido (PMDB) durante a campanha. Dentre estas avulta a da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. O Presidente da República, José Sarney, manda, então, ao Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional convocando a referida Assembléia  Constituinte. Aprovada como Emenda Constitucional n. 26 de 1985, na verdade, convocara os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal para se reunirem unicameralmente, em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia primeiro de fevereiro de 1987. Acrescentava também que o Presidente do Supremo Tribunal Federal instalaria a Constituinte e dirigiria a sessão de eleição do seu Presidente. Por último, dispunha que a Constituição seria promulgada depois da aprovação de seu texto, em dois turnos de discussão e votação, pela maioria absoluta dos membros da Assembléia Nacional Constituinte, baixando o quorum de dois terços previsto no art. 49 da Constituição de 1969. Instalada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Carlos Moreira Alves, no dia primeiro de fevereiro de 1987, elegeu a Assembléia Constituinte, no dia posterior, o seu Presidente : o Deputado Federal Ulysses Guimarães, que fora o principal líder parlamentar de oposição ao regime militar. 

                A exemplo da Constituição de 1946, que deu início aos seus trabalhos sem um projeto prévio, Assembléia Nacional Constituinte de 1987  também preferiu não partir de um projeto anteriormente elaborado, não obstante ter o Poder Executivo convocado uma Comissão Provisória de Estudos Constitucionais em julho de 1985, composta inicialmente de cinqüenta membros, incumbida de desenvolver estudos e pesquisas fundamentais "para futura colaboração nos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte". O texto elaborado por esta Comissão (conhecida , em razão do nome de seu Presidente, como "Comissão Afonso Arinos"), a despeito de suas virtudes, não foi encaminhado ao Congresso Nacional pelo Presidente José Sarney, inconformado, dentre outras coisas, com a opção parlamentarista do anteprojeto. 

                Optou o constituinte brasileiro pela formação de vinte e quatro subcomissões incumbidas de dar início à elaboração da futura Constituição. Terminados os trabalhos de tais subcomissões, a 25 de maio de 1987, passou-se para a fase subseqüente, realizada no bojo de oito comissões temáticas, cada uma delas elaborando um anteprojeto parcial, que seria encaminhado à Comissão de Sistematização. Em 25 de junho do mesmo ano, o relator desta Comissão, o Deputado Bernardo Cabral, apresentou um trabalho reunindo todos os anteprojetos  em uma só peça de 551 artigos, que acabou ganhando o apelido de "Frankenstein". Recebeu esse projeto 5.615 emendas, apresentando o relator Bernardo Cabral, diante disso, um substitutivo aprovado pela Comissão que recebeu o nome de "Cabral zero". A 26 de agosto, com base em 20.790 emendas de plenário e 122 populares, apresentou o relator um outro substitutivo, agora com 374 artigos, o "Cabral 1". No dia 15 de setembro, depois de examinar 14.320 emendas apresentadas ao denominado "Cabral 1", elaborou o relator outro substitutivo com 336 artigos: o  "Cabral 2 ". 

                Já no dia 10 de novembro de 1987, o "Centrão", poderosa articulação conservadora, formada por um grupo interpartidário de parlamentares contrário aos critérios regimentais, apresentou em plenário um projeto de alteração do Regimento da Constituinte, que possibilitava a apresentação de novas emendas ao projeto da Comissão de Sistematização. Conseguiu, enfim, o "Centrão", com força de maioria no plenário, aprovar essa reforma do Regimento, que teve por objetivos dar maiores poderes a essa maioria e abreviar os trabalhos da Constituinte. 

                Finalmente, no dia 28 de janeiro de 1988, são aprovadas as primeiras matérias : o Preâmbulo e o Título I. Já em 22 de março, em sessão histórica, com a surpreendente presença de todos os 559  membros da Assembléia Constituinte, foram aprovadas a manutenção do regime  presidencialista e a duração de cinco anos para o mandato do Presidente da República . 

                Daí em frente, segue-se um longo período de deliberações abrangendo os meses de abril, maio e junho, onde foram tomadas importantes decisões com relação a temas de grande impacto nacional, precedidas de entendimentos e negociações entre lideranças, com vistas a amenizar antagonismos e intransigências. 
 
