O MINISTÉRIO PÚBLICO: PRINCÍPIOS, ATRIBUIÇÕES E SEU POSICIONAMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O MINISTÉRIO PÚBLICO: PRINCÍPIOS, ATRIBUIÇÕES E SEU POSICIONAMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.


JOÃO GASPAR RODRIGUES

Promotor de Justiça em Roraima




SUMÁRIO: I. A Institucionalização do Ministério Público; II. A Magistrature Débout como Quarto Poder; III.O Ministério Público Face ao Processo; IV. Autonomia Funcional, Administrativa e Financeira; V. O Poder de Iniciativa Legislativa do MP e a Remuneração de seus Membros; VI. Ombudsman - Defensor do Povo.



I. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.

As Constituições Federais que antecederam a de 1988, omitiram-se de definir o Ministério Público, onde, diga-se de passagem, nunca ocupou lugar específico. É sabido, ainda, por todos que se ocupam do estudo sistemático do Ministério Público o grande desconhecimento que reina em torno desta Instituição, que só agora começa a ganhar merecido realce, mercê da posição de relevo que a Constituição Federal de 1988 lhe conferiu.

A primeira Constituição do Brasil, a de 1824, nem mesmo se referia à instituição, tão só mencionava (art.48) vagamente a existência de um Procurador da Coroa e Soberania Nacional ao qual incumbia proceder a acusação "no juízo dos crimes".

Em 1828, pela Lei de 18 de setembro, foi criado o cargo de Promotor de Justiça para ter exercício perante as Relações e os diversos juízos das comarcas. Mas o Aviso de 16 de janeiro de 1838, foi, por assim dizer, o verdadeiro ato precursor, no Brasil, da finalidade máxima e característica da instituição, considerando os Promotores como "fiscais da lei".

Todavia, a expressão Ministério Público só veio a ser mencionada no Brasil, segundo as pesquisas realizadas por Abdon de Melo e ratificadas por José Henrique Pierangelli, inicialmente, no art. 18 do Regimento das Relações do Império, datado de 2 de maio de l847(cf. Jersey de Brito Nunes, "O Ministério Público, Ontem - Hoje", p. 03).

Na Constituição de 1891 tocou-se apenas na figura do Procurador-Geral da República, que seria um Ministro do Supremo Tribunal Federal indicado pelo Presidente da República e "cujas atribuições se definirão em lei".

A Constituição de 16 de julho de 1934, efetivamente institucionalizou o Ministério Público, ficando no Capítulo VI, do seu Título I (arts. 95 a 98: "Dos órgãos de cooperação nas atividades governamentais), referente à "organização federal". Esta constituição previa, ainda, que lei federal organizaria o Ministério Público na União, no Distrito Federal e nos Territórios, e que leis locais organizariam o Ministério Público nos Estados (art. 95).

"A partir da Carta Magna de 1934", diz o Prof. Alcides de Mendonça Lima, "a corporação vem adquirindo posição institucional de relevo no texto e em leis especiais" ("Atividade do Ministério Público no Processo Civil", Revista de Processo, 10/64)

Nessa Carta Política se prevê apenas a organização do Ministério Público na União, no Distrito Federal e nos Territórios, tendo ficado aos Estados a faculdade de legislarem livremente sobre o assunto.

Daí a diferenciação fundamental e a falta de unidade reinantes nas diversas leis de organização judiciária do país, na vigência daquela Constituição, relativamente à Instituição do Ministério Público, não só quanto ao provimento dos respectivos cargos, como quanto à natureza das funções, amplitude de atribuições, garantias e deveres.

Note-se, an passan, que na época, por se entender que o MP estava subordinado ao Judiciário, as disposições legais atinentes à instituição vinham nos Códigos de Organização Judiciária, e não em lei especial. Tanto que, atentando para o fato, o 1º Congresso do Ministério Público, realizado em São Paulo, em 1942, recomendou a elaboração de leis de regência do MP, separadamente das leis de organização judiciária.

Quanto ao provimento, em muitos Estados as nomeações eram feitas livremente, pelo governo, não obstante a exigência constitucional de concurso, para o Ministério Público Federal.

Quanto à natureza das funções, os representantes do Ministério Público eram considerados como "órgãos do Poder Judiciário", meros "auxiliares da administração da Justiça", ou ainda como "agentes do Poder Executivo".

Quanto à amplitude de atribuições, dada a grande dificuldade de estabelecer-se nitidamente um critério diferencial entre o que constituía matéria de organização judiciária e matéria de ordem processual, Estados havia que, exorbitando de sua competência legislativa, cometiam aos representantes do Ministério Público, atribuições não previstas nas leis de processo.

Finalmente, quanto às garantias de estabilidade, promoções, vencimentos e outras mais, vários eram os critérios, dada a ausência de princípios constitucionais expressos, reguladores da matéria.

Essa situação caótica e altamente prejudicial à instituição, mais se agravou durante o regime ditatorial que por largos anos imperou no Brasil.

Assim, na Carta de 1937, outorgada, desaparece o Ministério Público, mandando o art. 99 que para Procurador-Geral recaia a escolha "em pessoa que reúna os requisitos exigidos para Ministro do Supremo Tribunal Federal". Essa Carta sequer se dignou tomar conhecimento do importante órgão defensor da sociedade, senão de maneira genérica, sem fixar-lhe expressamente as bases de sua estrutura institucional.

A Constituição de 1946 restituiu a dignidade da instituição dispensando-lhe um título autônomo, sem dependência aos poderes da República e com estrutura federativa (MP estadual e MP federal). Seus membros ganham estabilidade (art.127), ingresso só por concurso (art.127), promoção na carreira (art.128).

A Carta de 46, estabeleceu em seu art. 127, sumariamente, que o ingresso nos cargos iniciais da carreira do Ministério Público, seria feito "mediante concurso", sem quaisquer outros requisitos quer para a inscrição, quer para a natureza e as bases do concurso, quer quanto à comissão examinadora.

Daí decorreu a diversidade de critérios adotados pela legislação ordinária e pelas Constituições dos Estados, referente à regra constitucional.

É interessante observar-se, também, que relativamente à promoção, a Lei Básica de 1946 somente se referiu quanto ao Ministério Público dos Estados (art. 128). Quanto ao Ministério Público da União, do Distrito Federal e dos Territórios, nenhuma referência explícita à promoção continha o art. 127, que dispunha sobre a matéria.

Dir-se-á que tendo sido instituído em carreira, ao MP, implicitamente, estaria garantido o direito à promoção. Mas neste caso, desnecessário seria o disposto na parte final do art. 128 que acrescentava aos preceitos do artigo anterior "mais o princípio de promoção de entrância a entrância".

Nas constituições posteriores, o Ministério Público ficou agregado, aqui e acolá, como um penduricalho, do Judiciário (1967) e do Executivo (1969), de modo geral, sem independência funcional, financeira e administrativa, com vigor apenas para manter a engrenagem do sistema funcionando, inane para alçar vôos mais edificantes.

Alguns autores, a exemplo de Pontes de Miranda, face à topografia constitucional, chegaram a designar esse órgão de ramo heterotópico do Poder Executivo (1).

De fato, não tem havido constância nas disposições sobre o MP em nossas várias Constituições. Apareceu como um "órgão de cooperação das atividades governamentais" (1934); em dispositivos esparsos (1937); título autônomo (1946); no capítulo do "Poder Judiciário" (1967, texto originário) e no "Poder Executivo" (1969).

O Prof. Jersey de Brito Nunes, em interessante trabalho histórico sobre o Ministério Público, focalizando a evolução institucional do MP, diz o seguinte:

"Pelo que consta das Constituições sobre as quais tecemos comentários, o Ministério Público nunca foi institucionalizado no Brasil.

Na Constituição do Império ficou atrelado ao Poder Legislativo (Senado); na de 1891, ao Judiciário; na de 1934, aos órgãos de cooperação nas atividades governamentais (Executivo); e, nas de 1946 e 1967, também ao Poder Executivo.

