IMPUGNAÇÃO E RECURSO ELEITORAL: UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA.
Adriano Soares da Costa Magistrado. Ex-Procurador Geral de Maceió. Professor de Processo Civil da Faculdade de Direito de Maceió (FADIMA/CESMAC).
O Direito Eleitoral não logrou ainda a depuração
conceitual de seus institutos, de modo a servir de parâmetro na feitura da
legislação eleitoral, que é atualmente um verdadeiro cipoal
de normas casuísticas e atécnicas. O estudo do ordenamento jurídico
eleitoral tem provocado na doutrina grande estupefação, pois a
terminologia jurídica utilizada é ambígua ou imprecisa, além
da confusa edição de regras jurídicas a cada novo pleito,
que termina por toldar a compreensão já alcançada do
direito positivado, mercê das alterações por vezes radicais
de determinado instituto jurídico. Talvez pelo interesse apenas sazonal
despertado por esse ramo do direito público, o fato é que ainda não
houve uma maior preocupação com o tratamento necessariamente mais
científico a lhe ser dispensado, aplicando-se-lhe os avanços de
outros ramos mais desenvolvidos do Direito, de modo a torná-lo mais
inteligível e, por isso mesmo, de mais fácil manejo.
Pela adoção, em nosso País, do sistema jurídico-eleitoral,
tornou-se complexa a análise do papel da Justiça Eleitoral, mercê
do fato de, a um só tempo, ela exercer uma atividade
administrativa-fiscalizadora, normativa e compositiva de conflitos . Essas
atribuições concentradas tornaram obscura, por vezes, a compreensão
da natureza de determindas normas, vale dizer, se deveriam ser encartadas como
sendo de direito material ou de direito processual, tendo em vista que a
atividade do juiz eleitoral alcança induvidosamente os dois planos jurídicos.
O art.120 do Código Eleitoral, por exemplo, é induvidosamente
norma de direito material, pela qual se outorga ao juiz eleitoral, sessenta dias
antes do pleito, a competência de nomear as mesas receptoras. Tal
atividade, nada obstante realizada pelo magistrado, não tem o condão
de torná-la jurisdicional, ainda que adotemos o conceito de jurisdição
com base no critério subjetivo da participação do juiz,
pois não há jurisdição sem provocação
da parte ou interessado. Se em tal exemplo poderemos constatar, como veremos
mais adiante, a natureza de direito material da atividade do juiz, noutros não
se poderá com tanta facilidade explicá-la, como é o caso,
exempli gratia, do art.35 da novel Lei Orgânica dos Partidos Políticos
(Lei no 9.096/95), pela qual o TSE ou TREs poderão fazer verdadeira
investigação judicial eleitoral nas contas do partido político,
por denúncia fundamentada de filiado ou delegado de partido, de
representação do Procurador-Geral ou Regional Eleitoral ou de
iniciativa de ofício do Corregedor. Tal investigação
judicial tem natureza bem diversa da investigação de que trata o
art.22 da Lei Complementar no 64/90, que, embora assim nominada, de investigação
não se trata, por ser ela uma verdadeira ação processual,
inobstante as dúvidas infundadas de parte da doutrina .
Tem
faltado à doutrina um critério claro para fazer a distinção
esboçada acima, máxime pelo fato de haver subrepticiamente, para
alguns, e claramente, para outros, a rejeição da jurisdição
voluntária como verdadeira jurisdição, tal qual a
contenciosa. Sem querer aqui aprofundar o problema, desde já salientamos
que tomamos a jurisdição voluntária como verdadeira
atividade jurisdicional, caracterizada pela passividade processual do Juiz,
entendida em duplo sentido: no de que não pode iniciar o procedimento por
sua iniciativa (nemo judex sine actore); e, pela sua atitude de imparcialidade,
neutralidade e distanciamento, no sentido de que deve estar em posição
de superioridade e estraneidade em relação às partes, não
aplicando o direito objetivo em seu próprio interesse (nemo judex in
causa sua) .
