ANTÓNIO FRANCISCO CLUNY
Procurador da República
No nosso país, quando se fala do Ministério Público assiste-se a uma curiosa consonância de opiniões entre alguns sectores políticos e da magistratura que é motivada por uma série de factores diferentes e contraditórios.
Por motivos corporativos, por motivações políticas ou, ainda, devido a deficiente análise jurídico-constitucional, o certo é que poucos têm procurado dar do Ministério Público uma ideia correcta, no que respeita ao seu posicionamento face aos poderes do Estado.
A análise sobre o Ministério Público parte, normalmente, de uma perspectiva processual penal, esquecendo-se - propositadamente ou não - a vertente constitucional e o enquadramento que lhe deve ser dado pela ciência política.
É certo que a vertente processual penal é determinante para a compreensão do Ministério Público; porém, tal perspectiva não passa de uma visão instrumental e, assim, funcional e parcelar desta instituição.
Isto é, parte-se aprioristicamente da contraposição formal Tribunal-Julgamento / Ministério Público-Parte Processual para tentar definir esta magistratura como exterior ao poder judicial, entendido este, unicamente, como função jurisdicional de dirimição de conflitos.
Tal posição, além de não analisar o próprio conteúdo do poder judicial, sempre tão superficialmente abordado pelos doutrinadores da separação dos poderes, atém-se a uma perspectiva clássica básica e não ao estudo do texto constitucional e dos seus trabalhos preparatórios relativos aos Tribunais e ao Ministério Público e suas funções.
Daí resulta, cremos, uma perspectiva imobilista, pouco científica e mesmo redutora, do poder judicial, das suas funções constitucionais e dos instrumentos institucionais de que dispõe.
Não correspondendo a uma análise jurídica, nem a uma abordagem no âmbito de ciência política, tais concepções não vertem a realidade existente, nem proporcionam o desenvolvimento conceptual actualizado e necessário à situação política das democracias majoritárias.
Pelo contrário, tais análises acabam em muitos casos por contribuir, objectiva ou subjectivamente, para que possa ser reduzido o poder judicial a «um quase nulo», na acepção de Montesquieu. Muitos o querem assim, outros, por conservadorismo, ou espírito de casta, acabam por o aceitar ou para isso contribuir.
Assim, enquanto o Ministério Público é normalmente analisado somente, e na medida, das suas atribuições processuais - e designadamente através e por causa do exercício da acção penal - o poder judicial é abordado quase só a partir do estatuto do juiz e das condições do exercício da função jurisdicional, aceitando-se que aquela esgota o referido poder.
Fica, portanto, de fora, a análise do fundamento do poder judicial e do seu conteúdo, quer numa vertente relacional externa e referente aos outros poderes, quer como análise prospectiva e/ou verificável, dos próprios instrumentos e papéis desse poder na sua actividade relacional intra-sistemática.
Isto é, não se questiona a autoridade ou suficiência das instituições judiciais, nem o resultado, pretendido ou não, da interacção dessas instituições.
Em última análise, não se questiona se, e em que medida, o poder judicial é afinal poder e se, sendo-o, e para o ser, se limita, ou pode limitar, à componente jurisdicional.
Em suma, pode o poder judicial (se o for) limitar-se, ou não, à função de julgar com independência (que independência?), ou esta independência não é por si só determinante para a conceptualização do judicial enquanto poder?
Não se pretende aqui analisar, ou estudar em profundidade, a questão da noção de «poder», contrapondo-a à noção de «função» de Estado.
Importa, porém, averiguar e especificar algumas das características que nos permitam discernir estes conceitos e valorá-los entre si.
Por outro lado, importa reflectir sobre o próprio enquadramento constitucional português dos órgãos de soberania, suas interdependências e propostas funcionais, designadamente no que concerne aos Tribunais.
Só então será possível, segundo cremos, encontrar instrumentos de análise e formular propostas que abarquem o problema da inserção do Ministério Público no contexto da divisão dos poderes e, em concreto, face aos Tribunais e aos órgãos do poder político.