                Inicia-se, enfim, o segundo turno de votações, no final de julho de 1988. A votação em segundo turno teve, na verdade, caráter meramente chancelador ou confirmatório do que houvera sido aprovado antes, no primeiro turno. Regimentalmente, apenas eram admitidas emendas supressivas, sendo outras aceitáveis, desde que contassem com o apoio unânime de todas as lideranças. 
 
                A proximidade das eleições municipais e o cansaço que se abateu sobre os constituintes levaram a Assembléia Nacional Constituinte a desenvolver um trabalho denominado  "concentrado", de maneira apressada, precipitada, com riscos de graves defeitos. 
 
                Terminados os trabalhos, finalmente, foi promulgada a nova Constituição da República Federativa do Brasil em data de 05 de outubro de 1988, às 16 horas, em solenidade realizada  no plenário da Câmara dos Deputados e presidida pelo Deputado Ulysses Guimarães, Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, que, em seu  nome, fez a histórica declaração de promulgação. Cumpriu-se, na referida ocasião, o disposto no art. 1(. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias : 
 
                "art. 1º. O Presidente da República, o Presidente do Supremo Tribunal Federal e os membros do Congresso Nacional prestarão o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, no ato e na data de sua promulgação." 
 
 
                Tem a Constituição de 1988  a virtude de espelhar a reconquista dos direitos fundamentais, notadamente os de cidadania e os individuais, simbolizando a superação de um projeto autoritário, pretensioso e intolerante que se impusera ao País. No entanto, a falta de coordenação (para não dizer de coerência) entre as diversas comissões, e a amplitude com que cada uma cuidou de seu tema, foram responsáveis por um texto prolixo, casuístico e extremamente detalhista, inteiramente impróprio para um documento de tal natureza. Tendo a nova Constituição surgido do entrechoque de correntes que predominaram em momentos distintos, prevalecendo ora uma tendência, ora outra, não goza de unidade ideológica, notando-se em artigos mais polêmicos a prevalência desta ou daquela orientação. Com efeito, pode-se perceber, na análise do Texto Maior, dispositivos resultantes do compromisso de facções, que optaram pela fórmula da transação, menos gravosa aos seus interesses que uma possível derrota. 
 
                Como consectário lógico desta ausência de uma linha ideológica segura, resultou a grande quantidade de matérias dependentes, para sua aplicabilidade, de legislação infraconstitucional ulterior. Não apenas aquelas normas que, pela sua complexidade, seriam insuscetíveis de ter tratamento pormenorizado no texto constitucional, mas também as que, objeto de controvérsia na hora das votações, tiveram adiada a solução definitiva, remetida para a lei. Daí o enorme número de artigos que demandam a complementação por intermédio de leis ordinárias ou complementares, o que causa  sérios  problemas  quanto  a  saber  se a  norma constitucional  é  de eficácia  plena 
(recebeu do constituinte normatividade suficiente à sua incidência imediata e independe de providência normativa ulterior para a sua aplicação), de eficácia contida (de aplicabilidade imediata, mas passível de restrição pela legislação infraconstitucional ulterior) ou de eficácia limitada (dependente de integração infraconstitucional para operar a plenitude de seus efeitos). 

                Também não foi a concisão a preocupação maior do constituinte. À simples leitura do novo texto, pode-se observar a sua amplitude, a sua minudência, ou seja, a preocupação de tudo regular  em  pormenores, detalhadamente. Incluiram-se no texto constitucional matérias que sempre foram objeto de legislação ordinária (quer no direito civil , quer no penal , no do trabalho ou previdênciário). Numa amplitude inigualável em face dos textos anteriores, foram as matérias espalhadas por excessivos artigos, parágrafos, incisos e alíneas (só o art. 5º. tem 77  incisos, 24 alíneas e dois parágrafos), não percebendo o constituinte, na ânsia de tudo prever, que nem sempre a prolixidade ganha em clareza. 
 