Adquiriu foro de instituição há bem pouco tempo com a promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, pela qual desvinculou-se das amarras dos Poderes do Estado, situando-se em capítulo próprio (Capítulo IV - NAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA)" ( "O Ministério Público Ontem - Hoje", p. 24-25).

E mais adiante, completando a clareza da exposição, conclui Jersey de Brito:

"Ainda se discute se efetivamente houve, da Constituição de 1824 à Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969 no Ministério Público, crescimento institucional. Para uns sim, para outros se crescimento houve, este não se processou de forma harmônica e obedecendo ao princípio da continuidade. Se existiu, tal aconteceu por avulsão mas nunca por evolução (grifamos)" (ob.cit., p. 70).

A falta de um título especial onde fosse colocado o MP, a exemplo da Carta de 1946 ( e também da atual), colaborou para a expansão da idéia de submissão do órgão ao Poder Executivo ou de mero "auxiliar do juízo" (como, infelizmente, teimam em pensar alguns magistrados, que vêem no Promotor um assessor ilustre). A erronia de semelhante idéia é patente, pois, não é porque a lei (ou a Constituição, no caso) não defina como vermelha alguma coisa que é vermelha que deixará ela de ser dessa cor, pois, o MP independente do tratamento jurídico dispensado, é essencial e estrategicamente, uma instituição autônoma, dentro do mecanismo de freios e contrapesos montado. Ademais, na Carta de 1967, onde o parquet foi colocado no mesmo inciso constitucional, lado a lado com o Judiciário, significou o abandono do constituinte à orientação americana, onde o "Attorney-General" e os "District Attorney" são mais funcionários do que magistrados (de pé, entenda-se), para filiar-se às doutrinas francesa e italiana, que vêem no Ministério Público magistratura especial e perfeitamente equiparada à magistratura ordinária, em matéria de garantias.

Ora, o legislador constituinte ao colocar num mesmo plano de garantias o Poder Judiciário e o Ministério Público, irmanando-os na mesma independência, na mesma liberdade de ação, teve em mira furtá-los aos caprichos do Executivo ou do Legislativo, para que assim, pudessem ser realmente defensores da lei e da sociedade. E não para que o Ministério Público fosse órgão subserviente e coadjuvante do Judiciário, como alguns falsos intérpretes e veranistas do Direito sugeriram.

D'outra banda, o enquadramento do Ministério Público dentro do Poder Executivo à luz da Carta de 1969, justificava-se apenas e tão-somente pela natureza administrativa de algumas de suas funções e nunca por uma subordinação, ainda que eventual e aprioristicamente concebida, entre aquele e este.

Mas, toda essa infrutífera discussão já faz parte do passado, pois, hoje, após o clamor público contra a criminalidade oficiosa, contra a violência e o despreparo do aparelho policial, contra a impotência do Ministério Público, contra o emperramento da Justiça e contra a falência do sistema penitenciário brasileiro, a Constituição Federal de 1988 criou ( ou diríamos melhor, deu azo a que a existência compatibilizasse-se com a essência) um verdadeiro e vigoroso Ministério Público, assim conceituado:

"Art.127, caput - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".

No dispositivo acima transcrito está a destinação constitucional do MP, tornando-o verdadeira instituição permanente essencial à função jurisdicional, conferindo-lhe, ainda, a incumbência de fiscalizar o cumprimento da Constituição e das leis, bem como a defesa da própria Democracia e também dos interesses sociais e individuais indisponíveis, perante os poderes públicos. Acima de tudo, sua existência justifica-se pela cerberesca fiscalização no cumprimento fiel da lei e da Constituição, lábaro de um Estado Democrático de Direito. A tal respeito, lecionou o Prof. Jersey de Brito Nunes, em linhas memoráveis do nosso repertório jurídico, verbis:

"A fiscalização do cumprimento da norma legal constitui sempre e em todas as épocas, a razão de ser do Ministério Público...vez que fiscalizando o cumprimento da Constituição e das leis, o Ministério Público automaticamente estava defendendo os interesses da sociedade, defendendo a ordem jurídica, hoje atributo na atual Constituição"(ob. cit., p. 69-70). Em complemento, seja-nos permitido acrescentar, que como fiscal da lei, o MP tem as vestes de parte em relação ao que faz, e se avizinha do juiz, no tocante ao motivo de agir. Visto desse prisma, as atribuições ministeriais ao mesmo tempo em que são dignas, são também árduas, pois materializam-se na eterna conciliação entre a parcialidade da parte e a imparcialidade do juiz (veja-se que o agente ministerial está sujeito aos mesmos motivos de suspeição e de impedimento do juiz, cf. art. 258, in fine, do CPP e art.138, I, do CPC). E por dever de ofício, o parquet tem de incorporar essa dupla face, refugiando-se sempre no imperativo da lei e imposições das consciências de seus agentes, utilizando esses moldes para refazer a realidade social.

Lembremos que a comparação entre Magistratura e Ministério Público, como sujeitos processuais, deflui da circunstância de serem, ambos, Órgãos do Estado, imparciais e independentes.

A propósito da imparcialidade que o membro do Ministério Público deve imprimir as suas manifestações e iniciativas, em artigo publicado na RT 675/331, sob o título "Ministério Público: Órgão Acusador ?", diz Renato Dantas de Holanda Cavalcanti:

"O interesse do Ministério Público no caminho da justiça não o incita a proceder da mesma forma que o magistrado o faz, posto que existiria uma duplicidade de atividade funcional inútil".

Não deixa de ter lógica o raciocínio do articulista, todavia, é de se ver, que a imparcialidade com que deve agir o membro do parquet não o equipara ao magistrado, visto que, só este último "diz o direito", enquanto que a função do primeiro "como atividade promotora da ação, não se confunde com a atividade do Juiz, que aplica a justiça pela justiça, a lei pela lei. Promove-a (Ministério Público) com finalidade determinada, ainda que orientada por um ponto de vista geral" (Jorge Americano, "Comentários ao Código de Processo Civil do Brasil -1939", Vol. I, 1940, São Paulo, Livraria Acadêmica, p. 155).

A orientação do Prof. Jorge Americano, obviamente, enquadra o exercício funcional do membro ministerial como parte na relação processual, e não como, custos legis. Pois quando age neste último quadrante, a distinção é feita sob uma linha tênue e repousa no binômio ação/inércia.

Aos sujeitos processuais, Juiz e Promotor, não se deve pretender funções distintas dos princípios informativos de suas instituições, pouco importando o ramo do Direito em que venham a atuar, pois, não se pode transmudar a idéia institucional, sob pena de não ser mais Magistratura ou Ministério Público, e sim, outro sujeito processual. Se a imparcialidade é um atributo comum aos dois órgãos, embora adstrita ao fim institucional, não se pode pô-la no olvido a pretexto de duplicidade funcional, o que, inclusive, não existe.

"O Ministério Público é imparcial porque nasceu sob o signo da dignidade. É o que nos dizem velhos comentários de insignes juristas como ROCHE-FLAVIN que, em 1617, dizia ter-se criado, finalmente, um órgão imparcial, sobranceiro a interesses e paixões e armado de poderes para defender a sociedade ("Treize livres des parlamentes de France", vol. II, cap. VII, n. XV). E esta imparcialidade do parquet de tal forma impressionou o vetusto RASSAT que, este chegou a vislumbrar na sua criação o advento de um milagre ("Le Ministére Public entre son passé et son avenir", pág. 13). CARNELUTTI chegou, inclusive, a construir-lhe a imaginosa figura de parte imparcial ("Lezioni", Vol. I, n. 10). É inegavelmente imparcial, pois chega a recorrer em favor de acusado que acredita ser inocente (ut. FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, "Processo Penal", vol. IV/264; JOSÉ FREDERICO MARQUES, "Elementos de Direito Processual Penal", vol. IV/206 e 264)" (cf. João Francisco Moreira Viegas, "Ministério Público: sua Atuação no Cível", RJTJSP 117/29).

Acrescente-se, que a preocupação de imparcialidade não deve exagerar-se nas atitudes frouxas, esquivas ou reticenciosas, comprometedoras do programa do Ministério Público e dos seus compromissos funcionais. O Promotor de Justiça, como homem público, na sua mais bela modalidade, deve renunciar, no exercício do cargo, a qualquer reserva mental, a qualquer preconceito, a qualquer facciosismo.