2. Independência - pressuposto da noção de poder do Estado
2.1. Âmbito do conceito
Uma das características que poderá fazer distinguir um «poder» de um Estado de uma «função», ou conjunto articulado de funções, é a possibilidade que o órgão que as desempenha tem de, autonomamente e por iniciativa própria, actuar com independência.
Nesse sentido, autonomia ou iniciativa podem e devem ser incluídos no conceito mais amplo de independência e como seu pressuposto.
Daí que não possa - o «poder judicial» - ser entendido única e exclusivamente na perspectiva da função jurisdicional de dirimir conflitos de interesses públicos e privados ou, sequer, de dizer o Direito, sob pena de, assim, carecer de iniciativa inerente a um poder soberano.
Dizia Bolingbroke: «... a independência consiste nisto: que os actos de cada órgão sejam praticados independentemente, sem qualquer influência directa ou indirecta dos outros órgãos ... »
Em França, por exemplo, onde o Ministério Público mantém uma (relativamente) grande dependência do executivo, a Constituição não se refere hoje, a um «poder judicial», mas a uma «autoridade judicial.»
Michel Troper diz a propósito: «Não há, é de toda a evidência, poder judicial se os que exercem a actividade jurisdicional dependem de indivíduos exercendo outras autoridades. (...) Pode-se constatar, sem entrar no detalhe destes princípios, que na maior parte dos países eles não obtêm satisfação. Sabe-se que em França, por exemplo, os magistrados judiciais dependem, para a sua promoção, em parte do executivo e que a sua carreira os faz passar do Ministério Público para a judicatura e vice-versa.»
Mais claro, expunha já Alberto dos Reis: «... A concepção de Montesquieu sobre a divisão dos poderes fez a sua época; à ideia da divisão mecânica substitui-se o conceito, muito mais fecundo e científico, da divisão orgânica. Neste conceito, cada um dos poderes concorre para a realização dos fins do Estado, participando no exercício das várias funções da soberania. O poder judiciário não exerce funções estritamente judiciárias ou de julgamento; desempenha também atribuições de carácter legislativo e governamental, contanto que se coadunem com a índole da sua instituição e com o fim geral e principal da sua função.
«Ora, a iniciativa e o exercício da acção penal são atribuições perfeitamente concordantes com a índole geral da função judiciária, visto que têm como fim último a afirmação suprema desta função pelo julgamento.
«Violada a ordem pública, o poder soberano do Estado tem todo o interesse de restabelecer o equilíbrio destruído; deve, portanto, tomar iniciativa da acção penal e não esperar, como nos litígios civis, que as partes ofendidas venham pôr em movimento a engrenagem da justiça. E se a soberania está interessada em promover o procedimento criminal, o órgão ao qual deve caber essa atribuição tem de ser o judiciário, visto que a este compete restaurar a ordem social que foi perturbada. A função de iniciativa e acusação criminal é executiva na sua configuração externa, mas é judicial na índole e essência íntima.
«Portanto, o Ministério Público, quando promove a acção penal, não deve considerar-se como representante do poder executivo; é representante apenas do Estado e órgão da lei. No exercício das outras atribuições, muito menos pode defender-se o conceito da escola francesa.»
O poder de gerir livremente os interesses e funções que constitucionalmente lhe estão cometidos é que dá ao «poder judicial» a sua característica de poder de Estado à semelhança dos outros poderes; para isso, no entanto, é necessário que se não confunda «poder judicial» (como função complexa do Estado, ou conjunto complexo de funções), e função jurisdicional. O «poder judicial» é mais amplo, ou não será poder.
É que, se imparcialidade e passividade são características do processo jurisdicional, como refere Marcello Caetano, «o poder judicial» carece, para o ser, de um órgão que lhe assegure a iniciativa e esse órgão só pode ser o Ministério Público.
