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IPTU: AINDA A QUESTÃO DA PROGRESSIVIDADE

Roque Antonio Carrazza

  

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, julgando recurso extraordinário (nº 153.771-0 - Minas Gerais) interposto por contribuinte de Belo Horizonte, decidiu, por maioria de votos, vencido o relator, que a instituição de alíquotas progressivas, na cobrança do imposto predial e territorial urbano (IPTU), depende de regulamentação por lei federal, prevista no art. 182, da Constituição, mas ainda não editada.

Diante disso, os jornais vêm noticiando, por vezes com uma certa dose de espalhafato, que, agora, todos os Municípios brasileiros terão que acabar com a progressividade do IPTU, até que o Congresso Nacional baixe uma lei, fixando diretrizes para o assunto. Há, inclusive, periódicos que anunciaram que as quantias recolhidas a maior terão que ser imediatamente devolvidas.

Algumas ponderações, porém, precisam ser feitas.

Preliminarmente, a referida decisão do Pretório Excelso - não tendo sido prolatada em ação direta de inconstitucionalidade, mas em mandado de segurança - só operará efeitos no caso concreto, isto é, só beneficiará aquele contribuinte que se insurgiu contra tal progressividade. Em relação aos demais contribuintes, todas as leis municipais que criaram o IPTU progressivo (inclusive a lei belo-horizontina em questão) continuam valendo e, portanto, em pleno vigor. Em linguagem mais técnica, tal decisão não tem efeitos erga omnes (contra todos), mas, apenas, inter partes (entre as partes litigantes). Revela uma tendência da mais alta Corte do País, mas não interfere, nem muito menos revoga, as leis municipais que criaram a progressividade do IPTU.

Isto significa que, a menos que a Corte Suprema oficie ao Senado Federal e este, nos termos do art. 52, X, da Carta Magna, suspenda a execução da lei declarada inconstitucional, os próprios contribuintes de Belo Horizonte não terão sua situação jurídica alterada.

Atrevemo-nos a dizer que dificilmente tal ocorrerá, seja porque, ao que tudo indica, o Supremo não suscitará o pronunciamento do Senado, seja porque, ainda que isto aconteça, a natural prudência daquela Casa Legislativa fará  com que aguarde a pacificação do assunto. E com nossos aplausos, já que uma única decisão e, ainda por cima, não unânime, não forma jurisprudência.

Realmente, nada impede que o próprio Supremo Tribunal Federal, em julgamentos futuros, reveja sua posição, curvando-se aos argumentos do Ministro Carlos Mário da Silva Velloso (relator, vencido, do recurso extraordinário em discussão).

Em razão do exposto, pedimos vênia para, seguindo na trilha deste emérito constitucionalista, tecer algumas considerações em torno da progressividade do IPTU.

Lembramos que todos os impostos devem, em princípio, ser progressivos, isto é, a lei que os instituir há de estruturá-los de tal modo que suas alíquotas variem para mais, à medida em que forem aumentando suas bases de cálculo. Em apertada síntese, quanto maior a base de cálculo do imposto, tanto maior sua alíquota.

É assim que os impostos obedecem ao princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º da Constituição), que exige tenham caráter pessoal e sejam graduados segundo a capacidade econômica dos contribuintes.

Isto vale também para o IPTU. Ele, como os outros impostos, deve ser progressivo, obedecendo, destarte, ao princípio da capacidade contributiva.

Desde a promulgação da atual Carta Magna, não temos dúvidas em afirmar que o proprietário de imóvel luxuoso, localizado em bairro estritamente residencial, deve ser proporcionalmente mais tributado, por meio de IPTU, do que o proprietário de casa modesta, localizada em bairro periférico.

Quando escrevemos "deve ser proporcionalmente mais tributado" queremos significar que deve ser submetido a uma alíquota maior. Assim, por exemplo, havendo lei neste sentido, o proprietário de casa luxuosa será submetido a uma alíquota de 1,5% do valor venal do imóvel e o proprietário de casa modesta, a uma alíquota de 0,5% do valor venal do imóvel. De fato, se os dois proprietários forem tributados debaixo da mesma alíquota, estarão sendo desigualmente tributados, isto é, estarão sendo tributados com desatenção ao princípio da capacidade contributiva.