Na fiscalização da lei e, portanto, da própria Constituição, é relevantíssima a missão do Ministério Público, não só em benefício da Justiça, como, mormente, da Sociedade. Mais relevante talvez do que a da Magistratura, porque o juiz representa uma força estática, apenas declaratória do direito e reveladora da justiça, ao passo que o Ministério Público representa uma força dinâmica, sempre em ação, que promove essa declaração de direito, essa revelação da justiça, pondo em andamento a máquina processual, investigando, fiscalizando, promovendo responsabilidades que podem atingir a quaisquer dos três poderes: executivo, judiciário ou legislativo (cf. art. 129, II, da CF/88).

O jus sui cuique tribuendi pode ser mais relevante, mais grave, do que as funções cometidas ao Ministério Público, sob o ponto de vista de seus efeitos, porém nunca mais árduo.

O Promotor de Justiça não tem apenas a atribuição jurídica de opinar em determinados processos, aliás, por si só, das mais trabalhosas, por isso que requer o esforço material de examinar todas as peças dos autos e o esforço intelectual de apontar ao juiz o direito aplicável a cada espécie.

O Ministério Público tem funções judiciárias, administrativas, consultivas (emitir pareceres, v.g.) e fiscalizadoras (Controle Externo da Atividade Policial, Fundações, etc.).

A sua ação é dinâmica, ao passo que a do juiz é estática.

A relevância superior da existência e do ofício desempenhado pelo Ministério Público é, por outro lado, também, facilmente aferível, pois enquanto o Legislativo e o Executivo têm livre iniciativa para legislar e administrar, o Judiciário não tem iniciativa, motu proprio, para julgar (CF, art.5º, XXXV). Assim, seria ineficaz a sua atuação, se não houvesse um órgão representativo dos interesses sociais, para promover a aplicação da lei nos casos em que se faz necessário. Esse órgão é o Ministério Público.

Nas sociedades civilizadas não há poder absoluto, independência completa, ou liberdade plena. Em busca da harmonia organiza-se constitucionalmente um sistema de pesos e contrapesos, onde cada movimento de um dos poderes provoca contramovimentos dos demais, que assim se delimitam reciprocamente.

A falta do Ministério Público implicaria: ou na necessidade da intervenção direta do Executivo perante o Poder Judiciário, o que significaria subordinação de um a outro, com a quebra da harmonia e independência entre as funções; ou na atribuição de iniciativa ao Poder Judiciário, com violação dos mesmos preceitos, pois a sua própria natureza rejeita qualquer iniciativa, a não ser com o risco de invadir atribuições alheias; ou finalmente, na destruição da ordem social, pela inação do Poder Judiciário, à falta de um órgão provocador. Dentro da organização constitucional, portanto, o Ministério Público é essencial à vida do regime!

Assim, é forçoso concluir que, constitucional e juridicamente, a existência do Ministério Público é indispensável ao funcionamento das instituições. Sem ele, a sociedade fica desprovida dos meios de promover a aplicação da lei, em sua própria defesa.

São tais balizas que nos levam a crer que o Ministério Público deve ater-se e concentrar seus esforços sobre as deficiências do nosso sistema, que retrata uma carência de controle sobre quem exerce o poder, e de falta de mecanismos de fiscalização, de equilíbrio e ajuste, que o tornem mais justo em suas variegadas facetas político, social e econômico.

Os estudiosos desde John Locke e Montesquieu (2) já tinham atentado para a necessidade de criar mecanismos eficientes dentro do universo jurídico que contivessem o uso indevido do poder, impedindo abusos. Pois, "la autoridad sin limites es muerte de la libertad. La libertad sin limites es muerte de la autoridad y de la propria liberdad. Allí surge precisamente la función del derecho para fijar con razonabilidad y prudencia las riberas de ese rio eterno llamado poder". Daí deriva a meridiana conclusão de que o direito de uma sociedade esclarece, melhor que qualquer outro fenômeno, sobre a natureza e os vícios do poder que a rege.

John Locke, por exemplo, ao trabalhar sobre as idéias de vontade e liberdade, propôs um conceito de poder contido na seguinte afirmação "poder, vontade e liberdade constituem um todo coerente", mas, ao projetá-lo no contexto político, foi ele o primeiro a defender sua limitação, seu controle e o direito de resistência.

Não há legalidade, diz Celso Antônio Bandeira de Melo, sem sua garantia. E não há garantia de legalidade sem um órgão imparcial, isento, sobranceiro. E não há órgão imparcial, isento, sobranceiro, sem independência real e efetiva. À falta disto esboroa-se todo o projeto de contenção do Poder; em uma palavra: frustra-se, liminarmente, a concepção de Estado de Direito (3).

Tem-se como conatural do Estado Democrático de Direito que é inconcebível a existência de poder estatal sem controle, ou mesmo que um deles, dentro da clássica estrutura tripartida, seja auto-suficiente na verificação da regularidade de sua atuação.

Constata-se, desta forma, a necessidade de controle, inerente a toda sociedade razoavelmente organizada e policiada, e, por isso foi que a Carta Magna de 1988, no ímpeto de exorcizar os fantasmas de um passado autoritário, cinzelou energicamente a estrutura do Ministério Público, elevando-o à categoria de uma Instituição firme e com atribuições bem delineadas, sem paralelo em qualquer outro país.


II- A MAGISTRATURE DÉBOUT COMO QUARTO PODER.

É intuitivo que como guardião da lei e da ordem jurídica, bem como árbitro e intérprete dos direitos da comunidade, e, ainda, erigido como instituição constitucional, o Parquet não pode sofrer qualquer tipo de injunção, seja de ordem política, econômica, ou até mesmo, processual.

Ainda no século passado, o Marquês de São Vicente, um dos nossos maiores publicistas, ao referir-se ao MP, dizia: "independente dos governos; inimigo das injunções e das condescendências" (Cit. por Roberto Lyra, "Teoria e Prática da Promotoria Pública", p.65). Também Prudente de Moraes Filho, escrevendo sobre o Ministério Público no século passado, já dizia: "É uma magistratura especial, autônoma, com funções próprias. Não recebe ordens do Governo, não presta obediência aos juízes. Age com autonomia e em nome da sociedade, da lei e da Justiça" (cit. por Roberto Lyra, ob. cit., p.104) .

Realmente, O Ministério Público é hoje um órgão constitucional independente, e toda vez que um serviço, por conveniência pública, é erigido em instituição autônoma, com capacidade própria de decisão, ou com a capacidade de decidir mediante juízos ou critérios de sua própria escolha, exclui-se-lhe a obrigação de observar ordens, instruções, injunções ou avisos de autoridades estranhas ao quadro institucional.

As atribuições do MP foram definitivamente cimentadas na CF/88, onde conferiu-se-lhe a missão de proteger os mais caros interesses da sociedade. Ora, quando toda uma nação se serve de um poder supremo, o poder constituinte originário, indiscutivelmente ilimitado e soberano, para outorgar a uma instituição o mister de protegê-la, não é crível que tenha havido mera mudança conjuntural, mas sim estrutural, optando por uma nova configuração de poderes.

Com efeito, sendo o Ministério Público criação posterior à teoria da separação dos poderes e fruto da prática, destoa das linhas rígidas da tripartição, sendo necessário refazer o modelo existente.

Nessa conformidade, se vai processando o desenvolvimento da instituição, de forma a autorizar ao Ministro Alfredo Valladão, em tempos recuados, uma séria previsão:

"O Ministério Público se apresenta com a figura de um verdadeiro poder do Estado. Se Montesquieu tivesse escrito hoje o Espírito das Leis, por certo não seria tríplice, mas quádrupla, a Divisão dos Poderes. Ao órgão que legisla, ao que executa, ao que julga, um outro órgão acrescentaria ele - o que defende a sociedade e a lei, perante a justiça, parta a ofensa de onde partir, isto é, dos indivíduos ou dos próprios poderes do Estado"(4).