Claro é que, assim, o Ministério Público tem de ser entendido como uma magistratura, até porque, como diz Michèle-Laure Rassat: «... Tal consideração requer, em segundo lugar, que o Ministério Público integre a magistratura, porque esta é a única competente para interpretar a lei. A teoria clássica dos três poderes ensina, com efeito, que o poder legislativo faz a lei, o poder executivo provê à sua execução, mas só o poder judicial é competente, com exclusão de qualquer outro, para interpretar a lei com o fim de a aplicar aos casos concretos ... ».
O «poder judicial» não é, pois, limitado à função jurisdicional, nem o seu suporte humano e institucional é reconduzível unicamente à figura do juiz e à sua função de dirimir conflitos ou de julgar.
Com efeito, as funções do «poder judicial» são mais amplas, configurando todo um complexo de atribuições que visa, no seu conjunto e unidade finalística, o mesmo desígnio: administrar a justiça; isto é, visa, em suma, assegurar os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e reprimir a violação da legalidade democrática como, numa síntese feliz, o define a Constituição portuguesa.
Foi, aliás, nesse mesmo sentido que a MEDEL definiu, nos seus «Elementos para um Estatuto do Magistrado Europeu», a autonomia do Ministério Público, como pressuposto da independência do «poder judicial».
Na verdade, só o Ministério Público, por causa das funções que lhe estão cometidas, pela autonomia da iniciativa de que dispõe, garante ao «poder judicial» as características da independência, inerentes à actuação sem influência de órgãos dependentes de outros poderes.
2.2. As funções do poder judicial
Revelando-se unitárias teleologicamente e, por isso, funcionalmente interdependentes, as funções do Ministério Público e as funções jurisdicionais são, apesar disso, diferentes, no seio do poder judicial.
É, no entanto, dessa diferença que resulta a própria segurança deste poder.
Desenvolvendo-se como um processo dialéctico, em sínteses sucessivas, cada vez mais depuradas, o poder judicial revela-se, no seu exercício, de forma, também ela diferente, dos outros poderes de Estado.
De qualquer forma, a elaboração metodológica da «função» do Ministério Público obedece, ela também, aos mesmos valores e finalidades da função de síntese da actividade jurisdicional; porque se obriga a integrar, desde logo, os elementos antitéticos surgidos na sua formulação. Disso e por isso, se distingue da função (externa mas confluente à função judicial) da advocacia, que é vinculada ao interesse único do constituinte, mesmo devendo ser exercida no respeito integral da lei e do direito.
Em suma, o poder judicial (tendo funções plurais, dirigidos embora para um mesmo objectivo), só o é numa medida realmente diferente dos outros poderes de Estado.
Daí que a necessidade e forma do seu controlo democrático (interdependência) deva revestir características absolutamente diferentes das que regem os outros poderes. Isto é, não pode significar sob pena de negação própria - perda ou subordinação de iniciativa, autonomia e, portanto, de independência.
3. A Constituição portuguesa e o poder judicial
3.1. O Ministério Público como órgão do poder judicial na constituição judiciária
A Constituição portuguesa - que estruturou os diversos poderes do Estado em função da parcela de soberania que cada órgão exerce, assegurando simultaneamente princípios de separação e interdependência de poderes, - definiu, na sua Parte III, a organização do poder político, englobando no respectivo Título V, consagrado aos Tribunais, não só a organização dos Tribunais, como também o estatuto dos juizes e do Ministério Público.
Daí e desde logo, se descortina na intenção do Constituinte o intuito de referir o Ministério Público aos Tribunais e, portanto, ao «poder judicial».
Mas, nem só do argumento sistemático e formal resulta a inserção do Ministério Público no «poder judicial», tal como concebido pela Constituição.
Como referimos já, também a análise das incumbências constitucionais dos Tribunais apontam, em consonância com as competências igualmente constitucionais do Ministério Público, para uma identidade de desígnios e complementaridade de funções, de forma que este último actua ou deve actuar, sempre e só, na perspectiva das funções daqueles.
