O MINISTÉRIO PÚBLICO: PRINCÍPIOS, ATRIBUIÇÕES
E SEU POSICIONAMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.
Promotor de Justiça em Roraima
SUMÁRIO: I.
A Institucionalização do Ministério Público;
II. A Magistrature Débout como Quarto Poder;
III.O Ministério Público Face ao Processo; IV. Autonomia
Funcional, Administrativa e Financeira; V. O Poder de Iniciativa
Legislativa do MP e a Remuneração de seus Membros;
VI. Ombudsman - Defensor do Povo.
I. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO.
As Constituições Federais que antecederam a de 1988, omitiram-se de definir o Ministério Público, onde, diga-se de passagem, nunca ocupou lugar específico. É sabido, ainda, por todos que se ocupam do estudo sistemático do Ministério Público o grande desconhecimento que reina em torno desta Instituição, que só agora começa a ganhar merecido realce, mercê da posição de relevo que a Constituição Federal de 1988 lhe conferiu.
A primeira Constituição do Brasil, a de 1824, nem
mesmo se referia à instituição, tão
só mencionava (art.48) vagamente a existência de
um Procurador da Coroa e Soberania Nacional ao qual incumbia proceder
a acusação "no juízo dos crimes".
Em 1828, pela Lei de 18 de setembro, foi criado o cargo de Promotor
de Justiça para ter exercício perante as Relações
e os diversos juízos das comarcas. Mas o Aviso de 16 de
janeiro de 1838, foi, por assim dizer, o verdadeiro ato precursor,
no Brasil, da finalidade máxima e característica
da instituição, considerando os Promotores como
"fiscais da lei".
Todavia, a expressão Ministério Público
só veio a ser mencionada no Brasil, segundo as pesquisas
realizadas por Abdon de Melo e ratificadas por José Henrique
Pierangelli, inicialmente, no art. 18 do Regimento das Relações
do Império, datado de 2 de maio de l847(cf. Jersey de Brito
Nunes, "O Ministério Público, Ontem - Hoje",
p. 03).
Na Constituição de 1891 tocou-se apenas na figura
do Procurador-Geral da República, que seria um Ministro
do Supremo Tribunal Federal indicado pelo Presidente da República
e "cujas atribuições se definirão em
lei".
A Constituição de 16 de julho de 1934, efetivamente
institucionalizou o Ministério Público, ficando
no Capítulo VI, do seu Título I (arts. 95 a 98:
"Dos órgãos de cooperação nas
atividades governamentais), referente à "organização
federal". Esta constituição previa, ainda,
que lei federal organizaria o Ministério Público
na União, no Distrito Federal e nos Territórios,
e que leis locais organizariam o Ministério Público
nos Estados (art. 95).
"A partir da Carta Magna de 1934", diz o Prof. Alcides
de Mendonça Lima, "a corporação vem
adquirindo posição institucional de relevo no texto
e em leis especiais" ("Atividade do Ministério
Público no Processo Civil", Revista de Processo, 10/64)
Nessa Carta Política se prevê apenas a organização
do Ministério Público na União, no Distrito
Federal e nos Territórios, tendo ficado aos Estados a faculdade
de legislarem livremente sobre o assunto.
Daí a diferenciação fundamental e a falta
de unidade reinantes nas diversas leis de organização
judiciária do país, na vigência daquela
Constituição, relativamente à Instituição
do Ministério Público, não só quanto
ao provimento dos respectivos cargos, como quanto à natureza
das funções, amplitude de atribuições,
garantias e deveres.
Note-se, an passan, que na época, por se entender
que o MP estava subordinado ao Judiciário, as disposições
legais atinentes à instituição vinham nos
Códigos de Organização Judiciária,
e não em lei especial. Tanto que, atentando para o fato,
o 1º Congresso do Ministério Público, realizado
em São Paulo, em 1942, recomendou a elaboração
de leis de regência do MP, separadamente das leis de organização
judiciária.
Quanto ao provimento, em muitos Estados as nomeações
eram feitas livremente, pelo governo, não obstante a exigência
constitucional de concurso, para o Ministério Público
Federal.
Quanto à natureza das funções, os representantes
do Ministério Público eram considerados como "órgãos
do Poder Judiciário", meros "auxiliares da administração
da Justiça", ou ainda como "agentes do Poder
Executivo".
Quanto à amplitude de atribuições, dada a
grande dificuldade de estabelecer-se nitidamente um critério
diferencial entre o que constituía matéria de organização
judiciária e matéria de ordem processual, Estados
havia que, exorbitando de sua competência legislativa, cometiam
aos representantes do Ministério Público, atribuições
não previstas nas leis de processo.
Finalmente, quanto às garantias de estabilidade, promoções,
vencimentos e outras mais, vários eram os critérios,
dada a ausência de princípios constitucionais expressos,
reguladores da matéria.
Essa situação caótica e altamente prejudicial
à instituição, mais se agravou durante o
regime ditatorial que por largos anos imperou no Brasil.
Assim, na Carta de 1937, outorgada, desaparece o Ministério
Público, mandando o art. 99 que para Procurador-Geral recaia
a escolha "em pessoa que reúna os requisitos exigidos
para Ministro do Supremo Tribunal Federal". Essa Carta sequer
se dignou tomar conhecimento do importante órgão
defensor da sociedade, senão de maneira genérica,
sem fixar-lhe expressamente as bases de sua estrutura institucional.
A Constituição de 1946 restituiu a dignidade da
instituição dispensando-lhe um título autônomo,
sem dependência aos poderes da República e com estrutura
federativa (MP estadual e MP federal). Seus membros ganham estabilidade
(art.127), ingresso só por concurso (art.127), promoção
na carreira (art.128).
A Carta de 46, estabeleceu em seu art. 127, sumariamente, que
o ingresso nos cargos iniciais da carreira do Ministério
Público, seria feito "mediante concurso", sem
quaisquer outros requisitos quer para a inscrição,
quer para a natureza e as bases do concurso, quer quanto à
comissão examinadora.
Daí decorreu a diversidade de critérios adotados
pela legislação ordinária e pelas Constituições
dos Estados, referente à regra constitucional.
É interessante observar-se, também, que relativamente
à promoção, a Lei Básica de 1946 somente
se referiu quanto ao Ministério Público dos Estados
(art. 128). Quanto ao Ministério Público da União,
do Distrito Federal e dos Territórios, nenhuma referência
explícita à promoção continha o art.
127, que dispunha sobre a matéria.
Dir-se-á que tendo sido instituído em carreira,
ao MP, implicitamente, estaria garantido o direito à promoção.
Mas neste caso, desnecessário seria o disposto na parte
final do art. 128 que acrescentava aos preceitos do artigo
anterior "mais o princípio de promoção
de entrância a entrância".
Nas constituições posteriores, o Ministério
Público ficou agregado, aqui e acolá, como um penduricalho,
do Judiciário (1967) e do Executivo (1969), de modo geral,
sem independência funcional, financeira e administrativa,
com vigor apenas para manter a engrenagem do sistema funcionando,
inane para alçar vôos mais edificantes.
Alguns autores, a exemplo de Pontes de Miranda, face à
topografia constitucional, chegaram a designar esse órgão
de ramo heterotópico do Poder Executivo (1).
De fato, não tem havido constância nas disposições
sobre o MP em nossas várias Constituições.
Apareceu como um "órgão de cooperação
das atividades governamentais" (1934); em dispositivos esparsos
(1937); título autônomo (1946); no capítulo
do "Poder Judiciário" (1967, texto originário)
e no "Poder Executivo" (1969).
O Prof. Jersey de Brito Nunes, em interessante trabalho histórico
sobre o Ministério Público, focalizando a evolução
institucional do MP, diz o seguinte:
"Pelo que consta das Constituições sobre as
quais tecemos comentários, o Ministério Público
nunca foi institucionalizado no Brasil.
Na Constituição do Império ficou atrelado
ao Poder Legislativo (Senado); na de 1891, ao Judiciário;
na de 1934, aos órgãos de cooperação
nas atividades governamentais (Executivo); e, nas de 1946 e 1967,
também ao Poder Executivo.
Adquiriu foro de instituição há bem pouco
tempo com a promulgação da Constituição
Federal de 5 de outubro de 1988, pela qual desvinculou-se das
amarras dos Poderes do Estado, situando-se em capítulo
próprio (Capítulo IV - NAS FUNÇÕES
ESSENCIAIS À JUSTIÇA)" ( "O Ministério
Público Ontem - Hoje", p. 24-25).