Também Mario Dias, em sua monumental e infelizmente pouco lida obra "Ministério Público Brasileiro", assevera:

"Esta, a posição indiscutível que compete ao MP, isto é, a de Quarto Poder do Estado, ou seja: - Poder Legal, Poder Fiscalizador, Poder Coordenador ou que outra denominação de lhe queira dar, quando no exercício de sua atribuição precípua de agente da lei e fiscal de sua fiel execução; e não a de simples 'órgão do Estado' " (Tomo I, p. 314-315).

Já nas Assembléias Constituintes de 1934 e 1946, o assunto já era ventilado e vozes se erguiam, veementemente, em prol da elevação do Ministério Público à categoria de Poder.

"Na justificação da emenda n. 1.036", registra Mario Dias, "apresentada ao ante-Projeto da Constituição de 46, pelo ilustre constituinte Hermelindo Castelo Branco e subscrita por nomes dos mais destacados, lêem-se ainda as seguintes palavras de profundo alcance moral, as quais infelizmente não conseguiram impressionar a douta Assembléia:

'Desnecessário será, por sem dúvida, insistir-se aqui na demonstração da conveniência em serem adotadas na nova Carta Política que se vai votar para o país, preceitos que assegurem eficazmente a liberdade de juízo, de pensamento e de ação do Ministério Público.

Basta que recordemos as palavras com que os ilustres Deputados Odilon Braga, José Alkimim e Negrão de Lima justificaram na Assembléia Constituinte de 1934, a emenda n. 952: - [Ao lado do Poder Judiciário, como representante da sociedade e dos interesses que ela protege, órgão também da lei e fiscal da sua execução, surge o Ministério Público. O rol dos deveres que lhe são assinalados em nossas leis de organização judiciária é de insuperável relevância. Nos povos de espírito comunário, tal qual o nosso, nos quais o indivíduo é deficiente como defensor dos interesses abstratos da coletividade, sobe de ponto essa emissão de alta inspeção legal e de assistência tutelar, inerente ao Ministério Público. Este, porém, até aqui não era um poder: era apenas uma função. O poder é livre, autônomo, não obedece a subordinação alguma, salvo a da Constituição. Reduzido a uma função que se interpunha entre o Judiciário e o Executivo, mas subordinado a este, o Ministério Público era um órgão atrofiado e falho. Ora bem; se o cidadão brasileiro, por sua formação comunária, deve ser considerado um fator cívico deficiente, que tudo espera do próprio poder público; e se, pela ordem natural das coisas, ao Ministério Público é quem incumbe suprir tal deficiência, que nos restava fazer? Elevá-lo, como fez o ante-Projeto, à categoria de poder constitucional, libertando-o da influência do Executivo e fortalecendo-o perante o Judiciário. É o que faz a emenda]' "(id. Ib., p. 51-52).

Infelizmente, tanto ontem como hoje, reluta-se em reconhecer o apanágio de Poder ao Ministério Público, libertando-o de velhas estruturas necrosadas pelo tempo e elevando-o ao seu merecido espaço.

É que, assinala Mario Dias, o Ministério Público, se investido das prerrogativas de verdadeiro Poder, dentro da organização estatal moderna, seria uma espécie de olho mecânico, indiscreto e incômodo para a corrida desenfreada das competições inconfessáveis que se entrechocam no hipódromo governamental (cf. "Ministério Público Brasileiro", Tomo I, Ed. José Konfino, Rio de Janeiro, 1955, p. 116).

Mas em que pese, todo esse caudal contrário, é de mister reconhecer o Ministério Público como quarto Poder da República, visto que, já reveste-se das características e autonomia de verdadeiro poder. Será, sem dúvida, por sua natureza, o PODER FISCALIZADOR, incumbido da defesa da sociedade e da lei, perante a Justiça e ainda contra os abusos, erros e falhas desta ou dos outros Poderes, harmônica mas independentemente (cf. art. 129, II, da CF).

E nem se argumente, os que são contrário a esta tese, de que a Teoria da Tripartição dos Poderes de Montesquieu, inadmite a criação de outro Poder. Ora, a Teoria do sábio francês se amparou menos em critérios científicos e mais em necessidades práticas. E são justamente essas necessidades práticas que obrigam, no momento, o reconhecimento de um quarto poder estatal.

É de esperar-se que todo o Ministério Público Brasileiro cerre fileiras em torno dessa bandeira de redenção, erguida com tanto desassombro, contribuindo cada um dos membros da instituição, esteja onde estiver, para a arrancada final da unificação, como passo decisivo para o seu entrosamento na esfera dos Poderes Constituídos da República.


  1. O MINISTÉRIO PÚBLICO FACE AO PROCESSO.

Face a inegável situação abordada no item anterior e em abono de interesses sobranceiros, não se pode interpretar o Direito, em especial, o processual, de modo a obstaculizar a defesa da sociedade, não se imagina um formalismo exagerado em detrimento da questão de fundo, pois, quando há interesses da sociedade, o intérprete tem uma singular mobilidade, visto que, os meios hermenêuticos não decorrerão de pontos de vista eventuais, mas, ao contrário, de postulados orgânicos acima de concepções precárias e transitórias, possibilitando uma efetiva tutela para a comunidade. E o Ministério Público, como órgão de defesa social, não pode ter sua atuação embaraçada por filigranas processuais e por uma legislação que foi fruto de um período de autoritarismo.

Nesta trilha, confira-se manifestação do STF, verbis:

"A custódia da lei, deferida ao Ministério Público, não pode sofrer restrições, na exegese de norma processual, coarctando-lhe o pleno desempenho do ofício" (RE 92656-9-RJ, 1ª Turma, rel. Min. Néri da Silveira, v.u., j. 3.12.l984, in Lex-JSTF 92/73).

Em prol desse entendimento podemos ver que o próprio princípio da inafastabilidade do controle judiciário (delimitado no art.5º, inc. XXXV, da CF), já implica, por si só, em se considerar a existência de meios processuais que protejam o cidadão contra todos os atos do poder público, quer atos de administração, quer legislativos e jurisdicionais.

A abertura da via judiciária como meio de proteger os direitos fundamentais do cidadão deve ser concebida como uma garantia sem possibilidade de acolher lacunas.

Nesse diapasão, assinala José Augusto Delgado:

"Destaca-se, na Constituição de 1988, a agressividade do legislador no sentido de assegurar, de modo absoluto, a inevitabilidade da função jurisdicional. Merece aplausos essa posição que acentua, assim, com faceta mais potencializada, uma das consequências da própria soberania estatal, que é a de não permitir a qualquer cidadão que evite o jus imperii do Estado. Este deve ser o monopolizador da justiça, sem ser tentado, em nenhuma hipótese, a liberar para a composição privada a possibilidade de, por meios válidos e coativos, resolver definitivamente interesses em conflito" (id. ib., p. 95).

De permeio e em visceral consonância com a Suprema Corte, não é possível o estudo e posterior aplicação das regras jurídicas processuais que garantem os direitos dos cidadãos, todas elevadas à categoria de direito fundamental, apenas à luz singela da norma positiva posta para execução, por exigir concepção muito mais alargada, que passa, necessariamente, por uma visualização dos princípios informativos do direito processual, por eles serem transmissores, de modo explícito ou implícito, das dificuldades já comprovadas de se tornarem eficazes as normas expressivas de tais prerrogativas.

O processo é o instrumento útil posto, cuja utilização se apóia em princípios, todos atuando com o propósito de tornar eficazes os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Neste contexto, a importância dos princípios é patente, pois, após se articularem com normas de diferentes tipos e características, passam a ser facho que ilumina a compreensão das regras processuais constitucionais e as de posição hierárquica inferior.

Os princípios exercem uma função prospectiva no ordenamento jurídico, impondo sugestões para a adoção de formulações novas ou de regras jurídicas mais atualizadas, tudo inspirado pela idéia de aprimoramento do direito aplicado.

O funcionamento de um sistema judiciário, diz José Augusto Delgado, todo voltado para assegurar as garantias processuais do cidadão não pode admitir que só exista o direito positivo, por essa situação limitar a função do jurista. Este necessita ter uma amplitude maior do que aquela definida pelo direito positivo, tudo vinculado com a precisa identificação das finalidades visadas pela norma jurídica, especialmente, de natureza constitucional (cf. ob.cit., p. 91).

