Alex Ferreira Magalhães Mestrando em Direito da Cidade na UERJ
DISCIPLINA : PROPRIEDADE URBANA
1. A legitimação de posse de "lege lata" - evolução histórica do instituto 1.1 Primeiro momento - Da "Lei de Terras" à "República Velha" O instituto da legitimação de posse surge, formalmente, no direito brasileiro com o advento da decantada lei nº 601, de 18/09/1850, mais conhecida como "Lei de Terras", que dispunha sobre as terras devolutas do Império brasileiro. Trata-se, esta lei, de um verdadeiro divisor de águas não só na evolução de nossa estrutura fundiária, como, podemos afirmar sem exagero, da própria história sócio-econômica nacional. Uma vez que legamos de nossa colonização lusitana um modelo político de "Estado patrimonial", dispor sobre os bens imóveis do Estado significou dispor sobre praticamente tudo, ou sobre a maior parte do território nacional. Nesta lei se encontraria a "súmula da história territorial brasileira" (C. M. PORTO, 1971, pp. 55), a pedra de toque do sistema fundiário, que fornece os princípios jurídicos sobre os quais toda uma estrutura vai se edificar de forma perene, "em lento e inexorável processo evolutivo" (P. T. BORGES, 1974, pp. 187). A Lei de Terras marca o fim do chamado "regime de posses" no Brasil, ou seja, do sistema segundo o qual a aquisição de tratos ou dadas de terra se dava por intermédio de uma posse que proporcionasse povoamento e utilização econômica do bem - tratam-se dos célebres princípios da "morada habitual e cultura efetiva". Tal regime de posses se cristaliza fortemente marcado pelo costume social e pelo senso comum, tendo como pano de fundo a falência do sistema de concessão de semarias (extinto no Brasil em 1822, pouco antes da independência) e um procedimento similar existente em Portugal, pelo qual se distribuiam terras cultiváveis, cujos donos delas desleixassem, a quem as quisesse lavrar, dando-lhes aproveitamento econômico. Tanto no Brasil como em Portugal, sociedades, até o sec. XIX, de incipiente industrialização, conheceram problemas de adequado nível de urbanização que desse suporte ao seu desenvolvimento e modernização, razão pela qual juridicamente seriam estimuladas as atividades privadas de colonização (povoamento), bem como de produção econômica imediata, que gerasse algum nível de acúmulo capitalista. Na sistemática vigente até a Lei de Terras, não havia uma distinção clara entre posse e propriedade, destacando WHITAKER (apud PORTO, 1971, pp. 55) que "a posse que promovesse a colonização, o povoamento e a incorporação de terras ao processo produtivo, valia usualmente como domínio", e nesse mesmo diapasão eram exercidos os direitos da Coroa Portuguesa sobre a colônia, cujo poder fundamental era o de conceder sesmarias e não, propriamente, o de exercer as tradicionais faculdades dominiais (usar, gozar, dispor, reivindicar). Posse e propriedade coimplicavam-se uma na outra, sendo certo que as disputas territoriais resolviam-se, sobretudo, à luz do princípio do "uti possidetis, ita possideatis" ("do jeito que possuís, assim continueis possuindo"), oriundo das Institutas romanas. O mesmo pode-se afirmar com relação à noção de legitimidade, que tampouco era radicalmente distinta da noção de legalidade. Pelas razões acima, pode-se vislumbrar na Lei de Terras um dos primeiros marcos da "modernização" do sistema jurídico brasileiro, pois a partir dela emerge da noção de posse a de propriedade, propriedade esta com as características que marcam-na em seus contornos atuais, e que serão consagrados com a edição, em 1916/17, do Código Civil brasileiro. A partir de então a propriedade tornar-se-á hegemônica, fazendo da posse um "satélite" seu, negando a esta qualquer autonomia, entendida enquantos critérios e valor próprios, que não estejam em função de algo externo a si. A propriedade, por sua vez, encontra seu estribo na lei e jamais no costume, indicando que a legitimidade submete-se a legalidade, afirmando-se, assim, a tendência de formalização das relações sociais, resultado da emergência do jus-positivismo, então em franco crescimento a partir das sociedade européias, o qual vai conferir um novo perfil à ciência e à técnica jurídica. A legitimação de posse nasce, pois, em tal
contexto, fora do qual tal expressão revela-se enigmática
e de difícil assimilação pelo jurista apenas afeto
a inteligência contemporânea das expressões legítimo(ação)
e posse, nas quais decompõe-se o "nomen iuris" do instituto sob
análise.