A fixação dessa premissa, como espeque ao
que pretendemos refletir mais adiante, não tem utilidade meramente acadêmica,
como poderia parecer à primeira vista. Elcias Ferreira da Costa , por ter
descurado dela, borrou a importante e ineliminável distinção
entre atividade administrativa do juiz eleitoral e atividade de jurisdição
voluntária, vale dizer, pôs no mesmo plano o direito material e o
processual, tornando o magistrado, em todos os casos em que não houvesse
a instauração de litígio, o sujeito passivo de uma relação
de direito material formada entre ele e o requerente (do alistamento, do
registro, etc.). Como ele mesmo o diz:
"...o indivíduo,
titular de direito subjetivo público, promove o exercício de seu
direito, mediante a efetuação de um ato jurídico em sentido
estrito, a saber, o alistamento, o registro, a votação, a apuração,
atos que pretende devam ser admitidos ou reconhecido pelo juiz. A atuação
do juiz, nesses fatos, é de natureza administrativa. O direito de ação
somente começa, quando alguém considerando-se obstacularizado no
exercício ou no reconhecimento de algum dos seus direitos subjetivos públicos,
em decorrência de alguma decisão do juiz, se dirige ao tribunal a
que esteja subordinado para que o tribunal dê concreção ao
seu direito subjetivo público, que, pretende, tenha sido obstacularizado
pelo juiz.
Aqui, este, como funcionário que age em nome do Estado,
surge como real sujeito passivo de uma relação processual."
(grifei)
Por essa doutrina, como se pode observar em exempo
utilizado pelo eminente autor, se o eleitor impugna o título eleitoral de
outro eleitor e o juiz rejeita a impugnação, surgiria a
oportunidade de uma ação processual, proposta junto ao tribunal,
denominada pela legislação eleitoral de "recurso", tendo
o juiz como réu. Tal assertiva surpreendente, sustentada em virtude de o
professor pernambucano reputar que sem lide não há jurisdição,
só é possível por ele imaginar que entre o juiz e o
impugnante se forma uma relação jurídica de direito
material, cujo conflito de interesse, pela rejeição da impugnação,
faça surgir a ação processual (denominado de recurso pelo Código
Eleitoral). Mas um tal raciocínio leva à absurda conclusão
de que o juiz eleitoral, apenas esporadicamente, exerceria atividade
jurisdicional (ou seja, apenas quando houvesse a dedução de um litígio
frente a ele), pois sua atividade, por essa óptica, no comum das vezes,
seria de cunho eminentemente administrativo, como sujeito passivo de um direito
público subjetivo material dos atores eleitorais (eleitor, candidato,
partido, etc.). Tal raciocínio nos parece inaceitável, inclusive
por deixar de explicar a natureza, por exemplo, da impugnação
exercida pelo eleitor contra um outro. Se a relação, que pela
impugnação se forma, for entre impugnante e juiz, qual será
o papel reservado ao impugnado? Qual a sua relação com o
impugnante? A doutrina glosada silencia a esse respeito.
Em verdade,
o imbróglio entre a atividade de jurisdição voluntária
e a atividade administrativa exercida pelo juiz é a origem da confusão
instalada na doutrina e jurisprudência, com sérias conseqüências
para a inteligência de importantes institutos de Direito Eleitoral.
Observe, ainda nos valendo da exposição de Elcias Ferreira da
Costa, que a mistura das duas atividades termina por induzi-lo a pôr na
mesma gaveta atos distintos, tais como o alistamento, o registro, a votação
e a apuração. Não percebeu, o eminente professor, que o
registro e o alistamento são efeitos constitutivos da decisão do
juiz no procedimento de jurisdição voluntária instaurado
pelo requerimento do interessado, obtendo a prestação
jurisdicional pretendida. Já a votação é ato do
eleitor em exercício do seu direito político, oponível erga
omnes, sem que se instaure entre ele e o magistrado qualquer relação
jurídica. A apuração é procedimento administrativo
complexo, sem que haja ato decisório do juiz (que só se pronunciará
judicialmente se houver alguma impugnação, ou seja, o início
de um processo de conhecimento de rito especial).