O processo é que assegura a efetivação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, quando violados, com base nas linhas principiológicas traçadas pela Constituição. É instrumento que o Estado (e seus órgãos, dentre eles o Ministério Público) está obrigado a usar e representa uma prestação de garantia, através da qual o fundamento da norma se preserva e são protegidos os direitos essenciais do cidadão. É o único meio de se fazer com que os valores incorporados pela Constituição, em seu contexto, sejam cumpridos, atingindo o fim precípuo a que se propõem - o estabelecimento da paz social.

Como custos legis, o MP, em função do mister, não deve está sujeito às exigências processuais impostas às partes comuns. Todavia, agindo como parte, deve submeter-se ao mesmo tratamento dispensado à parte adversa, em respeito ao princípio da isonomia processual.

Assim, manifesta-se José Augusto Delgado:

"Inexiste, à luz do texto constitucional referido, o tratamento diferenciado até então dado ao Ministério Público, quando ele age como parte, com prazo ampliado para a prática de atos processuais" (id. ib., p. 99).

Assim, deve-se dar maior resguardo aos direitos sociais, e, por conseguinte, maiores garantias de atuação do órgão representativo e protetor desses interesses, quando aja como tal.

IV. AUTONOMIA FUNCIONAL, ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA.


A Constituição Federal conferiu ao MP, autonomia funcional, administrativa e financeira (cf. art. 127, §§ 2º e 3º), que constituem princípios institucionais.

A autonomia ou independência funcional constitui-se na ausência de subordinação intelectual de cada agente; havendo substituição, o novo titular poderá agir e opinar diferentemente do antecessor, no mesmo grau ou em recurso. A opinião pessoal de cada um tem que ser respeitada, sem ser nenhum obrigado a contrariar sua convicção quando atue. Cada membro (desde o Promotor Substituto até o Procurador Geral) só está vinculado ao imperativo da lei e de sua consciência, esteios que dão sustentação à independência funcional, não podendo receber ordens ou recomendações de caráter normativo, quando de suas manifestações, para agir deste ou daquele modo.

"A independência funcional do Ministério Público", sugere o Prof. Clémerson Merlin Cléve, em resumido, porém, profícuo estudo, "constitui uma das dimensões de sua autonomia. Os seus órgãos, ou seja, os agentes ministeriais, os magistrados do parquet atuam com independência. Significa, isso, que exercem suas atribuições sempre de acordo com a consciência do justo que guardam. A manifestação processual do órgão do parquet, portanto, decorrerá de sua convicção, não podendo receber ordens de seus superiores para agir deste ou daquele modo" ("O Ministério Público e a Reforma Constitucional", RT 692/23)

O art. 257 do Código de Processo Penal diz que "O Ministério Público promoverá e fiscalizará a execução da lei", ou em outras palavras, será o órgão da lei e fiscal da sua execução. Se é um órgão da lei não está escravizado a ela. Caso contrário, seria então, apenas, declaradamente fiscal da sua execução, e nada mais. Mas, justamente, porque não é apenas o fiscal da sua execução, mas é também o órgão da própria lei, é que na sua observância não procede com a passividade subalterna dos fiscais apenas, mas, ao contrário, conserva o seu coeficiente irredutível de personalidade e autonomia.

O Ministério Público pode e deve discutir a lei, de que não é apenas executor, mas órgão, fiscal, aplicador esclarecido e consciente. A atividade ministerial não é meramente reflexa, mas indutora e reguladora. Assim é que, no seu livre convencimento e apreciação (dentro, porém, dos limites já tracejados), os membros da magistrature débout podem dar a dimensão do justo à lei a ser aplicada.

O representante do Ministério Público está comprometido só, tão-somente, com a ordem jurídica, com o regime democrático e com os interesses indisponíveis da sociedade, definidos na Constituição e nas leis. Em momento algum, deve esse membro vergar ao peso das pressões políticas, quer sejam intra ou extra-institucionais. E, naturalmente, não basta ser honesto(5): isso é pressuposto e não qualidade. É preciso ser um homem inteiro e independente, sem compromisso senão com a lei e sua consciência, capaz, portanto, de exercitar contra quem quer que seja os poderes que a lei lhe conferiu. Do contrário, não será um Promotor de Justiça, e sim, um promotor do nada a opor, do nada a requerer, do pelo prosseguimento. Este é, em regra, o promotor bonzinho, sorridente, popular(6), amigo de todos, especialmente dos poderosos. Aquele é visto com malquerença e antipatia.

Acontece, via de regra, que os atos destemerosos de membros do Ministério Público inspirados por estimulante consciência profissional, alavancam o desdém dos desfibrados que não compreendem como o dever possa levar um homem ao sacrifício.

De plano, acorrem os "experimentados" com os astutos conselhos da conveniência e do comodismo, diminuindo o valor da atitude sobranceira.

É que não há, - diz o inolvidável Roberto Lyra - entre nós, forças sociais organizadas para amparar, eficientemente, as iniciativas da equidade e executar, no terreno firme das sanções práticas, os caros princípios porque damos sangue.

Nós precisamos criar, - continua o mestre - também essa mentalidade coletiva. Só assim reuniremos os meios que assegurem a exequibilidade das leis justas. Com a educação jurídica do povo e a vigilância de sua soberania, assim esclarecida, contra o arbítrio do Estado e a irresponsabilidade do Poder, ter-se-á servido, sobretudo, à eficiência da missão política do Ministério Público" (ob. cit., p. 103).

O Promotor de Justiça deve ser um homem das inquietudes, das inconformidades com a própria vida e a vida dos outros. Deve ser um homem de ideais sem limites, almejando arrebatar a glória da unidade nas verdadeiras soluções e não em acomodações. Deve agir com aquele calor, desassombro e bravura indispensáveis aos defensores do interesse público e da lei e que são qualidades tão chocantes para os que atingindo certo nível julgam-se no vértice de uma pirâmide e passam a querer um mundo arrumadinho em compartimentos estanques, onde tudo são reverências dos de baixo para os de cima, uma espécie de democracia de plano vertical.

As nações democráticas precisam libertar-se de suas concepções estáticas e defensivas e imbuírem-se de espírito dinâmico de ataque e conquista. Neste sentido, o Ministério Público muito pode fazer. Ele é a guarda avançada da Democracia, que procura resolver os problemas através da lei. Aos seus membros cabe uma atitude ativa e dinâmica de verdadeiros magistrados de pé (daí os franceses denominarem-nos de magistrature débout). Sim. De pé em cumprimento do dever; de pé para defender o povo; de pé para atacar o malvado e mentiroso; de pé para reprimir o violento, combater o corrupto e proteger o homem pacífico. De pé em luta pelo Direito. De pé para servir à Justiça e buscá-la. De pé para o triunfo da verdade.

Não há nada mais angustiante para os que dependem da fortaleza do Ministério Público do que o membro do MP medroso ante o Poder e seus detentores. Aquele que ao atuar (dando pareceres, oferecendo denúncias, propondo Ações Civis Públicas), avalia cuidadosamente as reações políticas que seu posicionamento provocará na cúpula ministerial, pesando os efeitos que poderá ter em suas futuras promoções e nomeações, não merece ser chamado de Promotor de Justiça ou Procurador de Justiça, em sua elevada e nobre acepção, mas, com certeza, receberá o epíteto de mero funcionário público burocrático, mediocrático e arrivista ou bedel ministerial.