Para que nosso pensamento não pareça contraditório, devemos esclarecer que a Lei de Terras tem dois apectos fundamentais, um que se volta para o passado, outro para o futuro, sendo este último o que constituía o centro das preocupações do legislador. Com relação ao passado, procura respeitar as situações preteritamente engendradas, reconhecendo efeitos jurídicos às mesmas, onde insere-se a legitimação de posse. Com relação ao futuro, extingue, doravante, a possibilidade de aquisição de domínio de terras públicas com base na posse, mesmo se respeitados os requisitos de morada habitual e cultura efetiva. Aliás, proíbe terminantemente a ocupação espontânea de terras devolutas, criminalizando tal prática e prevendo-lhe penas drásticas no campo civil. Assim, a Lei concilia-se, compõe-se, com o passado para então instituir uma nova ordem radicalmente diversa dele. Extinguindo o regime de aquisição por meio da posse, ou simplesmente regime de posses, a Lei de Terras enuncia o princípio da aquisição, ou seja, as terras somente seriam acessíveis por intermédio da compra. Desta forma, o Estado institui não somente uma esfera privada, mas um mercado de terras onde esta irá se movimentar. Ocioso lembrar que tal mudança conduz a evidente seleção dos segmentos subalternos, que não tem como adquirir terras no mercado, restando sem a alternativa que se lhes colocava até 1850. A conseqüência disto tudo é que o ordenamento jurídico vai cindir a sociedade em proprietários e não-proprietários, ou, dito de outra forma, entre o mundo do direito e o mundo do não-direito, trabalhando, portanto, numa lógica de oposições (ou contradições, antinomias, tensões) bipolares, sem previsão de uma "ponte" - um elo de ligação - possível entre tais dois polos. Na lógica jurídica que então se estabelece, inadmite-se qualquer matizamento no caminho entre a legalidade e a ilegalidade. Assim, o direito convida e encaminha a sociedade brasileira a tornar-se proprietária se, dentro de suas regras, desejasse alcançar o "status" de sujeito de direitos, ou seja, o patamar daquilo que hoja chamaríamos "cidadania". Nisto creio que resume-se o primeiro momento da evolução
do instituto da legitimação de posse, um instituto que não
foi feito para durar mas precisamente para desaparecer, posto que resolvia-se
com a titulação dominial dos que a requeressem. Ao cobrir
as posses existentes com o manto da legalidade, fazendo com que passassem
do plano empírico ao plano jurídico (vale dizer, ao exercício
de poderes jurídicos conferidos a particulares observadas certas
condições formais prescritas em lei), a Lei de Terras promove
a primeira "Regularização Fundiária" de que se tem
notícia em nossa história, sendo certo que esta consiste
precisamente no processo pelo qual busca-se trazer aquele que encontra-se
em situação precária, instável, anormal e irregular
em sua relação com a terra de que se utiliza, para o mundo
da certeza, previsibilidade e estabilidade do ordenamento jurídico,
o que se processará por meio de sua titulação como
proprietário - ou, na pior das hipóteses, como detentor de
um direito real, portanto, derivado da propriedade. Tal perspectiva veio
a determinar os contornos jurídicos do instituto da posse civil
no direito brasileiro, a qual, quando distanciada da propriedade, será
sempre representada como situação de incompletude e precariedade,
não possuindo qualquer valor intrínseco, exceção
única na hipótese de aquisição por Usucapião
- o que não destoa da lógica do sistema, visto que esta significará
o ingresso do possuidor no mundo dos proprietários.