E mais adiante, completando a clareza da exposição,
conclui Jersey de Brito:
"Ainda se discute se efetivamente houve, da Constituição
de 1824 à Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro
de 1969 no Ministério Público, crescimento institucional.
Para uns sim, para outros se crescimento houve, este não
se processou de forma harmônica e obedecendo ao princípio
da continuidade. Se existiu, tal aconteceu por avulsão
mas nunca por evolução (grifamos)" (ob.cit.,
p. 70).
A falta de um título especial onde fosse colocado o MP,
a exemplo da Carta de 1946 ( e também da atual), colaborou
para a expansão da idéia de submissão do
órgão ao Poder Executivo ou de mero "auxiliar
do juízo" (como, infelizmente, teimam em pensar alguns
magistrados, que vêem no Promotor um assessor ilustre).
A erronia de semelhante idéia é patente, pois, não
é porque a lei (ou a Constituição, no caso)
não defina como vermelha alguma coisa que é vermelha
que deixará ela de ser dessa cor, pois, o MP independente
do tratamento jurídico dispensado, é essencial e
estrategicamente, uma instituição autônoma,
dentro do mecanismo de freios e contrapesos montado. Ademais,
na Carta de 1967, onde o parquet foi colocado no mesmo
inciso constitucional, lado a lado com o Judiciário, significou
o abandono do constituinte à orientação americana,
onde o "Attorney-General" e os "District Attorney"
são mais funcionários do que magistrados (de pé,
entenda-se), para filiar-se às doutrinas francesa e italiana,
que vêem no Ministério Público magistratura
especial e perfeitamente equiparada à magistratura ordinária,
em matéria de garantias.
Ora, o legislador constituinte ao colocar num mesmo plano de garantias o Poder Judiciário e o Ministério Público, irmanando-os na mesma independência, na mesma liberdade de ação, teve em mira furtá-los aos caprichos do Executivo ou do Legislativo, para que assim, pudessem ser realmente defensores da lei e da sociedade. E não para que o Ministério Público fosse órgão subserviente e coadjuvante do Judiciário, como alguns falsos intérpretes e veranistas do Direito sugeriram.
D'outra banda, o enquadramento do Ministério Público
dentro do Poder Executivo à luz da Carta de 1969, justificava-se
apenas e tão-somente pela natureza administrativa de algumas
de suas funções e nunca por uma subordinação,
ainda que eventual e aprioristicamente concebida, entre aquele
e este.
Mas, toda essa infrutífera discussão já faz parte do passado, pois, hoje, após o clamor público contra a criminalidade oficiosa, contra a violência e o despreparo do aparelho policial, contra a impotência do Ministério Público, contra o emperramento da Justiça e contra a falência do sistema penitenciário brasileiro, a Constituição Federal de 1988 criou ( ou diríamos melhor, deu azo a que a existência compatibilizasse-se com a essência) um verdadeiro e vigoroso Ministério Público, assim conceituado:
"Art.127, caput - O Ministério Público
é instituição permanente, essencial à
função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe
a defesa da ordem jurídica, do regime democrático
e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".
No dispositivo acima transcrito está a destinação constitucional do MP, tornando-o verdadeira instituição permanente essencial à função jurisdicional, conferindo-lhe, ainda, a incumbência de fiscalizar o cumprimento da Constituição e das leis, bem como a defesa da própria Democracia e também dos interesses sociais e individuais indisponíveis, perante os poderes públicos. Acima de tudo, sua existência justifica-se pela cerberesca fiscalização no cumprimento fiel da lei e da Constituição, lábaro de um Estado Democrático de Direito. A tal respeito, lecionou o Prof. Jersey de Brito Nunes, em linhas memoráveis do nosso repertório jurídico, verbis:
"A fiscalização do cumprimento da norma legal
constitui sempre e em todas as épocas, a razão de
ser do Ministério Público...vez que fiscalizando
o cumprimento da Constituição e das leis, o Ministério
Público automaticamente estava defendendo os interesses
da sociedade, defendendo a ordem jurídica, hoje atributo
na atual Constituição"(ob. cit., p. 69-70).
Em complemento, seja-nos permitido acrescentar, que como fiscal
da lei, o MP tem as vestes de parte em relação ao
que faz, e se avizinha do juiz, no tocante ao motivo de agir.
Visto desse prisma, as atribuições ministeriais
ao mesmo tempo em que são dignas, são também
árduas, pois materializam-se na eterna conciliação
entre a parcialidade da parte e a imparcialidade do juiz (veja-se
que o agente ministerial está sujeito aos mesmos motivos
de suspeição e de impedimento do juiz, cf. art.
258, in fine, do CPP e art.138, I, do CPC). E por dever
de ofício, o parquet tem de incorporar essa dupla
face, refugiando-se sempre no imperativo da lei e imposições
das consciências de seus agentes, utilizando esses moldes
para refazer a realidade social.
Lembremos que a comparação entre Magistratura e
Ministério Público, como sujeitos processuais, deflui
da circunstância de serem, ambos, Órgãos do
Estado, imparciais e independentes.
A propósito da imparcialidade que o membro do Ministério
Público deve imprimir as suas manifestações
e iniciativas, em artigo publicado na RT 675/331, sob o título
"Ministério Público: Órgão Acusador
?", diz Renato Dantas de Holanda Cavalcanti:
"O interesse do Ministério Público no caminho
da justiça não o incita a proceder da mesma forma
que o magistrado o faz, posto que existiria uma duplicidade de
atividade funcional inútil".
Não deixa de ter lógica o raciocínio do articulista,
todavia, é de se ver, que a imparcialidade com que deve
agir o membro do parquet não o equipara ao magistrado,
visto que, só este último "diz o direito",
enquanto que a função do primeiro "como atividade
promotora da ação, não se confunde
com a atividade do Juiz, que aplica a justiça pela justiça,
a lei pela lei. Promove-a (Ministério Público) com
finalidade determinada, ainda que orientada por um ponto de vista
geral" (Jorge Americano, "Comentários ao Código
de Processo Civil do Brasil -1939", Vol. I, 1940, São
Paulo, Livraria Acadêmica, p. 155).
A orientação do Prof. Jorge Americano, obviamente,
enquadra o exercício funcional do membro ministerial como
parte na relação processual, e não
como, custos legis. Pois quando age neste último
quadrante, a distinção é feita sob uma linha
tênue e repousa no binômio ação/inércia.
Aos sujeitos processuais, Juiz e Promotor, não se deve
pretender funções distintas dos princípios
informativos de suas instituições, pouco importando
o ramo do Direito em que venham a atuar, pois, não se pode
transmudar a idéia institucional, sob pena de não
ser mais Magistratura ou Ministério Público, e sim,
outro sujeito processual. Se a imparcialidade é um atributo
comum aos dois órgãos, embora adstrita ao fim institucional,
não se pode pô-la no olvido a pretexto de duplicidade
funcional, o que, inclusive, não existe.
"O Ministério Público é imparcial porque
nasceu sob o signo da dignidade. É o que nos dizem velhos
comentários de insignes juristas como ROCHE-FLAVIN que,
em 1617, dizia ter-se criado, finalmente, um órgão
imparcial, sobranceiro a interesses e paixões e armado
de poderes para defender a sociedade ("Treize livres des
parlamentes de France", vol. II, cap. VII, n. XV). E esta
imparcialidade do parquet de tal forma impressionou o vetusto
RASSAT que, este chegou a vislumbrar na sua criação
o advento de um milagre ("Le Ministére Public entre
son passé et son avenir", pág. 13). CARNELUTTI
chegou, inclusive, a construir-lhe a imaginosa figura de parte
imparcial ("Lezioni", Vol. I, n. 10). É inegavelmente
imparcial, pois chega a recorrer em favor de acusado que acredita
ser inocente (ut. FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, "Processo
Penal", vol. IV/264; JOSÉ FREDERICO MARQUES, "Elementos
de Direito Processual Penal", vol. IV/206 e 264)" (cf.
João Francisco Moreira Viegas, "Ministério
Público: sua Atuação no Cível",
RJTJSP 117/29).
Acrescente-se, que a preocupação de imparcialidade não deve exagerar-se nas atitudes frouxas, esquivas ou reticenciosas, comprometedoras do programa do Ministério Público e dos seus compromissos funcionais. O Promotor de Justiça, como homem público, na sua mais bela modalidade, deve renunciar, no exercício do cargo, a qualquer reserva mental, a qualquer preconceito, a qualquer facciosismo.