A propósito disso, no ângulo do que se expõe, aplausos são expedidos para o Promotor Público Carlos Sussekind de Mendonça, que nos idos de 1927, proclamou as seguintes palavras, cristalizando, com maestria, o nosso pensamento:

"Há cargos que representam, por si sós, um prêmio, e que não pedem dos que o ganham mais que o cuidado fácil de guardá-los. São assim as sinecuras do funcionalismo cômodo, dos extranumerários, dos adidos, dos comissionados. O Ministério Público, entretanto, se afasta inteiramente destes casos. Qualquer dos seus lugares é um posto de constante sacrifício, de conquista diária à opinião, de disputa sem tréguas contra a malícia da advocacia, contra as reservas dos juízes, contra a ambição naturalíssima dos seus próprios colegas(...). Se o ocupante é digno do cargo, se está na altura de exercê-lo, moral e intelectualmente, não sabemos de ensancha mais própria aos surtos rápidos no Foro. Se não o é, porém, sucumbe, arreia, cai por força - e cai do pior modo, aos poucos, dia a dia" (cit. por Roberto Lyra, ob.cit., p.65).

Para honra e mérito do Ministério Público Brasileiro, de inúmeros casos sabemos, em que, dignos representantes da classe, em obscuras e remotas comarcas do interior, principalmente, têm sido vítimas de interesses escusos, justamente, por possuírem aquele calor, desassombro e bravura, pela sua inflexibilidade dorsal e por haverem lançado mão de recursos viris e desassombrados na defesa dos interesses primários da sociedade.

Há, infelizmente, exemplos de subserviência, por parte de raros representantes do Ministério Público, por motivos que não calha analisar e mencionar, porém, daí não se pode concluir que toda a nobre classe padeça da mesma fraqueza.

Por isso que, o objetivo declarado (e isto não constitui nenhum segredo) da elevação da independência funcional à categoria de preceito constitucional, foi o de obstar que os membros do MP de início de carreira (Promotores Substitutos ou Adjuntos) ou de entrância inferior, sofressem qualquer tipo de injunção (como, lastimavelmente, na prática sói acontecer, apesar do princípio em comento) por parte, primeiro, de órgãos e poderes estranhos, e segundo, dos próprios órgãos da instituição, como Procuradoria Geral de Justiça ou da Corregedoria Geral, órgãos singulares da administração superior do MP; e também dos órgãos colegiados (Conselho Superior e Colégio de Procuradores). Esta garantia não é só para o órgão e sim para a sociedade, final destinatária de sua atuação.

Assim, nem mesmo o Procurador-Geral, Chefe da Instituição, nem o Corregedor Geral do Ministério Público, designado por aquele, nem o Colégio de Procuradores, nem o Conselho Superior, que fiscaliza e superintende a atuação do órgão, podem impor um procedimento funcional a qualquer membro da Instituição, quando muito, podem fazer recomendações sem caráter normativo ou vinculante (cf. art.10, inc.XII, da Lei n. 8.625/93 - LONMP).

Exsurge, portanto, que salvo sob a ótica administrativa, não há hierarquia entre os membros do parquet.

Infelizmente, restam mecanismos que sobreviveram ao princípio constitucional da independência funcional e que aguilhoam-no inexoravelmente: a famigerada promoção por merecimento. Basta, tão-somente, que o membro não satisfaça aos pruridos de vaidade da cúpula, para ver-se promovido somente pelo critério de antigüidade. Portanto, o Promotor que não rezar pela cartilha (e isto significa submissão, antônimo de independência) do grupo dirigente, terá irremediavelmente sua carreira profissional prejudicada.

Veja-se, ainda, que o Ministério Público mesmo estando revestido de inúmeras garantias, não tem o autogoverno, pois, o órgão máximo é escolhido pelo Executivo, diferentemente do que ocorre no Judiciário ou nos Tribunais de Contas, o que de certa forma coloca o Procurador-Geral como representante de interesses estranhos à instituição e põe a perder o alcance prático de todas as outras garantias.

Desse modo, diz Mazzilli, "o procurador-geral dependerá de seu estofo moral e funcional para dirigir com independência o Ministério Público" ("Regime Jurídico do Ministério Público", p.133).

Em alguns Estados, o Procurador-Geral de Justiça tem tantos poderes, que a respectiva Lei Orgânica é pleonástica, repetitiva e hiperbólica ao atribuí-los. Obviamente, que com esta hipertrofia, o legislador (o Projeto de Lei, normalmente, é redigido por membros do Ministério Público) teve em mira viabilizar o MP, querendo fortalecer a chefia. Todavia, isso gera efeitos colaterais maléficos (tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser - Monstesquieu) e contribui para o nascimento de grupos ideológicos no MP, que tendem à formação de consenso para manter hegemonias e privilégios. Estes grupos, que formam verdadeiras castas impenetráveis e preconceituosas, tendem a dominar a Instituição, influenciando e estabelecendo as decisões à sombra da lei e com a aparência de Justiça, concentrando o poder de forma sutil, às vezes, escancaradamente boçal. São partidos internos, que exercem um controle interno, não institucionalizado mas efetivo, de forma antidemocrática e tirânica.

Dessa estruturação institucional, mesmo bafejada pelo hálito revigorante da CF/88, decorre, não raro, a vitória da força, não menos bruta por se exprimir pela língua do que o seria se se manifestasse pelos músculos, com sensíveis prejuízos ao desempenho institucional como um todo.

Assim, enquanto o Ministério Público não conseguir ter o autogoverno, podendo escolher o seu próprio Procurador-Geral, jamais conseguirá libertar-se da perniciosa tutela do Poder Executivo.

Já a autonomia administrativa, dando continuidade ao nosso estudo, significa, no dizer de João Mendes Júnior, direção própria daquilo que é próprio (7), e segundo Hely Lopes Meirelles "é a faculdade de gestão dos negócios da entidade ou do órgão, segundo as normas legais que o regem, editadas pela entidade estatal competente. Não se confunde com autonomia política, que é a prerrogativa de editar suas próprias normas e aplicá-las na sua organização e nas suas atividades, segundo os preceitos constitucionais e as leis superiores que instituem a entidade e delimitam a sua atuação. Por isso mesmo, a autonomia política só é concedida às entidades estatais - União, Estados-membros e Municípios- ao passo que a autonomia administrativa pode ser atribuída a qualquer órgão ou entidade, que em razão de seus objetivos deva gerir com mais liberdade os seus negócios, ficando apenas vinculado (não subordinado) ao Poder que o instituiu" (cit. por Mazzilli, "Regime Jurídico do Ministério Público", p.94).

E o mesmo autor conceitua autonomia financeira como sendo "a capacidade de elaboração da proposta orçamentária e de gestão e aplicação dos recursos destinados a prover as atividades e serviços do órgão titular da dotação. Essa autonomia pressupõe a existência de dotações que possam ser livremente administradas, aplicadas e remanejadas pela unidade orçamentária a que foram destinadas. Tal autonomia é inerente aos órgãos funcionalmente independentes, como são o Ministério Público e os Tribunais de Contas, os quais não poderiam realizar plenamente as suas funções se ficassem na dependência financeira de outro órgão controlador de suas dotações orçamentárias" (cit. por Mazzilli, ob.cit.supra, p.94).

A autonomia financeira do Ministério Público não o dispensa de suportar o natural controle externo do Tribunal de Contas, além do sistema de controle interno instituído em cada Lei Orgânica Estadual (cf. arts. 3º, §único e 4º, §2º, da Lei nº 8.625/93).

Registre-se, por oportuno, que mesmo o constituinte não utilizando a expressão "autonomia financeira", como fez em relação ao Judiciário (art. 99, CF), o Ministério Público a tem, porque a idéia já está contida, por inteiro, na norma do art. 127, §3º, visto, ainda, que o teor é o mesmo do dispositivo constitucional (§1º do art. 99) que pincela a prefalada autonomia financeira do Judiciário.

O Ministério Público, assim como o Judiciário, não possui recursos financeiros próprios. Mas, na elaboração da proposta orçamentária global, ambos esses órgãos têm a iniciativa exclusiva de determinarem os recursos necessários a atender às próprias despesas, que são formuladas com base em critérios e prioridades por eles próprios estabelecidos. O Executivo, incumbido de compor o projeto final de orçamento, está constitucionalmente obrigado a respeitar essas propostas parciais exclusivas, dentro dos limites gerais fixados pela lei de diretrizes orçamentárias, segundo determina a Constituição.

Respeitados esses limites, o Ministério Público tem o poder exclusivo de elaborar a sua proposta orçamentária, sendo vedado ao Executivo alterá-la, ainda que minimamente.