1.2 Segundo momento - Da constitucionalização do instituto à sistemática vigente Ultrapassado este primeiro momento da existência do instituto - conhecendo as terras devolutas, durante a "República Velha", um grande processo de invasão e usurpação por particulares, mediante artifícios fraudulentos, inclusive com simulação de títulos antigos de propriedade, fato consignado com preocupação em Decreto de Vargas, assinado em 1931 -, a expressão legitimação de posse será reativada pelo Decreto-Lei nº 9.760, de 5/09/1946. Tal diploma legal, dispondo sobre bens imóveis da União, tratará do processo discriminatório de terras devolutas (mediante o qual visa-se extremar os domínios público e particular), e, como decorrência da conclusão deste - tal qual um processo judicial de caráter executivo sucede ao de cognição - estabelecerá a legitimação de posse dos eventuais ocupantes das glebas disciminadas. No entanto, o que irá marcar este segundo
momento da história do instituto somente se tornará mais
nítido com a edição do Estatuto da Terra (Lei nº
4.504, de 20/11/1964) bem como da nova lei sobre processo discriminatório
de terras devolutas (Lei nº 6.383, de 7/12/1976), que, quebrando toda
a tradição herdada desde a Lei de Terras, transmudará
tal processo em ação judicial, retirando-a da competência
dos órgãos administrativos aos quais era vinculada desde
seu surgimento. Tais leis, editadas em sintonia com o que dispuseram as
Constituições brasileiras de 1946, de 1967 e à sua
Emenda nº 1, de 1969 (artigos 156, 164 e 171, respectivamente), a
respeito de legitimação de posse, caracterizam tal instituto,
nitidamente, como procedimento preparatório da compra da terra pelo
posseiro, ou seja, a legitimação é estruturada de
uma tal forma que, ao final de seu lapso (ela será sempre por tempo
determinado), o posseiro a adquira por seu valor histórico, gozando
de preferência legal para tanto. O segundo aspecto que se entrevê
é o de que o ordenamento concebe a legitimação de
posse não como um ato unilateral do poder público, que concede
a legitimação de posse por mera liberalidade, em ato administrativo
discricionário, mas sim como um direito adquirido de quem exerce
a posse, em teras devolutas, com aqueles atributos exigíveis desde
a origem do instituto. Outra não é a conclusão que
se pode extrair do art. 29 da Lei 6.383/76, quando reza:
Registre-se que a Constituição de 1946 emprega idêntico tempo verbal, reforçando a idéia que está a se instituir um dever do poder público, que tem como contrapartida lógica o direito do cidadão que se encontrar na situação especificada em lei. Assim, resultado dos dois supracitados aspectos da
configuração da legitimação de posse, é
que o posseiro com morada permanente (é a literal expressão
da lei 6.383/76, também uma inovação) e cultura efetiva
adquire um direito em virtude de sua posse qualificada de bem público
dominical, mas este direito tem a natureza de um comodato (empréstimo
gratuito de bem imóvel) e limitado pelo insuperável prazo
de quatro anos, dentro do qual deverá ser exercida a preferência
para compra, prevista em lei. Conclui-se que se, ao cabo de quatro anos,
não for exercida a preferência pelo posseiro (que em geral
será lavrador despossuído), nenhum direito mais lhe restará,
tornando-se ilegal sua posse, passível até mesmo de incriminação,
com base no art. 20 da Lei 4.947/66. A posse a ser regularizada é,
mais uma vez, encarada como precária, devendo, assim, ceder lugar
a uma relação comodatária, com vistas a aquisição
futura. Trata-se, a nosso ver, de mais um estreitamento na evolução
do instituto, que certamente o conduzirá ao desuso, dado o desinteresse
que a desfavorabilidade de condições acaretará para
o lavrador, para quem, assim como no período das sesmarias, será
preferível a condição de clandestinidade.