Na fiscalização da lei e, portanto, da própria
Constituição, é relevantíssima a missão
do Ministério Público, não só em benefício
da Justiça, como, mormente, da Sociedade. Mais relevante
talvez do que a da Magistratura, porque o juiz representa uma
força estática, apenas declaratória
do direito e reveladora da justiça, ao passo que o Ministério
Público representa uma força dinâmica,
sempre em ação, que promove essa declaração
de direito, essa revelação da justiça, pondo
em andamento a máquina processual, investigando, fiscalizando,
promovendo responsabilidades que podem atingir a quaisquer dos
três poderes: executivo, judiciário ou legislativo
(cf. art. 129, II, da CF/88).
O jus sui cuique tribuendi pode ser mais relevante, mais
grave, do que as funções cometidas ao Ministério
Público, sob o ponto de vista de seus efeitos, porém
nunca mais árduo.
O Promotor de Justiça não tem apenas a atribuição
jurídica de opinar em determinados processos, aliás,
por si só, das mais trabalhosas, por isso que requer o
esforço material de examinar todas as peças dos
autos e o esforço intelectual de apontar ao juiz o direito
aplicável a cada espécie.
O Ministério Público tem funções judiciárias,
administrativas, consultivas (emitir pareceres, v.g.) e fiscalizadoras
(Controle Externo da Atividade Policial, Fundações,
etc.).
A sua ação é dinâmica, ao passo que
a do juiz é estática.
A relevância superior da existência e do ofício
desempenhado pelo Ministério Público é, por
outro lado, também, facilmente aferível, pois enquanto
o Legislativo e o Executivo têm livre iniciativa para legislar
e administrar, o Judiciário não tem iniciativa,
motu proprio, para julgar (CF, art.5º, XXXV).
Assim, seria ineficaz a sua atuação, se não
houvesse um órgão representativo dos interesses
sociais, para promover a aplicação da lei nos casos
em que se faz necessário. Esse órgão é
o Ministério Público.
Nas sociedades civilizadas não há poder absoluto,
independência completa, ou liberdade plena. Em busca da
harmonia organiza-se constitucionalmente um sistema de pesos e
contrapesos, onde cada movimento de um dos poderes provoca contramovimentos
dos demais, que assim se delimitam reciprocamente.
A falta do Ministério Público implicaria: ou na
necessidade da intervenção direta do Executivo perante
o Poder Judiciário, o que significaria subordinação
de um a outro, com a quebra da harmonia e independência
entre as funções; ou na atribuição
de iniciativa ao Poder Judiciário, com violação
dos mesmos preceitos, pois a sua própria natureza rejeita
qualquer iniciativa, a não ser com o risco de invadir atribuições
alheias; ou finalmente, na destruição da ordem social,
pela inação do Poder Judiciário, à
falta de um órgão provocador. Dentro da organização
constitucional, portanto, o Ministério Público é
essencial à vida do regime!
Assim, é forçoso concluir que, constitucional e juridicamente, a existência do Ministério Público é indispensável ao funcionamento das instituições. Sem ele, a sociedade fica desprovida dos meios de promover a aplicação da lei, em sua própria defesa.
São tais balizas que nos levam a crer que o Ministério
Público deve ater-se e concentrar seus esforços
sobre as deficiências do nosso sistema, que retrata uma
carência de controle sobre quem exerce o poder, e de falta
de mecanismos de fiscalização, de equilíbrio
e ajuste, que o tornem mais justo em suas variegadas facetas político,
social e econômico.
Os estudiosos desde John Locke e Montesquieu (2) já tinham
atentado para a necessidade de criar mecanismos eficientes dentro
do universo jurídico que contivessem o uso indevido do
poder, impedindo abusos. Pois, "la autoridad sin limites
es muerte de la libertad. La libertad sin limites es muerte de
la autoridad y de la propria liberdad. Allí surge precisamente
la función del derecho para fijar con razonabilidad y prudencia
las riberas de ese rio eterno llamado poder". Daí
deriva a meridiana conclusão de que o direito de uma sociedade
esclarece, melhor que qualquer outro fenômeno, sobre a natureza
e os vícios do poder que a rege.
John Locke, por exemplo, ao trabalhar sobre as idéias de
vontade e liberdade, propôs um conceito de poder contido
na seguinte afirmação "poder, vontade e liberdade
constituem um todo coerente", mas, ao projetá-lo no
contexto político, foi ele o primeiro a defender sua limitação,
seu controle e o direito de resistência.
Não há legalidade, diz Celso Antônio Bandeira
de Melo, sem sua garantia. E não há garantia de
legalidade sem um órgão imparcial, isento, sobranceiro.
E não há órgão imparcial, isento,
sobranceiro, sem independência real e efetiva. À
falta disto esboroa-se todo o projeto de contenção
do Poder; em uma palavra: frustra-se, liminarmente, a concepção
de Estado de Direito (3).
Tem-se como conatural do Estado Democrático de Direito
que é inconcebível a existência de poder estatal
sem controle, ou mesmo que um deles, dentro da clássica
estrutura tripartida, seja auto-suficiente na verificação
da regularidade de sua atuação.
Constata-se, desta forma, a necessidade de controle, inerente
a toda sociedade razoavelmente organizada e policiada, e, por
isso foi que a Carta Magna de 1988, no ímpeto de exorcizar
os fantasmas de um passado autoritário, cinzelou energicamente
a estrutura do Ministério Público, elevando-o à
categoria de uma Instituição firme e com atribuições
bem delineadas, sem paralelo em qualquer outro país.
II- A MAGISTRATURE DÉBOUT COMO QUARTO PODER.
É intuitivo que como guardião da lei e da ordem
jurídica, bem como árbitro e intérprete dos
direitos da comunidade, e, ainda, erigido como instituição
constitucional, o Parquet não pode sofrer qualquer
tipo de injunção, seja de ordem política,
econômica, ou até mesmo, processual.
Ainda no século passado, o Marquês de São
Vicente, um dos nossos maiores publicistas, ao referir-se ao MP,
dizia: "independente dos governos; inimigo das injunções
e das condescendências" (Cit. por Roberto Lyra, "Teoria
e Prática da Promotoria Pública", p.65). Também
Prudente de Moraes Filho, escrevendo sobre o Ministério
Público no século passado, já dizia: "É
uma magistratura especial, autônoma, com funções
próprias. Não recebe ordens do Governo, não
presta obediência aos juízes. Age com autonomia e
em nome da sociedade, da lei e da Justiça" (cit. por
Roberto Lyra, ob. cit., p.104) .
Realmente, O Ministério Público é hoje um
órgão constitucional independente,
e toda vez que um serviço, por conveniência pública,
é erigido em instituição autônoma,
com capacidade própria de decisão, ou com a capacidade
de decidir mediante juízos ou critérios de sua própria
escolha, exclui-se-lhe a obrigação de observar ordens,
instruções, injunções ou avisos de
autoridades estranhas ao quadro institucional.
As atribuições do MP foram definitivamente cimentadas
na CF/88, onde conferiu-se-lhe a missão de proteger os
mais caros interesses da sociedade. Ora, quando toda uma nação
se serve de um poder supremo, o poder constituinte originário,
indiscutivelmente ilimitado e soberano, para outorgar a uma instituição
o mister de protegê-la, não é crível
que tenha havido mera mudança conjuntural, mas sim estrutural,
optando por uma nova configuração de poderes.
Com efeito, sendo o Ministério Público criação
posterior à teoria da separação dos poderes
e fruto da prática, destoa das linhas rígidas da
tripartição, sendo necessário refazer o modelo
existente.
Nessa conformidade, se vai processando o desenvolvimento da instituição,
de forma a autorizar ao Ministro Alfredo Valladão, em tempos
recuados, uma séria previsão:
"O Ministério Público se apresenta com a figura
de um verdadeiro poder do Estado. Se Montesquieu tivesse escrito
hoje o Espírito das Leis, por certo não seria
tríplice, mas quádrupla, a Divisão dos Poderes.
Ao órgão que legisla, ao que executa,
ao que julga, um outro órgão acrescentaria
ele - o que defende a sociedade e a lei, perante a justiça,
parta a ofensa de onde partir, isto é, dos indivíduos
ou dos próprios poderes do Estado"(4).