                Outra observação a respeito do novo texto é o acentuado caráter programático de vários dispositivos, formulando aspirações, enunciando intenções de cunho prospectivo. Normas constitucionais programáticas, com efeito, são as que têm por objeto traçar os fins públicos a serem alcançados pela atuação dos órgãos estatais. Não obstante se justificar sua inserção em determinados temas, não devem superabundar em um texto de natureza cogente, que se exige capaz de impor obediência, sendo certo que a aplicabilidade e a efetivação dos comandos programáticos constituem, por vezes, intrincadas questões. Na Constituição de 1988, partilham desta natureza, v.g., o dispositivo que estabelece que o  Estado "apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais" (art. 215), o que consagra ter a ordem social  "como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais" (art. 193), ou o que consagra :  "O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente ..." (art. 227, § 1º.). 

                 Teve a Constituição de 1988, no entanto, algumas preocupações básicas, como por exemplo : 

                -  Combate à discriminação em todas as suas formas, seja no que diz respeito ao homem e à mulher (art. 5º., I, e art. 226, § 5º.), seja no tocante à raça (art. 3º., IV, e art. 5º., XLII), ou ainda em relação à filiação (art. 227, § 6º.); 

                -  Tendência a uma democracia constantemente participativa, por intermédio de instrumentos como o plebiscito (art. 14, I; art. 18, §§ 3º. e 4º.), o referendo (art. 14, II) e a iniciativa popular (art. 14, III; art. 61, § 2º.). Adotou, ainda,  a Constituição de 1988 outras formas de democracia participativa, como por exemplo, as consagradas nos arts. 31, § 3º.(" As contas do Município ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei "); no art. 74, § 2º. ("Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União"); ou ainda no art. 194, parágrafo único, VII ("caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa da seguridade social, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados"); 

                -    Fortalecimento da cidadania, tanto individual como coletiva : art. 1(.,   II  (cidadania como fundamento da República Federativa do Brasil); art. 5º., LXXIII  ("qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular..."); art. 5º. LXXVII  (estabelece a gratuidade, na forma da lei, dos atos necessários ao exercício da cidadania) ; 

                -   Ênfase à livre iniciativa na busca de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 1º., IV, e art. 170, caput ); 

                -   Relevo ao aspecto da propriedade privada e sua função social  (art. 5º. XXII e XXIII, e art. 170, II e III); 

                -    Tratamento de novos temas, v. g., consumidor (art. 5º., XXXII, e art. 170, V), cooperativismo (art. 174, § 2º.), ciência e tecnologia (art. 218), criança e adolescente (art. 227), idoso (art. 230), índios (art. 231), etc.; 

                -   Descentralização política, revalorizando os Estados e,  principalmente, os Municípios, incrementando suas competências e receitas (arts. 18, 23, 30, 157, 158 e 159); 

                -   Instrumentação jurídica para garantir a execução dos direitos proclamados, mormente por intermédio de novos institutos (nem sempre bem utilizados atualmente), como a ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º.) e o mandado de injunção (art. 5º. LXXI). 

                Princípios constitucionais fundamentais são aqueles que contêm as decisões políticas mais importantes do Estado, servindo de base à sua organização. Os princípios fundamentais de maior relevância no constitucionalismo brasileiro, instaurado com a vigência da Constituição de 1988, explicitadores das valorações políticas fundamentais do legislador constituinte, são : 

                -    Princípio republicano (art. 1º., caput); 

                -    Princípio federativo (art. 1º., caput); 

                -    Princípio do Estado Democrático de Direito (art. 1º., caput) ; 

                -    Princípio da separação de Poderes (art. 2º.); 

                -    Princípio presidencialista (art. 76); 

                -    Princípio da livre iniciativa (art. 1º., IV, e art. 170, caput). 

                Princípio republicano. O art. 1º. da Constituição de 1988 ao dispor "A República Federativa do Brasil...", não instaura, propriamente, a República, mas recebe-a da evolução constitucional desde 1889. O princípio republicano, concernente à forma de governo, significa a eletividade dos governantes, a periodicidade de seus mandatos e a responsabilidade no exercício do poder, ao contrário da forma monárquica de governo,  caracterizada pela  hereditariedade e vitaliciedade dos detentores do poder. 