O processualista
italiano Gian Antonio Michele , criticando a conceituação
chiovendiana de jurisdição, baseada no caráter substitutivo
da vontade das partes pela vontade do Estado-Juiz, lembra que o elemento
saliente do conceito está na imparcialidade do órgão
jurisdicional, que é por si suficiente para distinguir a jurisdição
da administração. Assim, se houver referibilidade do interesse
tutelado ao órgão estatal que atua, não há atividade
jurisdicional, pois ela apenas se dá se faltar ao juiz a qualidade de
parte (de parcialidade, portanto), pois ele, "en verdad, no es el sujeto
pasivo de una relación jurídica directa con el sujeto, respecto
del cual la providencia de jurisdicción voluntaria produce los efectos
propios. El juez, por otro lado, no puede tampoco ser considerado como el sujeto
pasivo respecto de un derecho público subjetivo, diverso de la acción,
en cuanto él no es, en absoluto, el portador de un interés que
deba estar subordinado al del titular del derecho mismo. También, en el
proceso de jurisdicción voluntaria la obligación del juez de
proveer tiene, a lo sumo, como corrispondiente, un poder instrumental y no
implica, por tanto, ninguna relación directa entre parte y juez."
(grifei).
Para que possamos observar quando o juiz está
atuando como juiz, e não como administrador-fiscalizador, mister
perquirir a referibilidade do interesse tutelado com sua atuação:
se a regra jurídica for dirigida a ele, de modo a lhe outorgar o
poder-dever de agir para a consecução da finalidade normativa,
estará ele agindo na qualidade de administrador do processo eleitoral;
se, ao revés, a atuação judicial for provocada por um
interessado, com o escopo de aplicar o direito objetivo, para fazer valer o seu
direito subjetivo, estaremos diante de uma atividade jurisdicional, pela qual o
juiz agirá autoritativa e imparcialmente.
O juiz age como
administrador judicialiforme, quando, por exemplo, determina os lugares onde
funcionarão as mesas receptoras (art.135, caput, do CE). Para a execução/cumprimento
dessa regra, há alguns cuidados que o juiz deverá tomar, como
escolher preferencialmente edifícios públicos (§ 2o), sendo
vedado o uso de propriedade pertencente a candidato, ou localizadas em fazendas
(§§ 4o e 5o). Observe que a regra é dirigida ao juiz como
administrador da eleição, havendo uma pertinência entre o
interesse tutelado e a sua atuação: é ele quem é o
destinatário da norma, a única pessoa com competência para
cumpri-la, com ampla margem de discricionariedade, limitada apenas por essas
proibições legais. Apenas se o juiz exceder o exercício de
sua discrição, nascerá uma relação de direito
material entre ele, como sujeito passivo, e os interessados, como sujeitos
ativos. Ocorrendo essa situação, poderá o interessado
exercer contra o juiz sua pretensão de direito material, exigindo que ele
observe os limites à sua discricionariedade. Ao exercício da
exigibilidade do interessado contra o ato administrativo do juiz dá-se o
nome de reclamação.
O § 7o do art.135 do CE traz
hipótese de reclamação, a qual, se não atendida, dará
ensejo a recurso administrativo ao TRE (§ 8o). A matéria é
unicamente administrativa, pois o juiz tem relação de
referibilidade com o interesse que ele deve atuar. O mesmo acontece com a
atividade administrativa judicialiforme de o juiz nomear a mesa receptora
(art.120 do CE). Se ele não se jungir aos limites impostos pela lei,
poderá qualquer partido lhe reclamar o cumprimento devido da regra que
lhe foi dirigida (art.121 do CE).
Realçada a diferença
entre atividade jurisdicional e administrativa do juiz eleitoral, exalçando
sua utilidade prática, podemos agora nos preocupar mais de perto com o
tema que nos animou a desenvolver essas reflexões: o discrímen jurídico
entre impugnação e recurso eleitoral.
O Legislador
Eleitoral, à falta de uma preocupação mais cuidadosa com os
termos jurídicos por ele utilizados, por vezes faz uso de um mesmo signo
para designar realidades distintas, tornando indeterminado o conceito jurídico,
mercê de sua ambigüidade . Nesses casos, ao intérprete e
aplicador do direito tem cabimento o cuidado em precisar o significado com qual
o termo jurídico está sendo manipulado, de modo a evitar confusões
conceituais, as quais empanam o discurso científico e dificultam a
perfeita realização do direito objetivo. Para tanto, deverá
afastar-se a ambigüidade, ou pela análise do contexto em que a
expressão é empregada, ou pela estipulação do
significado do termo, vale dizer, pela explicitação do sentido em
que ele é utilizado .