Também Mario Dias, em sua monumental e infelizmente pouco
lida obra "Ministério Público Brasileiro",
assevera:
"Esta, a posição indiscutível que compete
ao MP, isto é, a de Quarto Poder do Estado, ou seja: -
Poder Legal, Poder Fiscalizador, Poder Coordenador ou que outra
denominação de lhe queira dar, quando no exercício
de sua atribuição precípua de agente da lei
e fiscal de sua fiel execução; e não a de
simples 'órgão do Estado' " (Tomo I, p. 314-315).
Já nas Assembléias Constituintes de 1934 e 1946,
o assunto já era ventilado e vozes se erguiam, veementemente,
em prol da elevação do Ministério Público
à categoria de Poder.
"Na justificação da emenda n. 1.036",
registra Mario Dias, "apresentada ao ante-Projeto da Constituição
de 46, pelo ilustre constituinte Hermelindo Castelo Branco e subscrita
por nomes dos mais destacados, lêem-se ainda as seguintes
palavras de profundo alcance moral, as quais infelizmente não
conseguiram impressionar a douta Assembléia:
'Desnecessário será, por sem dúvida,
insistir-se aqui na demonstração da conveniência
em serem adotadas na nova Carta Política que se vai votar
para o país, preceitos que assegurem eficazmente a liberdade
de juízo, de pensamento e de ação
do Ministério Público.
Basta que recordemos as palavras com que os ilustres
Deputados Odilon Braga, José Alkimim e Negrão de
Lima justificaram na Assembléia Constituinte de 1934, a
emenda n. 952: - [Ao lado do Poder Judiciário, como representante
da sociedade e dos interesses que ela protege, órgão
também da lei e fiscal da sua execução, surge
o Ministério Público. O rol dos deveres que lhe
são assinalados em nossas leis de organização
judiciária é de insuperável relevância.
Nos povos de espírito comunário, tal qual
o nosso, nos quais o indivíduo é deficiente como
defensor dos interesses abstratos da coletividade, sobe de ponto
essa emissão de alta inspeção legal e
de assistência tutelar, inerente ao Ministério
Público. Este, porém, até aqui não
era um poder: era apenas uma função. O poder
é livre, autônomo, não obedece a subordinação
alguma, salvo a da Constituição. Reduzido a uma
função que se interpunha entre o Judiciário
e o Executivo, mas subordinado a este, o Ministério Público
era um órgão atrofiado e falho. Ora bem; se o cidadão
brasileiro, por sua formação comunária, deve
ser considerado um fator cívico deficiente, que tudo espera
do próprio poder público; e se, pela ordem natural
das coisas, ao Ministério Público é quem
incumbe suprir tal deficiência, que nos restava fazer? Elevá-lo,
como fez o ante-Projeto, à categoria de poder constitucional,
libertando-o da influência do Executivo e fortalecendo-o
perante o Judiciário. É o que faz a emenda]' "(id.
Ib., p. 51-52).
Infelizmente, tanto ontem como hoje, reluta-se em reconhecer o
apanágio de Poder ao Ministério Público,
libertando-o de velhas estruturas necrosadas pelo tempo e elevando-o
ao seu merecido espaço.
É que, assinala Mario Dias, o Ministério Público,
se investido das prerrogativas de verdadeiro Poder, dentro da
organização estatal moderna, seria uma espécie
de olho mecânico, indiscreto e incômodo para
a corrida desenfreada das competições inconfessáveis
que se entrechocam no hipódromo governamental (cf. "Ministério
Público Brasileiro", Tomo I, Ed. José Konfino,
Rio de Janeiro, 1955, p. 116).
Mas em que pese, todo esse caudal contrário, é de
mister reconhecer o Ministério Público como quarto
Poder da República, visto que, já reveste-se das
características e autonomia de verdadeiro poder. Será,
sem dúvida, por sua natureza, o PODER FISCALIZADOR,
incumbido da defesa da sociedade e da lei, perante a Justiça
e ainda contra os abusos, erros e falhas desta ou dos outros Poderes,
harmônica mas independentemente (cf. art. 129, II, da CF).
E nem se argumente, os que são contrário a esta
tese, de que a Teoria da Tripartição dos Poderes
de Montesquieu, inadmite a criação de outro Poder.
Ora, a Teoria do sábio francês se amparou menos em
critérios científicos e mais em necessidades práticas.
E são justamente essas necessidades práticas que
obrigam, no momento, o reconhecimento de um quarto poder estatal.
É de esperar-se que todo o Ministério Público
Brasileiro cerre fileiras em torno dessa bandeira de redenção,
erguida com tanto desassombro, contribuindo cada um dos membros
da instituição, esteja onde estiver, para a arrancada
final da unificação, como passo decisivo para o
seu entrosamento na esfera dos Poderes Constituídos da
República.
Face a inegável situação abordada no item anterior e em abono de interesses sobranceiros, não se pode interpretar o Direito, em especial, o processual, de modo a obstaculizar a defesa da sociedade, não se imagina um formalismo exagerado em detrimento da questão de fundo, pois, quando há interesses da sociedade, o intérprete tem uma singular mobilidade, visto que, os meios hermenêuticos não decorrerão de pontos de vista eventuais, mas, ao contrário, de postulados orgânicos acima de concepções precárias e transitórias, possibilitando uma efetiva tutela para a comunidade. E o Ministério Público, como órgão de defesa social, não pode ter sua atuação embaraçada por filigranas processuais e por uma legislação que foi fruto de um período de autoritarismo.
Nesta trilha, confira-se manifestação do STF, verbis:
"A custódia da lei, deferida ao Ministério
Público, não pode sofrer restrições,
na exegese de norma processual, coarctando-lhe o pleno desempenho
do ofício" (RE 92656-9-RJ, 1ª Turma, rel. Min.
Néri da Silveira, v.u., j. 3.12.l984, in Lex-JSTF
92/73).
Em prol desse entendimento podemos ver que o próprio princípio
da inafastabilidade do controle judiciário
(delimitado no art.5º, inc. XXXV, da CF), já implica,
por si só, em se considerar a existência de meios
processuais que protejam o cidadão contra todos os atos
do poder público, quer atos de administração,
quer legislativos e jurisdicionais.
A abertura da via judiciária como meio de proteger os direitos
fundamentais do cidadão deve ser concebida como uma garantia
sem possibilidade de acolher lacunas.
Nesse diapasão, assinala José Augusto Delgado:
"Destaca-se, na Constituição de 1988, a agressividade
do legislador no sentido de assegurar, de modo absoluto, a inevitabilidade
da função jurisdicional. Merece aplausos essa posição
que acentua, assim, com faceta mais potencializada, uma das consequências
da própria soberania estatal, que é a de não
permitir a qualquer cidadão que evite o jus imperii
do Estado. Este deve ser o monopolizador da justiça, sem
ser tentado, em nenhuma hipótese, a liberar para a composição
privada a possibilidade de, por meios válidos e coativos,
resolver definitivamente interesses em conflito" (id. ib.,
p. 95).
De permeio e em visceral consonância com a Suprema Corte,
não é possível o estudo e posterior aplicação
das regras jurídicas processuais que garantem os direitos
dos cidadãos, todas elevadas à categoria de direito
fundamental, apenas à luz singela da norma positiva posta
para execução, por exigir concepção
muito mais alargada, que passa, necessariamente, por uma visualização
dos princípios informativos do direito processual, por
eles serem transmissores, de modo explícito ou implícito,
das dificuldades já comprovadas de se tornarem eficazes
as normas expressivas de tais prerrogativas.
O processo é o instrumento útil posto, cuja utilização
se apóia em princípios, todos atuando com o propósito
de tornar eficazes os direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Neste contexto, a importância dos princípios é
patente, pois, após se articularem com normas de diferentes
tipos e características, passam a ser facho que ilumina
a compreensão das regras processuais constitucionais e
as de posição hierárquica inferior.
Os princípios exercem uma função prospectiva
no ordenamento jurídico, impondo sugestões para
a adoção de formulações novas ou de
regras jurídicas mais atualizadas, tudo inspirado pela
idéia de aprimoramento do direito aplicado.
O funcionamento de um sistema judiciário, diz José
Augusto Delgado, todo voltado para assegurar as garantias processuais
do cidadão não pode admitir que só exista
o direito positivo, por essa situação limitar a
função do jurista. Este necessita ter uma amplitude
maior do que aquela definida pelo direito positivo, tudo vinculado
com a precisa identificação das finalidades visadas
pela norma jurídica, especialmente, de natureza constitucional
(cf. ob.cit., p. 91).