2. Perspectivas atuais do instituto da Legitimação de Posse A evolução histórica do instituto da legitmação de posse nos traz, desde o contexto da regulação jurídica da utilização de terras devolutas de vocação rural, diversos fragmentos com grande potencial para subsidiar uma concepção de propriedade urbana mais conforme aos ditames constitucionais de 1988, bem como ao quadro de necessidades e carências urbanas. Nesse sentido, cabe, em primeiro lugar, uma digressão sobre o instituto da posse no direito agrário, concebido de maneira distinta da posse civilística. O direito agrário parte do pressuposto que a terra existe para ser cultivada e utilizada, não se admitindo jurídicamente que seja mantida inaproveitada a terra fértil. O não-uso acarreta penalidades ao proprietário rural (vedada a perda da propriedade em virtude da garantia constitucional), como o ITR progressivo, desapropriação paga em títulos da dívida pública e proibição de recebimento de incentivos governamentais (BORGES, 1974, pp.181-2). Assim, a posse agrária é, necessariamente, posse qualificada por sua função socio-econômica, fazendo-a diferir do mero apossamento, que tem natureza puramente fatual de exercício de alguma das faculdades/poderes dominiais, na esteira da "occupatio" jus-romanista. É nesse diapasão que se irá falar, no caso de posse em terras devolutas onde sejam presentes os requisitos exigidos em lei (fundamentalmente, repita-se, morada habitual e cultura efetiva), não de possuidor mas sim de posseiro, indicando ser inconfundível a posse no sentido publicístico que lhe confere o direito agrário, em relação à concepção privatística, própria do Código Civil, elemento de suporte fático da aquisição por Usucapião. Tal é a terminologia de que se valerá a própria Constituição de 1946. Tanto o Estatuto da Terra como outras leis que versem
sobre direito agrário, distinguiram, em relação às
terras devolutas, situações de legitimação
de posse, de um lado, e situações de aquisição
por Usucapião, de outro, na esteira da sistemática implementada
a partir da Lei de Terras. Os professores Francisco Morato e Miguel Reale
são categóricos em ratificar tal distinção,
afirmando que a legitimação de posse importa no reconhecimento
de um fato, atentando à sua relevância bem como a motivações
de ordem socio-econômica. Tal fato reconhecido é o de "posse
qualificada pelo trabalho, a qual se atribuem especialíssimos efeitos
de natureza nitidamente social " (REALE, apud PORTO, 1971, pp. 60). Trata-se,
assim, de um conceito jurídico de "posse-trabalho", fundado na instância
econômico-social, evidentemente, um "plus"em relação
ao estatuto civil que prescinde de tais qualificadores.
Colocadas tais premissas, nota-se que apesar de todas debilidades que possam ser suscitadas, a noção agrarista de posse é evidentemente plasmada pela noção de função social, contendo em si o embrião de um estatuto autônomo da posse, que, realizando os objetivos superiores previstos na Constituição, deixe de estar dependente do direito de propriedade, do qual seria uma espécie de "ante-sala", mas adquira um valor em si, configurando situação juridicamente protegida e privilegiada, independente da possibilidade de sua conversão em domínio. Em tal hipótese, superaríamos aquela dicotomia, estabelecida a partir da Lei de Terras, em que o ordenamento jurídico organiza o mundo em proprietários e não-proprietários, sem qualquer matizamento entre ambos, e em função, obviamente, dos primeiros, segmento para o qual todos devem direcionar-se, posto que um "standard", uma instância de normalização das relações sociais. A adequada e profunda absorção da noção de função social da propriedade impõe a superação deste maniqueísmo que ora criticamos, admitindo-se novas formas jurídicas de acesso á terra, que não passem necessariamente pela sua aquisição. Tal proposta foi já concretamente preconizada, a partir da economia urbana, pela Prof. Ângela Moulin simões Penalva santos, da UERJ, que em recente trabalho (mimeo, Setembro, 1996) a fundamenta no fato de serem os direitos exclusivos do senhorio em relação a um bem imóvel a origem das inequidades na distribuição e percepção da renda real nas cidades, posto que privatizam investimentos públicos - das mais diversas ordens - criadores de externalidades positivas em relação ao bem em questão. A rigor, afirma a economista, inexiste hodiernamente, do ponto de vista material, propriedade puramente privada, dado que sempre estarão sujeitas às externalidades existentes em suas