No Direito Eleitoral, principalmente
pela edição de leis casuísticas para cada e determinada
eleição, surgem intensos problemas de ambigüidade dos termos
jurídicos, que são aplicados pelo Legislador sem qualquer cuidado,
a mais da vez de modo grosseiramente equivocado, como, por exemplo, a denominação
de "recurso" à ação prevista contra a diplomação
do candidato (CE, art.262). E tal problema lingüístico deixar de ser
apenas isso, um problema lingüístico, quando se misturam institutos
com princípios específicos e distintos, como a ação
(impugnação; no direito processual eleitoral) e o recurso,
causando, já agora, problemas jurídicos relevantes.
Tito Costa, em precioso livro sobre os recursos eleitorais , procura formular a
distinção entre impugnação e recurso. Segundo ele, "Impugnação
é ato de oposição, de contradição, de refutação,
comum no âmbito do Direito Eleitoral e nas mais diversas fases do processo
eleitoral. Pode ser manifestada antes ou depois de ser tomada uma decisão,
ou praticado um ato.(...). A impugnação tem estreito liame com a
preclusão, pois que na ausência daquela poderá ocorrer esta.
A impugnação, em geral, é pressuposto para evitar-se a
preclusão". Já o recurso seria a "medida de que se vale
o interessado depois de praticado um ato ou tomada uma decisão. Pode também
ser manifestado oralmente, como a impugnação, mas para ter
seguimento deve ser confirmado, dentro dos prazos legais, por petição
escrita ou fundamentada". Finalmente, averba o ilustre advogado:
"O que deve merecer maior atenção dos delegados e fiscais de
partidos é que a impugnação - oral ou escrita - por si só,
não vai além da sua manifestação, deixando de
existir, uma vez praticado o ato ou mantida a deliberação que a
tenha ensejado. Para que a deliberação impugnada seja apreciada
pela instância superior, será indispensável usar-se o outro
remédio processual, o recurso, do qual a impugnação foi um
ato preparatório, um pressuposto indispensável."
A definição elaborada pelo eminente Tito Costa enseja algumas
importantes considerações. Em primeiro lugar, parece-nos claro que
o critério cronológico presidiu a construção da
definição esboçada, pois há uma preocupação
em enquadrar a impugnação como ato de refutação,
manifestado antes ou depois da tomada de uma decisão, ou praticado o ato.
Não há uma preocupação com a natureza do ato
impuganado, deixando entrever que poderá ser um ato judicial (decisão),
mas sem um elucidação quanto ao ponto. A definição
de recurso também não difere desse vício: não se
aponta qual a natureza do ato impugnado, que talvez fosse importante critério
de distinção, como o é no processo civil, apenas
consignando que seria interposto após à prática de um ato
ou a tomada de uma decisão. Malgrado isso, Tito Costa procura
correlacionar a impugnação ao recurso, dizendo que a impugnação
é um ato preparatório do recurso, um pressuposto indispensável
.
Antes de nos atermos a distinção entre impugnação
e recurso, necessário é saber se o Código Eleitoral apenas
utiliza o termo "impugnação" para designar atos jurídicos
que conotem as mesmas propriedades, ou o faz de modo ambíguo, colocando
sob o mesmo signo atos jurídicos de naturezas diversas. Peguemos ao azar
alguns exemplos, os quais servirão de amostras para o nosso estudo. O
art.52, § 2o do CE prescreve que no caso de perda ou extravio do título
eleitoral, o juiz, após receber o requerimento de segunda via, fará
publicar, pelo prazo de 05 dias, pela imprensa ou por edital, a notícia
de extravio ou perda e do requerimento da segunda via, deferindo o pedido, findo
este prazo, se não houver impugnação. O art.57 do CE
estatui que o requerimento de transferência de domicílio eleitoral
será imediatamente publicado na imprensa oficial ou cartório,
podendo os interessados impugná-los no prazo de 10 dias. O art.25 da
Resolução 15.374/89 do TSE dispõe que afixada em cartório
a lista de eleitores novos ou transferidos, ou de pedidos de segunda via, bem
assim de outras alterações de situação do eleitor,
contar-se-á prazo de 03 dias para impugnação do deferimento
do alistamento, da transferência, da expedição da segunda
via, ou da alteração da situação do eleitor.
Tais exemplos já nos servem para mostrar que, sob o rótulo de
impugnação, escondem-se atos jurídicos de naturezas
distintas. A impugnação prevista no art.52, § 2o do CE tem
natureza de contestação processual, pois o impugnante nada requer
de novo, senão que apenas contesta a pretensão deduzida pelo
eleitor.