O processo é que assegura a efetivação dos
direitos e garantias fundamentais do cidadão, quando violados,
com base nas linhas principiológicas traçadas pela
Constituição. É instrumento que o Estado
(e seus órgãos, dentre eles o Ministério
Público) está obrigado a usar e representa uma prestação
de garantia, através da qual o fundamento da norma se preserva
e são protegidos os direitos essenciais do cidadão.
É o único meio de se fazer com que os valores incorporados
pela Constituição, em seu contexto, sejam cumpridos,
atingindo o fim precípuo a que se propõem - o estabelecimento
da paz social.
Como custos legis, o MP, em função do mister,
não deve está sujeito às exigências
processuais impostas às partes comuns. Todavia, agindo
como parte, deve submeter-se ao mesmo tratamento dispensado
à parte adversa, em respeito ao princípio da
isonomia processual.
Assim, manifesta-se José Augusto Delgado:
"Inexiste, à luz do texto constitucional referido,
o tratamento diferenciado até então dado ao Ministério
Público, quando ele age como parte, com prazo ampliado
para a prática de atos processuais" (id. ib., p. 99).
Assim, deve-se dar maior resguardo aos direitos sociais, e, por
conseguinte, maiores garantias de atuação do órgão
representativo e protetor desses interesses, quando aja como tal.
IV. AUTONOMIA FUNCIONAL, ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA.
A Constituição Federal conferiu ao MP, autonomia
funcional, administrativa e financeira (cf. art. 127, §§
2º e 3º), que constituem princípios institucionais.
A autonomia ou independência funcional constitui-se na ausência
de subordinação intelectual de cada agente; havendo
substituição, o novo titular poderá agir
e opinar diferentemente do antecessor, no mesmo grau ou em recurso.
A opinião pessoal de cada um tem que ser respeitada, sem
ser nenhum obrigado a contrariar sua convicção quando
atue. Cada membro (desde o Promotor Substituto até o Procurador
Geral) só está vinculado ao imperativo da lei
e de sua consciência, esteios que dão sustentação
à independência funcional, não podendo receber
ordens ou recomendações de caráter normativo,
quando de suas manifestações, para agir deste ou
daquele modo.
"A independência funcional do Ministério Público",
sugere o Prof. Clémerson Merlin Cléve, em resumido,
porém, profícuo estudo, "constitui uma das
dimensões de sua autonomia. Os seus órgãos,
ou seja, os agentes ministeriais, os magistrados do parquet
atuam com independência. Significa, isso, que
exercem suas atribuições sempre de acordo com a
consciência do justo que guardam. A manifestação
processual do órgão do parquet, portanto,
decorrerá de sua convicção, não podendo
receber ordens de seus superiores para agir deste ou daquele
modo" ("O Ministério Público e
a Reforma Constitucional", RT 692/23)
O art. 257 do Código de Processo Penal diz que "O
Ministério Público promoverá e
fiscalizará a execução da lei",
ou em outras palavras, será o órgão
da lei e fiscal da sua execução.
Se é um órgão da lei não está
escravizado a ela. Caso contrário, seria então,
apenas, declaradamente fiscal da sua execução, e
nada mais. Mas, justamente, porque não é apenas
o fiscal da sua execução, mas é também
o órgão da própria lei, é que na sua
observância não procede com a passividade subalterna
dos fiscais apenas, mas, ao contrário, conserva o seu coeficiente
irredutível de personalidade e autonomia.
O Ministério Público pode e deve discutir
a lei, de que não é apenas executor, mas órgão,
fiscal, aplicador esclarecido e consciente. A atividade ministerial
não é meramente reflexa, mas indutora e reguladora.
Assim é que, no seu livre convencimento e apreciação
(dentro, porém, dos limites já tracejados), os membros
da magistrature débout podem dar a dimensão
do justo à lei a ser aplicada.
O representante do Ministério Público está
comprometido só, tão-somente, com a ordem jurídica,
com o regime democrático e com os interesses indisponíveis
da sociedade, definidos na Constituição e nas
leis. Em momento algum, deve esse membro vergar ao peso das pressões
políticas, quer sejam intra ou extra-institucionais. E,
naturalmente, não basta ser honesto(5): isso é pressuposto
e não qualidade. É preciso ser um homem inteiro
e independente, sem compromisso senão com a lei e sua consciência,
capaz, portanto, de exercitar contra quem quer que seja os poderes
que a lei lhe conferiu. Do contrário, não será
um Promotor de Justiça, e sim, um promotor do nada a
opor, do nada a requerer, do pelo prosseguimento.
Este é, em regra, o promotor bonzinho, sorridente, popular(6),
amigo de todos, especialmente dos poderosos. Aquele é visto
com malquerença e antipatia.
Acontece, via de regra, que os atos destemerosos de membros do
Ministério Público inspirados por estimulante consciência
profissional, alavancam o desdém dos desfibrados que não
compreendem como o dever possa levar um homem ao sacrifício.
De plano, acorrem os "experimentados" com os astutos
conselhos da conveniência e do comodismo, diminuindo o valor
da atitude sobranceira.
É que não há, - diz o inolvidável
Roberto Lyra - entre nós, forças sociais organizadas
para amparar, eficientemente, as iniciativas da equidade e executar,
no terreno firme das sanções práticas, os
caros princípios porque damos sangue.
Nós precisamos criar, - continua o mestre - também
essa mentalidade coletiva. Só assim reuniremos os meios
que assegurem a exequibilidade das leis justas. Com a educação
jurídica do povo e a vigilância de sua soberania,
assim esclarecida, contra o arbítrio do Estado e a irresponsabilidade
do Poder, ter-se-á servido, sobretudo, à eficiência
da missão política do Ministério Público"
(ob. cit., p. 103).
O Promotor de Justiça deve ser um homem das inquietudes,
das inconformidades com a própria vida e a vida dos outros.
Deve ser um homem de ideais sem limites, almejando arrebatar a
glória da unidade nas verdadeiras soluções
e não em acomodações. Deve agir com aquele
calor, desassombro e bravura indispensáveis aos defensores
do interesse público e da lei e que são qualidades
tão chocantes para os que atingindo certo nível
julgam-se no vértice de uma pirâmide e passam a querer
um mundo arrumadinho em compartimentos estanques, onde tudo são
reverências dos de baixo para os de cima, uma espécie
de democracia de plano vertical.
As nações democráticas precisam libertar-se
de suas concepções estáticas e defensivas
e imbuírem-se de espírito dinâmico de ataque
e conquista. Neste sentido, o Ministério Público
muito pode fazer. Ele é a guarda avançada da Democracia,
que procura resolver os problemas através da lei. Aos seus
membros cabe uma atitude ativa e dinâmica de verdadeiros
magistrados de pé (daí os franceses denominarem-nos
de magistrature débout). Sim. De pé em cumprimento
do dever; de pé para defender o povo; de pé para
atacar o malvado e mentiroso; de pé para reprimir o violento,
combater o corrupto e proteger o homem pacífico. De pé
em luta pelo Direito. De pé para servir à Justiça
e buscá-la. De pé para o triunfo da verdade.
Não há nada mais angustiante para os que dependem
da fortaleza do Ministério Público do que o membro
do MP medroso ante o Poder e seus detentores. Aquele que ao atuar
(dando pareceres, oferecendo denúncias, propondo Ações
Civis Públicas), avalia cuidadosamente as reações
políticas que seu posicionamento provocará na cúpula
ministerial, pesando os efeitos que poderá ter em suas
futuras promoções e nomeações, não
merece ser chamado de Promotor de Justiça ou Procurador
de Justiça, em sua elevada e nobre acepção,
mas, com certeza, receberá o epíteto de mero funcionário
público burocrático, mediocrático e arrivista
ou bedel ministerial.
A propósito disso, no ângulo do que se expõe,
aplausos são expedidos para o Promotor Público Carlos
Sussekind de Mendonça, que nos idos de 1927, proclamou
as seguintes palavras, cristalizando, com maestria, o nosso pensamento:
"Há cargos que representam, por si sós, um
prêmio, e que não pedem dos que o ganham mais que
o cuidado fácil de guardá-los. São assim
as sinecuras do funcionalismo cômodo, dos extranumerários,
dos adidos, dos comissionados. O Ministério Público,
entretanto, se afasta inteiramente destes casos. Qualquer dos
seus lugares é um posto de constante sacrifício,
de conquista diária à opinião, de disputa
sem tréguas contra a malícia da advocacia, contra
as reservas dos juízes, contra a ambição
naturalíssima dos seus próprios colegas(...). Se
o ocupante é digno do cargo, se está na altura de
exercê-lo, moral e intelectualmente, não sabemos
de ensancha mais própria aos surtos rápidos no Foro.