V. O PODER DE INICIATIVA LEGISLATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO E A REMUNERAÇÃO DE SEUS MEMBROS.

O poder de iniciativa de leis de modo geral, visa a garantir a autonomia de seu titular. Sem esta atribuição ou desde que ela seja exclusiva de um dos ramos do poder ( o Legislativo, pelas suas duas Casas, e o Executivo), os outros ficariam paralisados, enervados e dependentes de uma vontade e impulsão estranhas. Sem ela não há meio eficaz de reformar os abusos, nem emulação nobre, respeito, vigor e coordenação. A garantia da autonomia dos Poderes e de instituições amantaladas com este apanágio, para ser completa, exige a exclusividade do direito de iniciativa em certas matérias. Daí a conclusão de que sem o poder de iniciativa legislativa, não há autonomia.

O Ministério Público está hoje dotado, constitucionalmente, de poderes próprios de iniciativa, em matéria de leis. Iniciativa privativa em alguns casos, concorrente em outros. Compete-lhe, privativamente, "propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares" (CF, art. 127, §1º ). Dispõe, por outro lado, de iniciativa concorrente da Lei Orgânica do Ministério Público da União e dos Estados (art. 128, §§2º e 5º, CF).

A proposta legislativa (qualquer que seja a matéria) oriunda do Ministério Público deve ser dirigida diretamente ao Legislativo. Pois, como registrou Pontes de Miranda em comentário a dispositivo análogo da Constituição anterior, referente ao Judiciário, "qualquer remessa por intermédio do Poder Executivo será extraconstitucional, em escusado gesto de cortesia"(8).

A norma do art. 127,§2º da CF reserva ao MP o poder de propor ao legislativo "a criação de seus cargos e serviços auxiliares", sem maiores especificações. Já o art. 96, II, "b", confere aos Tribunais de Justiça o poder de "propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169, a criação e a extinção de cargos e a fixação de vencimentos de seus membros, dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver, dos serviços auxiliares e os dos juízos que lhe forem vinculados". Com isto, cogitar-se-ia que o Ministério Público, diversamente do Judiciário, não possui a atribuição constitucional de propor os vencimentos correspondentes aos cargos de carreira?

Claro que não! A tessitura normativa da Constituição não se interpreta em tiras, mas, sistematicamente, perscrutando todos os meandros do ordenamento jurídico. Ora, o vencimento é um dos elementos conceituais de cargo público, além da denominação própria, o número certo e as atribuições correspondentes. Destarte, a proposta de criação de cargos públicos que não contemplasse o vencimento seria logicamente inepta, por lacunosa em elemento essencial à conceituação do conteúdo da matéria proposta.

Diante disso, despiciendo o constituinte dizer que quem tem o poder de propor a criação de cargos tem também, implicitamente, o poder de propor a sua remuneração. Registre, por seu turno, que se o MP não tivesse o poder de fixar os vencimentos de seus membros e funcionários, a sua prefalada autonomia, não passaria de pura retórica, sem efetividade na prática.

Outra questão que se impõe neste campo é a que concerne ao aumento de vencimentos dos cargos já criados. Tem o Ministério Público o poder de propor esta matéria?

O art. 61, §1º, da CF, reconhece que são de iniciativa privativa do Presidente da República "as leis que disponham sobre criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração". Pelo princípio da simetria aplicar-se-á esse dispositivo aos Estados federados. Assim, o MP estaria impedido de propor a majoração dos vencimentos de seus membros e serviços auxiliares?

Não! Se o Ministério Público pode propor, com exclusividade, a criação de cargos e fixação dos vencimentos, algo que administrativa e financeiramente, é mais amplo do que a proposta de reajuste, com maior razão poderá propor este, visto que, quem pode o mais está, de pleno direito, habilitado a querer e dispor sobre o menos.

Conclusão contrária a acima apontada, importaria na quebra da autonomia ministerial, bem como numa ruptura no sistema de freios e contrapesos, tão bem elaborado pela Constituição.

Vê-se, ainda, que o art. 61, §1º, II, "a", da CF, aplicando o princípio da simetria, não autoriza o Chefe do Executivo Estadual a propor medida alguma referente a vencimentos de funcionários que não pertençam aos quadros do Executivo. O que é o caso do Ministério Público.

Portanto, não restam dúvidas. O poder de iniciativa das leis que majorem os vencimentos do MP (membros e serviços auxiliares), é exclusivo do próprio Ministério Público. Ademais, de lege lata, já se pôs um pá de cal na discussão, visto que, a Lei n. 8.625/93 (LONMP) reza em seu art.3, incs.V e VI, que cabe ao Ministério Público propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção de seus cargos, bem como a fixação e o reajuste dos vencimentos de seus membros e serviços auxiliares.

Por fim, é relevante registrar, que seguindo essa linha, inúmeras leis complementares estaduais do MP, dispõem concretamente sobre fixação e reajustes de vencimentos, atribuindo, abertamente, iniciativa privativa ao próprio MP. São exemplos: Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Roraima - LC nº 003/94, art. 2º, VI; Lei Orgânica do Ministério Público de Minas Gerais - LC nº 34, de 12 de setembro de 1994, art. 18, IV ( esta lei inovou ao conferir o poder de propor ao Legislativo a fixação, a revisão, o reajuste e a recomposição dos vencimentos dos membros e servidores); Lei Orgânica do Ministério Público da Bahia - LC nº 11, de 18 de janeiro de 1996, art. 2º, inc. V; Lei Orgânica do Ministério Público de Mato Grosso - LC nº 27, de 19 de novembro de 1993, art. 2º, V.


VI. O DEFENSOR DO POVO ("OMBUDSMAN").


No propósito de alargar as atribuições ministeriais e promover a cidadania, vamos encontrar no inciso II do art. 129,da CF, o encargo de Ombudsman ou Defensor do Povo, impondo ao Ministério Público o zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, com a obrigação de promover as medidas necessárias a sua garantia.

Vê-se, que a Constituição não utilizou o termo ombudsman, convencionalmente chamado de Defensor do Povo. Todavia, a destinação ínsita no dispositivo constitucional acima, dá-lhe essa natureza, independentemente da denominação que receba. Em verdade, tecnicamente o texto constitucional é falho, pois nos incisos de um artigo pincela os atributos do ombudsman, mas no caput não o especifica.

Vale ressaltar, que no Brasil, a preocupação e o interesse em relação ao controle da Administração Pública deram azo a inúmeros debates doutrinários, que desembocaram na Assembléia Nacional Constituinte de 1987/1988, na proposta de criação da figura jurídica do Ombudsman.

A inspiração da proposta de criação da Defensoria do Povo teve como fontes imediatas os precedentes da Constituição espanhola de 1978 (que instituiu a figura de el defensor del pueblo, em seu art. 54) e da Constituição portuguesa de 1976, revista em 1982 (que acolheu o provedor de justiça, arts. 24 e 23, respectivamente).

Ocorre, porém, que "nos trabalhos da Constituinte,(...) confiou ela na instituição do Ministério Público, já organizada em carreiras em todo o País: melhor seria carrear-lhe as funções e os instrumentos para que assumisse novos e relevantes encargos, totalmente compatíveis com sua própria destinação. Conferiu-lhe, pois, notável crescimento, especialmente quanto às suas funções. Embora sem tornar-lhe evidentemente privativa a defesa dos direitos nela assegurados, conferiu ao Ministério Público a tarefa do defensor do povo, ainda que desta expressão não se tenha valido (CR, art. 129, II) (grifei)"(9).

Não se reconhecia, à época, a necessidade de criação de novos organismos burocratizados do Estado para o mister de defensor do povo, cabendo naturalmente a função de ouvidor ou de defensor do povo ao próprio Ministério Público, já organizado em carreira em todo o País.

Com efeito, o parquet está devidamente estruturado para o exercício dessa atribuição, mormente através do atendimento ao público.