Em suma, tornamos a dizer, o IPTU deve obedecer ao princípio da capacidade contributiva, nos termos do precitado art. 145, § 1º da Lei das Leis. E, para isso, deve ser progressivo. Esta é uma progressividade fiscal, de observância obrigatória.

Mas há uma outra progressividade do IPTU - chamada progressividade extrafiscal - que tem dado margem a vivas controvérsias.

O § 1º do art. 156, da CF prescreve que o IPTU "poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade".

E a função social da propriedade é revelada pelo plano diretor do Município, conforme estatui o art. 182, § 2º da Constituição Federal ("a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais da ordenação da cidade expressas no plano diretor").

Ressaltamos que o § 1º, do art. 156, da Constituição Federal, nada tem a ver com o princípio da capacidade contributiva. E deve ser obedecido, independentemente da obediência ao princípio da capacidade contributiva. O § 1º, do art. 145 e o § 1º, do art. 156, ambos da Constituição, não se excluem; antes, se completam; os dois convivem harmonicamente.

O que estamos tentando significar é que o princípio da capacidade contributiva, no IPTU, não se revela no § 1º, do art. 156, da Carta Magna. O princípio da capacidade contributiva, também no IPTU, revela-se no já mencionado art. 145, § 1º, sempre da Carta Magna. O IPTU não depende da edição de nenhum plano diretor, para ter caráter pessoal e ser graduado de acordo com a capacidade econômica do contribuinte.

São coisas diferentes, que alguns, muito a propósito, tentam coligar. De que modo? Simplesmente dizendo: enquanto não houver um plano diretor, as alíquotas do IPTU têm que ser as mesmas (tanto para o proprietário do imóvel suntuoso, localizado em bairro estritamente residencial, como para o proprietário de imóvel modestíssimo, localizado em bairro da periferia). São idéias muito do agrado das elites, mas que - segundo cremos - não encontram apoio na Constituição.

O que a Constituição quer é que, além de obedecer ao princípio da capacidade contributiva, o IPTU seja progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade. Em outras palavras, além de obedecer a uma progressividade fiscal (exigida pelo § 1º, do art. 145, da CF), o IPTU deverá obedecer a uma progressividade extrafiscal (agora nos termos do § 1º, do art. 156, da CF). Só a progressividade extrafiscal depende da edição do plano diretor, que vai indicar qual a função social da propriedade.

Temos, pois, que também o IPTU pode ser instrumento de extrafiscalidade (emprego da tributação para fins não-fiscais, mas ordinatórios, vale dizer, para disciplinar comportamentos de virtuais contribuintes).

Deste modo, a alíquota do IPTU pode variar de acordo com o índice de aproveitamento do terreno, com o tipo de construção, com suas dimensões, com sua localização, com o número de pavimentos do imóvel, com sua destinação e assim avante. Tudo vai depender - agora sim - do plano diretor. Por exemplo, numa região onde, de acordo com o plano diretor, for desaconselhável a edificação de prédios de apartamentos, pode a alíquota do IPTU ser elevada, por meio de lei, de modo a desestimular este tipo de construção. A alíquota do IPTU pode, ainda, ser exacerbada - sempre com base no plano diretor - para quem mantenha, em suas casas, jardins ou quintais imensos (especialmente se estes imóveis estiverem localizados na zona central do Município). Ou, ainda, a alíquota do IPTU pode ser maior, se o proprietário do imóvel o mantém vazio, sem cumprir sua função social (então, num mesmo prédio, em havendo plano diretor nesse sentido, o proprietário que mantém seu apartamento alugado, pagará menos imposto do que o proprietário que mantém o seu fechado, apenas para fins especulativos).

Mas, voltamos a insistir: não há necessidade de editar-se um plano diretor, para que o IPTU seja graduado de acordo com a capacidade econômica dos contribuintes.

Temos, aí, duas situações distintas.

A primeira: o princípio da capacidade contributiva exige que o IPTU tenha alíquotas diferençadas, conforme os imóveis urbanos sejam mais ou menos valiosos.