Se não o é, porém, sucumbe, arreia, cai por
força - e cai do pior modo, aos poucos, dia a dia"
(cit. por Roberto Lyra, ob.cit., p.65).
Para honra e mérito do Ministério Público
Brasileiro, de inúmeros casos sabemos, em que, dignos representantes
da classe, em obscuras e remotas comarcas do interior, principalmente,
têm sido vítimas de interesses escusos, justamente,
por possuírem aquele calor, desassombro e
bravura, pela sua inflexibilidade dorsal e por haverem
lançado mão de recursos viris e desassombrados na
defesa dos interesses primários da sociedade.
Há, infelizmente, exemplos de subserviência, por
parte de raros representantes do Ministério Público,
por motivos que não calha analisar e mencionar, porém,
daí não se pode concluir que toda a nobre classe
padeça da mesma fraqueza.
Por isso que, o objetivo declarado (e isto não constitui nenhum segredo) da elevação da independência funcional à categoria de preceito constitucional, foi o de obstar que os membros do MP de início de carreira (Promotores Substitutos ou Adjuntos) ou de entrância inferior, sofressem qualquer tipo de injunção (como, lastimavelmente, na prática sói acontecer, apesar do princípio em comento) por parte, primeiro, de órgãos e poderes estranhos, e segundo, dos próprios órgãos da instituição, como Procuradoria Geral de Justiça ou da Corregedoria Geral, órgãos singulares da administração superior do MP; e também dos órgãos colegiados (Conselho Superior e Colégio de Procuradores). Esta garantia não é só para o órgão e sim para a sociedade, final destinatária de sua atuação.
Assim, nem mesmo o Procurador-Geral, Chefe da Instituição,
nem o Corregedor Geral do Ministério Público, designado
por aquele, nem o Colégio de Procuradores, nem o Conselho
Superior, que fiscaliza e superintende a atuação
do órgão, podem impor um procedimento funcional
a qualquer membro da Instituição, quando muito,
podem fazer recomendações sem caráter normativo
ou vinculante (cf. art.10, inc.XII, da Lei n. 8.625/93 - LONMP).
Exsurge, portanto, que salvo sob a ótica administrativa,
não há hierarquia entre os membros do parquet.
Infelizmente, restam mecanismos que sobreviveram ao princípio
constitucional da independência funcional e que aguilhoam-no
inexoravelmente: a famigerada promoção por merecimento.
Basta, tão-somente, que o membro não satisfaça
aos pruridos de vaidade da cúpula, para ver-se promovido
somente pelo critério de antigüidade. Portanto, o
Promotor que não rezar pela cartilha (e isto significa
submissão, antônimo de independência) do grupo
dirigente, terá irremediavelmente sua carreira profissional
prejudicada.
Veja-se, ainda, que o Ministério Público mesmo estando
revestido de inúmeras garantias, não tem o autogoverno,
pois, o órgão máximo é escolhido pelo
Executivo, diferentemente do que ocorre no Judiciário ou
nos Tribunais de Contas, o que de certa forma coloca o Procurador-Geral
como representante de interesses estranhos à instituição
e põe a perder o alcance prático de todas as outras
garantias.
Desse modo, diz Mazzilli, "o procurador-geral dependerá
de seu estofo moral e funcional para dirigir com independência
o Ministério Público" ("Regime Jurídico
do Ministério Público", p.133).
Em alguns Estados, o Procurador-Geral de Justiça tem tantos
poderes, que a respectiva Lei Orgânica é pleonástica,
repetitiva e hiperbólica ao atribuí-los. Obviamente,
que com esta hipertrofia, o legislador (o Projeto de Lei, normalmente,
é redigido por membros do Ministério Público)
teve em mira viabilizar o MP, querendo fortalecer a chefia. Todavia,
isso gera efeitos colaterais maléficos (tout homme qui
a du pouvoir est porté à en abuser - Monstesquieu)
e contribui para o nascimento de grupos ideológicos no
MP, que tendem à formação de consenso para
manter hegemonias e privilégios. Estes grupos, que formam
verdadeiras castas impenetráveis e preconceituosas, tendem
a dominar a Instituição, influenciando e estabelecendo
as decisões à sombra da lei e com a aparência
de Justiça, concentrando o poder de forma sutil, às
vezes, escancaradamente boçal. São partidos internos,
que exercem um controle interno, não institucionalizado
mas efetivo, de forma antidemocrática e tirânica.
Dessa estruturação institucional, mesmo bafejada
pelo hálito revigorante da CF/88, decorre, não raro,
a vitória da força, não menos bruta por se
exprimir pela língua do que o seria se se manifestasse
pelos músculos, com sensíveis prejuízos ao
desempenho institucional como um todo.
Assim, enquanto o Ministério Público não
conseguir ter o autogoverno, podendo escolher o seu próprio
Procurador-Geral, jamais conseguirá libertar-se da perniciosa
tutela do Poder Executivo.
Já a autonomia administrativa, dando continuidade ao nosso
estudo, significa, no dizer de João Mendes Júnior,
direção própria daquilo que é próprio
(7), e segundo Hely Lopes Meirelles "é a faculdade
de gestão dos negócios da entidade ou do órgão,
segundo as normas legais que o regem, editadas pela entidade estatal
competente. Não se confunde com autonomia política,
que é a prerrogativa de editar suas próprias normas
e aplicá-las na sua organização e nas suas
atividades, segundo os preceitos constitucionais e as leis superiores
que instituem a entidade e delimitam a sua atuação.
Por isso mesmo, a autonomia política só é
concedida às entidades estatais - União, Estados-membros
e Municípios- ao passo que a autonomia administrativa pode
ser atribuída a qualquer órgão ou entidade,
que em razão de seus objetivos deva gerir com mais liberdade
os seus negócios, ficando apenas vinculado (não
subordinado) ao Poder que o instituiu" (cit. por Mazzilli,
"Regime Jurídico do Ministério Público",
p.94).
E o mesmo autor conceitua autonomia financeira como sendo "a
capacidade de elaboração da proposta orçamentária
e de gestão e aplicação dos recursos destinados
a prover as atividades e serviços do órgão
titular da dotação. Essa autonomia pressupõe
a existência de dotações que possam ser livremente
administradas, aplicadas e remanejadas pela unidade orçamentária
a que foram destinadas. Tal autonomia é inerente aos órgãos
funcionalmente independentes, como são o Ministério
Público e os Tribunais de Contas, os quais não poderiam
realizar plenamente as suas funções se ficassem
na dependência financeira de outro órgão controlador
de suas dotações orçamentárias"
(cit. por Mazzilli, ob.cit.supra, p.94).
A autonomia financeira do Ministério Público não
o dispensa de suportar o natural controle externo do Tribunal
de Contas, além do sistema de controle interno instituído
em cada Lei Orgânica Estadual (cf. arts. 3º, §único
e 4º, §2º, da Lei nº 8.625/93).
Registre-se, por oportuno, que mesmo o constituinte não
utilizando a expressão "autonomia financeira",
como fez em relação ao Judiciário (art. 99,
CF), o Ministério Público a tem, porque a idéia
já está contida, por inteiro, na norma do art. 127,
§3º, visto, ainda, que o teor é o mesmo do dispositivo
constitucional (§1º do art. 99) que pincela a prefalada
autonomia financeira do Judiciário.
O Ministério Público, assim como o Judiciário,
não possui recursos financeiros próprios. Mas, na
elaboração da proposta orçamentária
global, ambos esses órgãos têm a iniciativa
exclusiva de determinarem os recursos necessários a atender
às próprias despesas, que são formuladas
com base em critérios e prioridades por eles próprios
estabelecidos. O Executivo, incumbido de compor o projeto final
de orçamento, está constitucionalmente obrigado
a respeitar essas propostas parciais exclusivas, dentro dos limites
gerais fixados pela lei de diretrizes orçamentárias,
segundo determina a Constituição.
Respeitados esses limites, o Ministério Público
tem o poder exclusivo de elaborar a sua proposta orçamentária,
sendo vedado ao Executivo alterá-la, ainda que minimamente.
V. O PODER DE INICIATIVA LEGISLATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
E A REMUNERAÇÃO DE SEUS MEMBROS.
O poder de iniciativa de leis de modo geral, visa a garantir a
autonomia de seu titular. Sem esta atribuição ou
desde que ela seja exclusiva de um dos ramos do poder ( o Legislativo,
pelas suas duas Casas, e o Executivo), os outros ficariam paralisados,
enervados e dependentes de uma vontade e impulsão estranhas.