O instituto jurídico do ombudsman incorporado pelo Ministério Público (CF, art.129, II), tem sua máxima função no controle, por assim dizer, dos diversos controles (parlamentar ou político, administrativo e judiciário), atinente aos três Poderes, sobretudo ao Poder Executivo (Administração Pública). Em miúdos, objetiva remediar lacunas e omissões, bem como, assegurar que os Poderes Públicos respeitem as regras assentadas e não se imiscuam nos direitos e liberdades públicas dos cidadãos.

A referência à expressão "Poderes Públicos", no preceptivo constitucional (art. 129, II), foi utilizada para acentuar a existência dos órgãos Executivo, Legislativo e Judiciário (denominados "Poderes Constituídos"), visto que, o Poder, em seu aspecto substancial, é uno e indivisível.

Os três "poderes" realizam respectivamente controles específicos: 1- controle administrativo; 2- controle judiciário; 3- controle político. Estas espécies de controle, todavia, apresentam entre si separação excessivamente rígida e insuficiências.

O controle parlamentar da Administração, por sua natureza política, sempre deixa de penetrar em várias zonas cinzentas, não previstas pelos textos legais, bem como não penetra em situações concretas de omissividade ou negligência dos agentes públicos. O controle jurisdicional é também insuficiente, por sua natureza casual e individualizada, porquanto depende de provocação de parte interessada. O controle administrativo interno, por sua vez, exatamente por remanescer ao alvedrio de autoridades públicas da Administração ativa, é frequentemente menosprezado, quando não solapado.

Em função, exatamente, da insuficiência dos diversos controles, fez-se necessário o surgimento de um órgão que se encarregasse do controle residual, buscando associar as vantagens das diversas espécies de controle.

Há situações em que não é cabível o exercício legal de qualquer espécie de controle, seja parlamentar, judicial ou administrativo, precisamente porque há casos concretos, de natureza discricionária, que refogem a qualquer dos tipos de controle interno ou externo: para tais casos concretos, o contrasteamento jurídico, somente pode ser realizado eficazmente por intermédio do Ombudsman.

O ouvidor do povo supre e supera a rigidez granítica, a limitação e as deficiências eventuais das outras espécies de controle.

Nessa relevantíssima função, entre outras providências, deve o Ministério Público empreender firme combate à violação da ordem social e dos direitos humanos, adotando, por exemplo, as seguintes providências, que também constituem meios de atuação:

1- buscar seja dado real atendimento nos hospitais e postos de saúde;

2- fiscalizar a existência de vagas nas escolas;

  1. cuidar das condições em que se encontram os presos;

4- receber petições, notícias de irregularidades, reclamações ou representações de qualquer pessoa ou natureza, por desrespeito aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual;

5- instaurar e presidir sindicâncias e Inquéritos Civis Públicos para apuração dos fatos e postulações que lhes sejam apresentados, promovendo inspeções e auditorias em órgãos públicos, quando houver indício de prática de conduta delituosa, notadamente atos de improbidade, ou quando for conveniente à apuração dos fatos; neste mister, pode, ainda, requisitar meios materiais e servidores públicos, por prazo razoável, para o exercício de atividades técnicas ou especializadas;

6- promover diligências e requisitar informações e documentos de quaisquer dos Poderes, órgãos ou entidades, no âmbito estadual e municipal, bem como de concessionários ou permissionários de serviço público estadual ou municipal, e ainda entidades que exerçam função delegada do Estado ou Município, ou executem serviços de relevância pública, podendo os membros do parquet dirigir-se diretamente a qualquer autoridade;

7- expedir notificações e requisitar o auxílio dos órgãos de Segurança Pública, para garantia do cumprimento de suas atribuições;

8- promover seminários e campanhas de conscientização dos servidores públicos e da comunidade no sentido de que todos se engajem na fiscalização dos órgãos públicos e serviços de relevância pública, pugnando pelo respeito aos princípios de legalidade e moralidade administrativa;

9- realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil ou seus representantes legais;

10- propor a adoção de medidas de caráter administrativo, visando ao aprimoramento e saneamento do serviço público;

11- manter contatos com entidades e organismos que tenham por finalidade o combate a atos de corrupção e de improbidade administrativa, objetivando o estabelecimento de linhas de atuação conjunta e de mecanismos de apoio recíproco (cf. Res. n. 529, de 10.12.92, da PGJ-RJ).

12- sugerir ao poder competente a edição de normas e a alteração da legislação em vigor, bem como a adoção de medidas propostas, destinadas à prevenção e controle da criminalidade, como, ainda, para adequá-las a eventuais direitos assegurados constitucionalmente (cf. art. 26, VII, da Lei nº 8.625/93 - LONMP).

Comensurando-se as colocações acima, fácil é concluir que o Direito vivo não é composto de normas, mas antes de realidades sociais normatizadas ou antes, é valor incorporado em regra, cada qual com sua própria identidade. E o Ministério Público como guardião da ordem jurídica e do regime democrático deve amoldar-se a tais balizamentos para incorporar verdadeiramente esse perfil de ombudsman conferido-lhe pela Constituição Federal.

Notas ao texto


1- Cit. por Petrônio Maranhão Gomes de Sá, "As Funções Constitucionais do Ministério Público Federal", Repro 32/280;

2- A manutenção da liberdade do indivíduo impõe que o poder restrinja o poder, limitando sua atuação nos estritos lindes da lei. Daí a fundamental e primacial relevância do princípio da separação dos poderes, um tema já legível em Aristóteles, retomado por Locke e reformulado com maior eficácia por Montesquieu. Foi ele quem fomentou o mecanismo de controle do poder pelo próprio poder consistente na divisão dos poderes por funções e coordenadamente, em que cada um fiscalizaria a atuação do outro, sistema batizado pelos americanos de "cheks and balances" ou de freios e contrapesos. Dizia o genial francês que "c'est une expérience éternelle, que tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser; il va jusqu'à ce qu'il trouve des limites" ("De l'esprit des lois").

A concepção de Montesquieu funda-se no fato de que quem faz as leis não deve aplicá-las; quem as aplica não as faça nem as julgue; e quem as julgue, não deve elaborá-las, nem executá-las.

Assim, o poder do Estado, para que não se torne abusivo, tem de ser dividido e distribuído de tal sorte que a independência recíproca e especialização numa das funções básicas dos que contam com frações de soberania, impeça que qualquer um possa oprimir a quem quer que seja. O poder, portanto, se divide em poderes que são, em última análise, órgãos independentes e relativamente especializados do Estado (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "Do Processo Legislativo", Ed. Saraiva, 3ª ed., 1995, p.107).

3- Celso Antônio Bandeira de Melo, "Sobre a Magistratura e o Ministério Público no Estado de Direito", RDP 68/144;

4- Roberto Lyra, "Teoria e Prática da Promotoria Pública", Ed. Sérgio Antônio Fabris, II ed., 1989, p.15;

5- José Ingenieros, filósofo argentino, em seu livro O Homem Medíocre, abordando a honestidade, disse: "Entre o vício, que é uma tara, e a virtude, que é uma excelência, flutua a honestidade". E em outra oportunidade, concluiu: "A honestidade é uma imitação; a virtude é uma originalidade". Concluímos, então, que a honestidade, pura e simples, é uma impotência para a virtude e, covardia para o vício, flutuando, então, no limbo da mediocridade.

6- O famoso escritor inglês Oscar Wilde, dá-nos a exata dimensão do que é ser popular: "Todos os bons chapéus são feitos do nada... E também a boa reputação. Todo efeito que produzimos nos proporciona um inimigo. Quem quer ser popular, tem que ser uma mediocridade (destaquei)" ( "O Retrato de Dorian Grey", Ed. Francisco Alves, 3ª ed., Trad. de José Eduardo Ribeiro Moretzsohn, p. 153).

7- Cit. por Fábio Konder Comparato, "Ministério Público - Orçamento, iniciativa - Remuneração dos seus Membros - Autonomia do Órgão", RDP 93/62;

8- Pontes de Miranda, "Comentários à Constituição de l967 com a Emenda n. 1 de 1969", Tomo III, Ed. RT, São Paulo, 1970, p.166).

9- Hugo Nigro Mazzilli, "Manual do Promotor de Justiça", Ed. Saraiva, 2ª ed., 1991, p.113;