A segunda: o § 1º, do art. 156, da Constituição Federal exige que o IPTU experimente uma progressividade de alíquotas, em função das conveniências locais, expressas no plano diretor do Município.

Nesta última situação não está  em jogo o princípio da capacidade contributiva, mas a função social da propriedade.

Digamos que, nos termos do plano diretor do Município, exista interesse que, no bairro "X", se instalem apenas indústrias. A lei tributária pode perfeitamente, nesse caso, estabelecer que se alguém construir um imóvel residencial em tal bairro, suportará  uma alíquota de IPTU muito superior à que suportaria se o construísse no bairro "Y" (bairro que, sempre nos termos do plano diretor, interessa ao Município seja ocupado exclusivamente por residências). Haverá, aí, tributação mais gravosa, não em função da capacidade contributiva (do proprietário do imóvel), mas, da conveniência do próprio Município, expressa em seu plano diretor.

Em suma, para que, no IPTU, restem atendidas as exigências do princípio da capacidade contributiva, não é necessário seja editado um plano diretor. Se editado, é possível, sem embargo do cumprimento ao § 1º, do art. 145, da Constituição Federal, usar um sistema de alíquotas diferençadas do IPTU, para estimular ou desestimular comportamentos dos munícipes, proprietários de imóveis urbanos, sempre tendo em vista o cumprimento da função social da propriedade.

Talvez mais um exemplo esclareça melhor o que estamos expondo.

Admitamos que duas pessoas tenham imóveis idênticos (com as mesmas dimensões, o mesmo material, as mesmas características). Elas devem pagar - é claro - o mesmo montante de IPTU. Por quê? Porque ambas têm a mesma capacidade contributiva (pelo menos em relação a este imposto).

Mas, digamos que um dos imóveis esteja localizado num bairro do Município, que, nos termos do plano diretor, é estritamente residencial e, o outro, num bairro que, ainda segundo o plano diretor, seja destinado ao comércio. Nada impede - agora com apoio no § 1º, do art. 156 da Constituição Federal (que nada tem a ver com o princípio da capacidade contributiva) - que o proprietário do imóvel situado no bairro não-residencial, seja mais tributado que o outro, cujo imóvel está no bairro residencial.

Por que isso? Porque este último está cumprindo, melhor do que o primeiro, a função social da propriedade.

Em resumo, o princípio da capacidade contributiva, independentemente da existência do plano diretor do Município, exige que as alíquotas do IPTU sejam maiores ou menores, de acordo com o maior ou menor valor venal dos imóveis urbanos.

Já o princípio da progressividade extrafiscal do IPTU permite que, em havendo plano diretor, suas alíquotas variem, para menos ou para mais, conforme o imóvel urbano preencha, respectivamente, mais ou menos sua função social.

Ainda a respeito do IPTU, há uma questão pouco estudada: nada impede que suas alíquotas aumentem progressivamente, à medida em que o proprietário do imóvel urbano for perseverando em seu mau aproveitamento. É a chamada progressividade no tempo, que não tem nada a ver nem com a progressividade fiscal, nem com a progressividade extrafiscal.

Tal aumento pode redundar até‚ na perda da propriedade. Sempre com base em lei (agora lei sancionatória, não tributária). De fato, isto deve ser  feito exatamente para sancionar o proprietário do imóvel que renitir em não o ajustar às diretrizes do plano diretor.

É o que estatui o inc. II, do § 4º, do art. 182, da Constituição Federal:

"Art. 182 ("omissis"):

  • .....................................................
  • "§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

  • .....................................................
  • "II- imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;".

    Observamos, a propósito, que a eventual inexistência da lei federal a que alude o precitado § 4º, não inibe o Município de, com base na lei local, tomar as providências ali referidas. Esta é uma decorrência natural do magno princípio da autonomia municipal. Por igual modo, tal lei federal deverá limitar-se a estabelecer normas gerais; não poderá descer a "assuntos de interesse local", de competência privativa dos Municípios.

    Esperamos com estas ponderações - de cunho eminentemente técnico - ter contribuído para repor, em seu devido lugar, a verdade jurídica, em torno da progressividade do IPTU.