Sem ela não há meio eficaz de reformar os abusos,
nem emulação nobre, respeito, vigor e coordenação.
A garantia da autonomia dos Poderes e de instituições
amantaladas com este apanágio, para ser completa, exige
a exclusividade do direito de iniciativa em certas matérias.
Daí a conclusão de que sem o poder de iniciativa
legislativa, não há autonomia.
O Ministério Público está hoje dotado, constitucionalmente,
de poderes próprios de iniciativa, em matéria de
leis. Iniciativa privativa em alguns casos, concorrente em outros.
Compete-lhe, privativamente, "propor ao Poder Legislativo
a criação e extinção de seus cargos
e serviços auxiliares" (CF, art. 127, §1º
). Dispõe, por outro lado, de iniciativa concorrente da
Lei Orgânica do Ministério Público da União
e dos Estados (art. 128, §§2º e 5º, CF).
A proposta legislativa (qualquer que seja a matéria) oriunda
do Ministério Público deve ser dirigida diretamente
ao Legislativo. Pois, como registrou Pontes de Miranda em comentário
a dispositivo análogo da Constituição anterior,
referente ao Judiciário, "qualquer remessa por intermédio
do Poder Executivo será extraconstitucional, em escusado
gesto de cortesia"(8).
A norma do art. 127,§2º da CF reserva ao MP o poder
de propor ao legislativo "a criação de seus
cargos e serviços auxiliares", sem maiores especificações.
Já o art. 96, II, "b", confere aos Tribunais
de Justiça o poder de "propor ao Poder Legislativo
respectivo, observado o disposto no art. 169, a criação
e a extinção de cargos e a fixação
de vencimentos de seus membros, dos juízes, inclusive dos
tribunais inferiores, onde houver, dos serviços auxiliares
e os dos juízos que lhe forem vinculados". Com isto,
cogitar-se-ia que o Ministério Público, diversamente
do Judiciário, não possui a atribuição
constitucional de propor os vencimentos correspondentes aos cargos
de carreira?
Claro que não! A tessitura normativa da Constituição
não se interpreta em tiras, mas, sistematicamente, perscrutando
todos os meandros do ordenamento jurídico. Ora, o vencimento
é um dos elementos conceituais de cargo público,
além da denominação própria, o número
certo e as atribuições correspondentes. Destarte,
a proposta de criação de cargos públicos
que não contemplasse o vencimento seria logicamente inepta,
por lacunosa em elemento essencial à conceituação
do conteúdo da matéria proposta.
Diante disso, despiciendo o constituinte dizer que quem tem o
poder de propor a criação de cargos tem também,
implicitamente, o poder de propor a sua remuneração.
Registre, por seu turno, que se o MP não tivesse o poder
de fixar os vencimentos de seus membros e funcionários,
a sua prefalada autonomia, não passaria de pura retórica,
sem efetividade na prática.
Outra questão que se impõe neste campo é a que concerne ao aumento de vencimentos dos cargos já criados. Tem o Ministério Público o poder de propor esta matéria?
O art. 61, §1º, da CF, reconhece que são de iniciativa
privativa do Presidente da República "as leis que
disponham sobre criação de cargos, funções
ou empregos públicos na administração direta
e autárquica ou aumento de sua remuneração".
Pelo princípio da simetria aplicar-se-á esse dispositivo
aos Estados federados. Assim, o MP estaria impedido de propor
a majoração dos vencimentos de seus membros e serviços
auxiliares?
Não! Se o Ministério Público pode propor,
com exclusividade, a criação de cargos e fixação
dos vencimentos, algo que administrativa e financeiramente, é
mais amplo do que a proposta de reajuste, com maior razão
poderá propor este, visto que, quem pode o mais está,
de pleno direito, habilitado a querer e dispor sobre o menos.
Conclusão contrária a acima apontada, importaria
na quebra da autonomia ministerial, bem como numa ruptura no sistema
de freios e contrapesos, tão bem elaborado pela Constituição.
Vê-se, ainda, que o art. 61, §1º, II, "a",
da CF, aplicando o princípio da simetria, não autoriza
o Chefe do Executivo Estadual a propor medida alguma referente
a vencimentos de funcionários que não pertençam
aos quadros do Executivo. O que é o caso do Ministério
Público.
Portanto, não restam dúvidas. O poder de iniciativa
das leis que majorem os vencimentos do MP (membros e serviços
auxiliares), é exclusivo do próprio Ministério
Público. Ademais, de lege lata, já se pôs
um pá de cal na discussão, visto que, a Lei n. 8.625/93
(LONMP) reza em seu art.3, incs.V e VI, que cabe ao Ministério
Público propor ao Poder Legislativo a criação
e a extinção de seus cargos, bem como a fixação
e o reajuste dos vencimentos de seus membros e serviços
auxiliares.
Por fim, é relevante registrar, que seguindo essa linha,
inúmeras leis complementares estaduais do MP, dispõem
concretamente sobre fixação e reajustes de vencimentos,
atribuindo, abertamente, iniciativa privativa ao próprio
MP. São exemplos: Lei Orgânica do Ministério
Público do Estado de Roraima - LC nº 003/94, art.
2º, VI; Lei Orgânica do Ministério Público
de Minas Gerais - LC nº 34, de 12 de setembro de 1994, art.
18, IV ( esta lei inovou ao conferir o poder de propor ao Legislativo
a fixação, a revisão, o reajuste
e a recomposição dos vencimentos dos membros
e servidores); Lei Orgânica do Ministério Público
da Bahia - LC nº 11, de 18 de janeiro de 1996, art. 2º,
inc. V; Lei Orgânica do Ministério Público
de Mato Grosso - LC nº 27, de 19 de novembro de 1993, art.
2º, V.
VI. O DEFENSOR DO POVO ("OMBUDSMAN").
No propósito de alargar as atribuições ministeriais
e promover a cidadania, vamos encontrar no inciso II do
art. 129,da CF, o encargo de Ombudsman ou Defensor do
Povo, impondo ao Ministério Público o zelo pelo
efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços
de relevância pública aos direitos assegurados na
Constituição, com a obrigação de promover
as medidas necessárias a sua garantia.
Vê-se, que a Constituição não utilizou
o termo ombudsman, convencionalmente chamado de Defensor
do Povo. Todavia, a destinação ínsita no
dispositivo constitucional acima, dá-lhe essa natureza,
independentemente da denominação que receba. Em
verdade, tecnicamente o texto constitucional é falho, pois
nos incisos de um artigo pincela os atributos do ombudsman,
mas no caput não o especifica.
Vale ressaltar, que no Brasil, a preocupação e o
interesse em relação ao controle da Administração
Pública deram azo a inúmeros debates doutrinários,
que desembocaram na Assembléia Nacional Constituinte de
1987/1988, na proposta de criação da figura jurídica
do Ombudsman.
A inspiração da proposta de criação
da Defensoria do Povo teve como fontes imediatas os precedentes
da Constituição espanhola de 1978 (que instituiu
a figura de el defensor del pueblo, em seu art. 54) e da
Constituição portuguesa de 1976, revista em 1982
(que acolheu o provedor de justiça, arts. 24 e 23, respectivamente).
Ocorre, porém, que "nos trabalhos da Constituinte,(...)
confiou ela na instituição do Ministério
Público, já organizada em carreiras em todo o País:
melhor seria carrear-lhe as funções e os instrumentos
para que assumisse novos e relevantes encargos, totalmente compatíveis
com sua própria destinação. Conferiu-lhe,
pois, notável crescimento, especialmente quanto às
suas funções. Embora sem tornar-lhe evidentemente
privativa a defesa dos direitos nela assegurados, conferiu ao
Ministério Público a tarefa do defensor do povo,
ainda que desta expressão não se tenha
valido (CR, art. 129, II) (grifei)"(9).
Não se reconhecia, à época, a necessidade
de criação de novos organismos burocratizados do
Estado para o mister de defensor do povo, cabendo
naturalmente a função de ouvidor ou de defensor
do povo ao próprio Ministério Público, já
organizado em carreira em todo o País.
Com efeito, o parquet está devidamente estruturado
para o exercício dessa atribuição, mormente
através do atendimento ao público.
O instituto jurídico do ombudsman incorporado
pelo Ministério Público (CF, art.129, II), tem sua
máxima função no controle, por assim dizer,
dos diversos controles (parlamentar ou político, administrativo
e judiciário), atinente aos três Poderes, sobretudo
ao Poder Executivo (Administração Pública).