                 Desde a Constituição de 1891, figura a forma republicana de governo como princípio constitucional. A Constituição de 1988, a despeito de consagrá-lo, não mais protege o princípio republicano contra modificação por via de emenda constitucional (art. 60, § 4º.), ao inverso do que faziam as Constituições anteriores. Isto porque o novo texto, no art. 2º. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabeleceu a realização de um plebiscito , por intermédio do qual o eleitorado definiria a forma ( república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que deveriam vigorar no País. Entretanto, o princípio republicano foi protegido em relação aos Estados, que devem observá-lo, sob pena de intervenção federal (art. 34, VII, "a"). 

                Princípio federativo. Com a Constituição de 1891 assumiu o Brasil a forma de Estado federal, inspirada no modelo norte-americano, ignorando-se o passado unitário e centralizador do País. A Constituição de 1988 consagra o princípio federativo em seu art. 1º. ("A República Federativa do Brasil..."), a exemplo das Constituições anteriores, embora o federalismo das Constituições de 1937 e de 1967 e de sua Emenda n.1 (1969) tenha sido meramente nominal. 

                A descentralização política do poder, repartido verticalmente por diferentes entidades estatais, constitui o cerne do conceito de Estado Federal, daí se distinguindo da forma de Estado unitário. Este possui apenas um centro de poder que se estende por todo o território e sobre toda a população e controla todas as coletividades regionais e locais, desprovidas de autonomia político-constitucional. Caracteriza-se ainda o Estado Federal pela existência de, em geral, dois níveis de poder, de duas ordens jurídicas : a federal ou central, titularizada pela União, e a federada, representada pelos Estados-membros. No Estado brasileiro, fugindo à tradicional técnica federalista, existe ainda um terceiro nível de poder, representado pelos Municípios. Dispõe, a respeito, o caput do art. 18 da Constituição de 1988 : 
                "art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição." 

                A autonomia (que se traduz nas capacidades de auto-organização, autogoverno e auto-administração) consiste num governo próprio que se exerce dentro do círculo de competências traçado pela Constituição federal. Outra característica marcante concernente ao federalismo é a repartição de competências entre os entes autônomos,    que, no caso do Estado brasileiro, opera-se da seguinte forma : a Constituição enumera expressamente as competências da União e dos Municípios, tocando aos Estados a competência remanescente. No âmbito de cada entidade autônoma, estas competências subdividem-se em três categorias : político-administrativas, legislativas e tributárias. Neste ponto, a Constituição de 1988 inovou : enumera expressamente as competências da União (arts. 21 e 22) e dos Municípios (art. 30), cometendo aos Estados os poderes remanescentes (art. 25, § 1º.); mas, ao lado das competências político-administrativas exclusivas de cada entidade, bem como das competências legislativas privativas que se lhes outorgou, o novo texto também previu competências político-administrativas comuns 
(art. 23) e competências legislativas concorrentes (art. 24). Já as competências tributárias encontram-se dispostas da seguinte forma : União (arts. 145, 148, 153 e 154, I), Estados   (arts. 145 e 155) e Municípios (arts. 145 e 156). 

                Finalmente, o princípio federativo recebeu especial proteção do legislador constituinte, que considerou insuscetível de deliberação a proposta de Emenda  Constitucional tendente a abolir a forma federativa de Estado (art. 60, § 4º., I). 

                Princípio do Estado Democrático de Direito. A Constituição de 1988, em seu art. 1º., ao afirmar que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, não promete organizar tal Estado, pois aí a Constituição já o está fundando e proclamando. Caracteriza-se tal princípio por um regime de legalidade qualificada, onde se abrigam as idéias básicas de participação popular e justiça social. Baseia-se na soberania popular (que impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública), no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política democráticas. 

                A democracia no Estado Democrático de Direito há de se consubstanciar num processo de convivência social em uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º., II), onde todo o poder emane do povo, que o exerça diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º., parágrafo único), buscando-se sempre a igualização das condições dos socialmente desiguais (art. 3º., III e IV, e art. 170, VII). 