proximidades, não verificando-se mais, quanto à propriedade do solo, aquela situação em que o bem pode ser produzido e consumido sem que existam efeitos contra terceiros (situação que, esclareça-se, qualificaria um bem privado puro, à luz da economia). Conforme inúmeros comentaristas têm ressaltado, a função social da propriedade não é uma limitação do direito de propriedade mas sim uma garantia constitucional, isto é, um direito da coletividade em face do proprietário individual, em especial, daqueles que não são proprietários e que dela justamente necessitam para sua reprodução social (seria mais preciso, hoje, falar em subsistência em lugar de reprodução !). Assim, a Constituição funda um direito dos não-proprietários, retirando-os da esfera de exclusão de qualquer cidadania, preconizada pela Lei de Terras. Neste sentido, afirmaria que não mais se justifica o quadro térorico-jurídico que confere tênues direitos e faculdades ao possuidor. Se a propriedade é publicizada, deve também a posse, que no direito civil segue à primeira, revestir-se de um caráter público, configurando-se o posseiro como aquele que exerce a posse qualificada e, por isso, sujeito de direitos que podem inclusive voltar-se contra o "dominus", e não apenas detentor de uma situação precária, anormal, irregular, a ser legalizada. Trata-se de um verdadeiro "proprietário putativo", na expressão de Messias Junqueira (apud PORTO, 1971, pp. 65). Tal visão implica na revalorização da própria noção de "legitimidade", ou de "legítimo", noção extremamente fecunda no direito brasileiro, comumente identificada à de legalidade, visto que, nos atuais parâmetros da ciência do direito, este é portador de uma terminologia própria, onde distingue-se a legitimidade no sentido jurídico e nos sentidos restantes que o termo pode assumir, sendo que nestes últimos irá normalmente referir-se a um interesse político-social dominante. A noção de função social da propriedade, necessariamente atravessada por um certo nível valorativo - capaz de nos indicar qual o interesse social mais relevante a ser protegido -, contribui para uma reaproximação do legítimo em relação ao legal, não para correlacioná-los, identificá-los ou reduzí-los um ao outro, mas para permitir que o direito seja constituído pelo meta-direito. Se a propriedade não encontra fundamento fora do atendimento à sua intrínseca função social, é perfeitamente concebível uma "posse legítima" como aquela que atenda aos princípios de valor segundo os quais constitucionalmente se asseguram as faculdades inerentes ao domínio. No regime de um renovado estatuto legal da propriedade, "legítimo" corresponderia à causa justificadora do direito, o seu regime de atribuição. A opinião que ora expresamos não é
diferente de alguns dos pensadores que com suas obras contribuíram
para a própria construção da categoria jurídica
"função social da propriedade". Tanto o positivista-comteano
Léon Duguit, como o materialista e anarquista Pierre-Joseph Proudhon,
ao desenvolverem suas decisivas teorizações a respeito do
tema em tela valorizaram extremamente o fato da posse, inculcando-lhe um
valor a ser jurídicamente reconhecido, além de relativizarem
os absolutos direitos dominiais então inscritos no Código
Civil napoleônico - conforme demonstram sobejamente os artigos de
GERALDO TADEU MONTEIRO (1996) e de TELGA DE ARAÚJO (1977), nesta
última, especialmente às páginas 4 e 5. Da mesma forma,
a Pastoral de Favelas da Arquidiocese do Rio de Janeiro, vanguarda no apoio
técnico e jurídico a comunidades faveladas ameaçadas
de remoção forçosa e coletiva nos anos 70, buscou
armar-se de uma teoria jurídica que também autonomizasse
a posse, enquanto limitação ao exercício da propriedade,
conforme nos relatou Eduardo Guimarães de Carvalho em suas pesquisas
e tese (transformadas na obra "O negócio da terra", 1991). Em idêntico
sentido, ainda, creio que os conhecidos (e discutidos em sala de aula,
em diversas oportunidades) acórdãos de Canoas/RS (publicado
in "Julgdos do TARGS" 46/247-60 e 51/160-65), Belo Horizonte (mimeo), e
de São Paulo (in ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA,
Justiça e democracia, nº 1: pp. 239-46, São Paulo, 1º
semestre de 1996), todos versando sobre lides fundiárias urbanas,
não fazem outra coisa senão, sem recurso a qualquer forma
de nominalismo jurídico, instituir, pela via judicial, um renovado
instituto da legitimação de posse, dando operacionalidade
jurídica e eficácia social ao princípio constitucional
da função social da propriedade.