Em miúdos, objetiva remediar lacunas e omissões,
bem como, assegurar que os Poderes Públicos respeitem as
regras assentadas e não se imiscuam nos direitos e liberdades
públicas dos cidadãos.
A referência à expressão "Poderes Públicos",
no preceptivo constitucional (art. 129, II), foi utilizada para
acentuar a existência dos órgãos Executivo,
Legislativo e Judiciário (denominados "Poderes Constituídos"),
visto que, o Poder, em seu aspecto substancial, é uno e
indivisível.
Os três "poderes" realizam respectivamente controles
específicos: 1- controle administrativo; 2- controle judiciário;
3- controle político. Estas espécies de controle,
todavia, apresentam entre si separação excessivamente
rígida e insuficiências.
O controle parlamentar da Administração, por sua
natureza política, sempre deixa de penetrar em várias
zonas cinzentas, não previstas pelos textos legais, bem
como não penetra em situações concretas de
omissividade ou negligência dos agentes públicos.
O controle jurisdicional é também insuficiente,
por sua natureza casual e individualizada, porquanto depende de
provocação de parte interessada. O controle administrativo
interno, por sua vez, exatamente por remanescer ao alvedrio de
autoridades públicas da Administração ativa,
é frequentemente menosprezado, quando não solapado.
Em função, exatamente, da insuficiência dos
diversos controles, fez-se necessário o surgimento de um
órgão que se encarregasse do controle residual,
buscando associar as vantagens das diversas espécies de
controle.
Há situações em que não é cabível
o exercício legal de qualquer espécie de controle,
seja parlamentar, judicial ou administrativo, precisamente porque
há casos concretos, de natureza discricionária,
que refogem a qualquer dos tipos de controle interno ou externo:
para tais casos concretos, o contrasteamento jurídico,
somente pode ser realizado eficazmente por intermédio do
Ombudsman.
O ouvidor do povo supre e supera a rigidez
granítica, a limitação e as deficiências
eventuais das outras espécies de controle.
Nessa relevantíssima função, entre outras
providências, deve o Ministério Público empreender
firme combate à violação da ordem social
e dos direitos humanos, adotando, por exemplo, as seguintes providências,
que também constituem meios de atuação:
1- buscar seja dado real atendimento nos hospitais e postos de
saúde;
2- fiscalizar a existência de vagas nas escolas;
4- receber petições, notícias de irregularidades,
reclamações ou representações de qualquer
pessoa ou natureza, por desrespeito aos direitos assegurados nas
Constituições Federal e Estadual;
5- instaurar e presidir sindicâncias e Inquéritos
Civis Públicos para apuração dos fatos e
postulações que lhes sejam apresentados, promovendo
inspeções e auditorias em órgãos públicos,
quando houver indício de prática de conduta delituosa,
notadamente atos de improbidade, ou quando for conveniente à
apuração dos fatos; neste mister, pode, ainda, requisitar
meios materiais e servidores públicos, por prazo razoável,
para o exercício de atividades técnicas ou especializadas;
6- promover diligências e requisitar informações
e documentos de quaisquer dos Poderes, órgãos ou
entidades, no âmbito estadual e municipal, bem como de concessionários
ou permissionários de serviço público estadual
ou municipal, e ainda entidades que exerçam função
delegada do Estado ou Município, ou executem serviços
de relevância pública, podendo os membros do parquet
dirigir-se diretamente a qualquer autoridade;
7- expedir notificações e requisitar o auxílio
dos órgãos de Segurança Pública, para
garantia do cumprimento de suas atribuições;
8- promover seminários e campanhas de conscientização
dos servidores públicos e da comunidade no sentido de que
todos se engajem na fiscalização dos órgãos
públicos e serviços de relevância pública,
pugnando pelo respeito aos princípios de legalidade e moralidade
administrativa;
9- realizar audiências públicas com entidades da
sociedade civil ou seus representantes legais;
10- propor a adoção de medidas de caráter
administrativo, visando ao aprimoramento e saneamento do serviço
público;
11- manter contatos com entidades e organismos que tenham por
finalidade o combate a atos de corrupção e de improbidade
administrativa, objetivando o estabelecimento de linhas de atuação
conjunta e de mecanismos de apoio recíproco (cf. Res. n.
529, de 10.12.92, da PGJ-RJ).
12- sugerir ao poder competente a edição de normas
e a alteração da legislação em vigor,
bem como a adoção de medidas propostas, destinadas
à prevenção e controle da criminalidade,
como, ainda, para adequá-las a eventuais direitos assegurados
constitucionalmente (cf. art. 26, VII, da Lei nº 8.625/93
- LONMP).
Comensurando-se as colocações acima, fácil
é concluir que o Direito vivo não é composto
de normas, mas antes de realidades sociais normatizadas ou antes,
é valor incorporado em regra, cada qual com sua própria
identidade. E o Ministério Público como guardião
da ordem jurídica e do regime democrático deve amoldar-se
a tais balizamentos para incorporar verdadeiramente esse perfil
de ombudsman conferido-lhe pela Constituição
Federal.
Notas ao texto
1- Cit. por Petrônio Maranhão Gomes de Sá,
"As Funções Constitucionais do Ministério
Público Federal", Repro 32/280;
2- A manutenção da liberdade do indivíduo
impõe que o poder restrinja o poder, limitando sua atuação
nos estritos lindes da lei. Daí a fundamental e primacial
relevância do princípio da separação
dos poderes, um tema já legível em Aristóteles,
retomado por Locke e reformulado com maior eficácia por
Montesquieu. Foi ele quem fomentou o mecanismo de controle do
poder pelo próprio poder consistente na divisão
dos poderes por funções e coordenadamente, em que
cada um fiscalizaria a atuação do outro, sistema
batizado pelos americanos de "cheks and balances" ou
de freios e contrapesos. Dizia o genial francês que "c'est
une expérience éternelle, que tout homme qui a du
pouvoir est porté à en abuser; il va jusqu'à
ce qu'il trouve des limites" ("De l'esprit des lois").
A concepção de Montesquieu funda-se no fato de que
quem faz as leis não deve aplicá-las; quem as aplica
não as faça nem as julgue; e quem as julgue, não
deve elaborá-las, nem executá-las.
Assim, o poder do Estado, para que não se torne abusivo,
tem de ser dividido e distribuído de tal sorte que a independência
recíproca e especialização numa das funções
básicas dos que contam com frações de soberania,
impeça que qualquer um possa oprimir a quem quer que seja.
O poder, portanto, se divide em poderes que são, em última
análise, órgãos independentes e relativamente
especializados do Estado (Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
"Do Processo Legislativo", Ed. Saraiva, 3ª ed.,
1995, p.107).
3- Celso Antônio Bandeira de Melo, "Sobre a Magistratura
e o Ministério Público no Estado de Direito",
RDP 68/144;
4- Roberto Lyra, "Teoria e Prática da Promotoria Pública",
Ed. Sérgio Antônio Fabris, II ed., 1989, p.15;
5- José Ingenieros, filósofo argentino, em seu livro
O Homem Medíocre, abordando a honestidade,
disse: "Entre o vício, que é uma tara, e a
virtude, que é uma excelência, flutua a honestidade".
E em outra oportunidade, concluiu: "A honestidade é
uma imitação; a virtude é uma originalidade".
Concluímos, então, que a honestidade, pura e simples,
é uma impotência para a virtude e, covardia para
o vício, flutuando, então, no limbo da mediocridade.
6- O famoso escritor inglês Oscar Wilde, dá-nos a
exata dimensão do que é ser popular: "Todos
os bons chapéus são feitos do nada... E também
a boa reputação. Todo efeito que produzimos
nos proporciona um inimigo. Quem quer ser popular, tem que ser
uma mediocridade (destaquei)" ( "O Retrato de
Dorian Grey", Ed. Francisco Alves, 3ª ed., Trad. de
José Eduardo Ribeiro Moretzsohn, p. 153).
7- Cit. por Fábio Konder Comparato, "Ministério Público - Orçamento, iniciativa - Remuneração dos seus Membros - Autonomia do Órgão", RDP 93/62;
8- Pontes de Miranda, "Comentários à Constituição
de l967 com a Emenda n. 1 de 1969", Tomo III, Ed. RT, São
Paulo, 1970, p.166).
9- Hugo Nigro Mazzilli, "Manual do Promotor de Justiça",
Ed. Saraiva, 2ª ed., 1991, p.113;