                Princípio da separação de Poderes. Estatui o art. 2º. da Constituição de 1988 que "são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo,  o Executivo e o Judiciário". 

                Insculpida no constitucionalismo brasileiro desde a Carta Imperial de 1824, a doutrina da separação de poderes funda-se em dois elementos : a) especialização funcional, isto é, cada uma das funções estatais é atribuída a um órgão próprio. Com efeito , a função legislativa está ligada aos fenômenos de criação do direito (editar o direito positivo), ao passo que as outras duas, administrativa (aplicar a lei de ofício) e jurisdicional (aplicar a lei contenciosamente), associam-se à fase de sua realização. O exercício dessas funções é distribuído por órgãos próprios, que se denominam Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário; b) independência orgânica, significando que um Poder jamais se encontra numa posição de subordinação relativamente aos demais. 

                Manteve o novo texto a tradicional cláusula "independentes e harmônicos entre si", própria da divisão de poderes no sistema presidencialista, já que no parlamentarismo fala-se em "colaboração de poderes". A idéia de harmonia entre os poderes expressa não só o respeito mútuo que se devem os órgãos e agentes de cada poder, como também uma certa integração e interdependência entre eles, que interagem e se controlam reciprocamente, constituindo o denominado sistema de freios e contrapesos  ("checks and balances" da doutrina norte-americana). Já a independência dos Poderes, significa que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; significa ainda que no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares de um Poder consultar os titulares dos outros, nem necessitam de sua autorização. 

                Estabeleceu, porém, a  Constituição de 1988 algumas exceções ao princípio da separação de Poderes, v. g., a adoção de medidas provisórias, com força de lei, pelo Chefe do Poder Executivo (art.  62); ou a convocação dos Ministros de Estado perante o plenário das Casa do Congresso ou de suas Comissões para prestar informações (art. 50); ou ainda a autorização de delegação de atribuições legislativas ao Presidente da República (art. 68). 

                 Apesar das exceções estabelecidas pelo legislador constituinte ao princípio da separação de poderes, tal princípio foi elevado à categoria de "cláusula pétrea", insuscetível de modificação por via de emenda constitucional (art. 60, § 4º.). 

                Princípio presidencialista. A Constituição de 1988, com relação ao sistema de governo, estabelece que "o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado" (art. 76). Sistema de governo, com efeito, diz respeito ao modo como se relacionam os poderes, principalmente o Executivo e o Legislativo, dando origem a duas espécies principais de sistemas : o presidencialismo e o parlamentarismo. 

                No sistema presidencialista, típico das Repúblicas, o Poder Executivo é exercido pelo Presidente em toda a sua inteireza, acumulando as funções de Chefe de Estado, Chefe de governo e Chefe da  Administração Pública (caracterizando o Executivo monocrático). Já no parlamentarismo a função de Chefe de Estado é exercida pelo Presidente ou Monarca e a de Chefe de Governo, pelo Primeiro Ministro que chefia o Gabinete (tem-se então o Executivo dual). Na verdade, no sistema parlamentarista verifica-se o deslocamento de uma parcela da atividade executiva para o Legislativo, fortalecendo-se a figura do Parlamento que, além da atribuição legislativa, passa a desempenhar também função executiva, ou seja, a separação de poderes é mais tênue, ao contrário do Presidencialismo, onde fica mais nítida a separação de funções. 

                Começou a Constituinte de 1987 (88)  sob o signo da reação contra o Executivo centralizador, tendo as várias versões do projeto de Constituição notada tendência ao Parlamentarismo, com fortalecimento do Poder Legislativo. A propensão parlamentarista que dominou a Constituinte, no entanto, não vingou, disso resultando estranha situação : quando se decidiu pelo Presidencialismo, no final das votações do texto constitucional, já estavam fixados os limites de atuação dos poderes, com predomínio da orientação parlamentarista. Não obstante a revisão feita no texto, restou certo feitio parlamentarista em algumas de suas passagens, principalmente nas atribuições do Congresso Nacional, v. g., art. 49, X ("fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da Administração indireta"). 