3. Por fim: prolegômenos para uma sociologia "brasileira" do direito Um dos grandes problemas do sistema jurídico que se edifica a partir da Lei de Terras é o fato de apartar-se inteiramente de vida do povo do qual tinha a pretensão de constituir a definitiva forma de regulação e normatização. O esquema de oposições, antinomias, ou contradições binárias (ou bipolares) que institui confronta-se sobejamente com o costume social então arraigado, pouco afeto a posições extremadas e com alto grau de resolução, admitindo recorrentemente um "tertius" que concilie os contrários, fazendo com que nenhum deles "perca ou ganhe". Nesse sentido, não parece servir-nos o aforisma latino "tertius non datur". Nesse sentido, ainda, a sociedade brasileira é inclusiva, no sentido que não procura rechaçar, ou excluir, totalmente, nenhuma possibilidade de classificação, diferenciando-se pela capacidade de amalgamar diferentes "províncias éticas" (que sempre de alguma forma "acontecerão" no cenário jurídico), diferentemente do que faz a revolução individualista e modernizante de que nos fala a sociologia (exemplarmente nas obras de LOUIS DUMONT e MAX WEBER) que cria uma hegemonia de uma única forma de classificação - ou de existência - social e simbólica. Com efeito, entre o campo da legalidade e o da ilegalidade - ou o de outras formas de legalidade porventura existentes - há o "meio-campo" (onde se ganha o jogo, segundo os téoricos do futebol brasileiro) das "necessidades", tão bem identificado por CARVALHO (1991), espaço de representações sociais mediante o qual pode fundamentar-se o acesso a terra pelos dela carentes, sem que necessariamente proclame-se um direito a tal acesso, mas bastando a justificativa ético-moral. Entre o direito e o não-direito, a sociedade brasileira parece relacionar os dois para ficar com o justo, um ponto de encontro entre os polos, que tem razões ignoradas por eles, pois constitui espaço autônomo - no sentido kantiano de dar a si mesmo suas próprias regras. Há uma similaridade de tal processo com a idéia grega do "justo meio", mediante a qual não escolhia-se nem o melhor nem a pior das soluções possíveis, mas aquela mediana, que mantivesse algo das duas anteriores. Se levamos em devida conta tal dado civilizatório
brasileiro, o resultado será não uma bi-polaridade, mas,
na melhor das hipóteses, uma triangulação. E de natureza
relacional, acrescente-se. Porém, se consideramos tudo isto irrelevante,
descartando-se o dado cotidiano na construção da super-estrutura
institucional, estaremos colocando, aí, as bases de uma clivagem
entre condições materiais de existência e forma jurídica,
em duas palavras, entre real e formal. Tal clivagem, bastante verificável
no caso brasileiro, e que parece compor um igrediente a mais de sua complexa
estrutura social, pode fundar, como efetivamente funda, um sentimento popular
de radical alteridade para com o mundo "oficial", jurídico-institucional
e político, em última análise, encontrando-se direito
e realidade em situação de permanente e mútua interpelação
e tensão.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA - ARAÚJO, Telga de. Função social da propriedade.
In: FRANÇA, Rubens Limongi. Enciclopédia Saraiva do Direito,
vol. 39: pp. 1-16. São Paulo, Saraiva, 1977.
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