                Trouxe a Constituição de 1988, com respeito ao princípio presidencialista, uma gama de atribuições concernentes ao Presidente da República elencadas no art. 84, entre as quais se destacam : nomear e exonerar os Ministros de Estado (inciso I); exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da Administração Federal (inciso II); sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução (inciso IV); prover e extinguir os cargos públicos federais (inciso XXV); editar medidas provisórias com força de lei, nos termos do art. 62    (inciso XXVI); exercer outras atribuições previstas nesta Constituição (inciso XXVII), tais como : convocar extraordinariamente o Congresso Nacional em caso de urgência ou interesse público relevante (art. 57, § 6º., II); elaborar leis delegadas (art. 68). 

                Dispôs ainda o novo Texto Maior sobre a responsabilidade do Presidente da República, constituindo crime de responsabilidade os atos atentatórios à Constituição Federal, e especialmente os enumerados no art. 85, sendo de se destacar : os atos que atentem contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Publico e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação (art. 85, II); os atentatórios à probidade na administração (art. 85, V); os que atentem contra o cumprimento das leis e das decisões judiciais (art. 85, VII). 
 
                Princípio da livre iniciativa. Logo no primeiro Título da nova Constituição, que dispõe sobre os princípios fundamentais, encontra-se o princípio da livre iniciativa elencado como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º., IV). Reproduz-se o mesmo princípio no caput do art. 170, que inaugura o Título dedicado à ordem econômica e financeira. O princípio da livre iniciativa (que envolve a liberdade de indústria e comércio e a liberdade de contratar) tem relevante significação, pois expressa a opção do constituinte por um específico modelo econômico: o capitalista. 

                 Certamente é o princípio básico do liberalismo econômico, caracterizando-se, como o próprio nome indica, pela iniciativa privada na organização dos fatores de produção. No entanto, a liberdade de iniciativa é um dos desdobramentos da liberdade amplamente considerada, como um atributo inalienável do homem, desde que se o conceba inserido no todo social, e não exclusivamente em sua individualidade. Assim, o princípio da livre iniciativa não é tomado, enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, como expressão individualista, mas sim no quanto expressa de socialmente valioso. 

                Acontecimentos relevantes marcaram a vigência da nova Constituição. Logo em seguida à sua promulgação realizaram-se as eleições municipais de 1988. O desgaste do governo Sarney em seus atritos com a Assembléia Constituinte, agravado pelo fracasso do Plano Cruzado e pelas crescentes denúncias de corrupção e abusos, deram um grande entusiasmo ao principal partido de oposição, o Partido dos Trabalhadores, que conquistou importantes prefeituras (inclusive a de São Paulo), surgindo como real opção  para a política do País. 

                Lançou o Partido dos Trabalhadores o nome de seu Presidente, o ex-metalúrgico Luís Ignácio Lula da Silva, como candidato ao pleito presidencial do ano de 1989, o primeiro a realizar-se pela via direta desde a eleição de 1960. Também beneficiado pelo descrédito das principais lideranças políticas, o inexpressivo Partido da Reconstrução Nacional (PRN) lançou a candidatura de Fernando Collor de Mello ("o caçador de marajás"), com o apoio dos principais meios de comunicação. No primeiro turno das eleições Collor obteve 28 % dos votos, seguido de Lula, com 16 %. No segundo turno Collor conseguiu 42,75 % dos votos, derrotando Lula, que ficou com 37,86 %. 

                Empossado, o novo Presidente deflagrou um ambicioso plano econômico, que, em medida de questionável constitucionalidade, promoveu a retenção de grande parte dos ativos depositados em instituições financeiras, principalmente cadernetas de poupança. O Plano Brasil Novo, instituído mediante utilização abusiva das recém-criadas medidas provisórias , sustentou-se em discurso neoliberal e privatizante do novo Presidente, e, apesar do choque inicial, contou com amplo apoio da mídia e da opinião pública. Entretanto, em pouco mais de um ano, já havia se tornado uma nova aventura monetária fracassada. 

                No entanto, um grave desentendimento entre o Presidente e o seu irmão, Pedro Collor de Mello, trouxe à tona uma rede de extorsão e corrupção que comprometia o Chefe de Estado e o tesoureiro de sua campanha Paulo César Farias. A crise que se seguiu às denúncias de Pedro Collor levou à instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que, ao final de agosto de 1992, deliberou pela responsabilização do Presidente, por 16 votos a 5, quando o País já sofria o impacto das multidões que exigiam o impeachment de Fernando Collor. Em data de 29 de setembro de 1992, a Câmara dos Deputados, ao apreciar o requerimento apresentado pelos Presidentes da OAB e da  ABI, aprovou a abertura de processo por crime de responsabilidade contra o Presidente Collor, com expressiva margem de 441 votos a favor. Foi o Presidente afastado do cargo. Quando de seu julgamento pelo Senado, após o início da sessão, Fernando Collor enviou uma carta-renúncia, mas viu frustado o seu artifício para livrar-se da cassação de seus direitos políticos pelo prazo de oito anos. O exemplar desfecho do episódio revigorou as instituições e desfez o mito do golpismo. O País já era capaz de administrar suas crises sem deturpar o sentido da Constituição. 

                Como já é tradicional em nossa história constitucional, novamente assume o Vice-Presidente : Itamar Franco, tradicional político mineiro, que fora membro histórico do PMDB. Conseguiu o Presidente em exercício Itamar Franco, por intermédio de um plano de estabilização monetária (o Plano Real), lançar como sucessor o seu Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que também obteve apoio maciço dos mais poderosos  meios de comunicação. Nas eleições de 3 de outubro de 1994, saiu vitorioso o candidato do PSDB, Fernando Henrique, com folgada vantagem, ainda no primeiro turno, ficando em segundo lugar, mais uma vez, Luís Ignácio Lula da Silva, do PT. 

                A despeito da relevante ênfase dada à continuidade da estabilização monetária, o início do governo Fernando Henrique Cardoso foi marcado por uma política um tanto quanto recessiva, com elevação do nível do desemprego. Já nas áreas rurais, em virtude da lentidão no processo de reforma agrária, constataram-se crescentes agitações e conflitos fundiários, destacando-se a luta pela justiça social desenvolvida pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). 
 
                                     BIBLIOGRAFIA 

                BARROSO, Luís Roberto. "O Direito Constitucional e Efetividade de suas Normas".  Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1996. 
                BASTOS, Celso Ribeiro & MARTINS, Yves Gandra. "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 1. São Paulo, Ed. Saraiva, 1988. 
                CORRÊA, Oscar Dias. "A Constituição de 1988 : Contribuição Crítica". Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária, 1991. 
                GRAU, Eros Roberto. "A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica) ". São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1990. 
                PACHECO, Cláudio. "Novo Tratado das Constituições Brasileiras", vol. 1São Paulo, Ed. Saraiva, 1990. 
                RIBEIRO, Fávila. "A Constituição e a Realidade Brasileira". Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 1990. 
                SILVA, José Afonso da. "Curso de Direito Constitucional Positivo". São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1990. 
                SLAIBI FILHO, Nagib. "Anotações à Constituição de 1988 : Aspectos Fundamentais". Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1989. 
                TEMER, Michel. " Elementos de Direito Constitucional". São Paulo, Ed. evista dos Tribunais, 1990. 

 

 
     Posteriormente,  a Emenda Constitucional de Revisão n. 5, de 07-06-94, modificando o art. 82 da CF, reduziu o mandato do Presidente da República para quatro anos. 
     O plebiscito previsto no art. 1º. do ADCT , que inicialmente se realizaria no dia 7 de setembro de  1993 , teve sua data antecipada pela Emenda Constitucional n. 2 ( 92 para o dia 21 de abril de 1993 .    O eleitorado , quando da realização do plebiscito , optou claramente  pela forma republicana e pelo sistema presidencialista de governo ,  corroborando o que até então vigorava . 
     Curiosamente, a medida provisória que determinou o bloqueio (verdadeiro "confisco") das cadernetas de poupança foi a de nº 168, o mesmo  número do  artigo  que  trata  da  apropriação  indébita no Código  Penal.