Isto é, o Ministério Público, que constitucionalmente está encarregado de exercer a acção penal e defender a legalidade democrática, fá-lo - e só por isso lhe é, consequente e coerentemente, atribuído o monopólio daquelas funções - na perspectiva de corresponder, activamente, às incumbências dos Tribunais, de assegurar os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e de reprimir a violação da legalidade democrática.
É assim, pois, o Ministério Público, o órgão que, dotado da sua autonomia constitucional, confere ao «poder judicial» a iniciativa para que os Tribunais cumpram, com independência, as funções que a Constituição lhes incumbe. Tal órgão que, constitucionalmente, não representa um poder diferenciado, pela sua finalidade, do «poder judicial» e goza de autonomia constitucional, face aos outros órgãos do poder central, regional ou local, tem necessariamente, de ser entendido como órgão do «poder judicial».
Referem aliás, Gomes Canotilho e Vital Moreira: «Na «constituição judiciária», o Ministério Público surge como um órgão do poder judicial ao qual estão cometidas as funções de representação do Estado, do exercício da acção penal, da defesa da legalidade democrática e dos demais interesses determinados na lei (art. 221.º).
«A CRP não configurou o Ministério Público como órgão de natureza administrativa, dependente do Governo, mas sim como órgão independente, integrante da organização judiciária, com estatuto próprio e autonomia institucional (art. 221.º-2), e dotado de governo próprio através da Procuradoria-Geral da República (art. 222.º), cujos órgãos são o Procurador-Geral da República, designado pelo Presidente da República, e um Conselho Superior cuja composição inclui membros designados pela Assembleia da República e membros eleitos pelos próprios magistrados».
Referindo-se, depois, aos conselhos superiores, dizem ainda os mesmos juristas: «... Trata-se de órgãos de defesa da independência externa da magistratura, que, na sua composição mista - elementos eleitos pelas respectivas magistraturas e membros designados pelos órgãos de soberania -, procuram conciliar uma certa medida de auto-governo, com o princípio de legitimação democrática externa, evitando os perigos de uma concepção corporativa da magistratura, desvinculada de qualquer ligação à representação democrática»
É porém Cunha Rodrigues, no estudo mais completo que conhecemos, em Portugal, sobre o Ministério Público, quem, conceptualmente, melhor analisou o Ministério Público como instituição e na Constituição portuguesa.
Diz ele: « ... O Ministério Público está hoje organizado como uma magistratura processualmente autónoma em dois sentidos: no da não ingerência do poder político no exercício concreto da acção penal e na concepção do Ministério Público como magistratura própria, orientada por um princípio de separação e paralelismo relativamente à judicatura.
«Esta concepção é reafirmada em vários passos pelo Código de Processo Penal: ao elaborar o princípio de objectividade (art. 53.º), na aplicação aos magistrados do Ministério Público das disposições relativas aos impedimentos, recusas e escusas do juiz (art. 54.º), na obrigação do Ministério Público investigar à charge et à décharge (art. 262.º), na exclusão do Ministério Público das regras de conduta dos advogados e defensores (art. 326.º) e no reconhecimento de legitimidade para recorrer no exclusivo interesse do arguido (art. 4Ol.º).
«Encontrado o conceito de órgão de justiça como aquele que melhor exprime a posição do Ministério Público no processo penal e também a sua natureza, ficam por equacionar os problemas de qualificação que resultam de outras atribuições que, não sendo determinantes, têm, pela sua variedade e amplitude, um potencial considerável de identificação.
«Se percorrermos estas atribuições, acabaremos por concluir que todas se reconduzem à realização da justiça ou à promoção e defesa da legalidade e, em qualquer caso, a regras estritas de estatuto.
«É certo que a configuração interna da actividade que concretiza aquelas atribuições é materialmente administrativa, se, por oposição, assim devemos classificar uma actividade que não visa a declaração do direito do caso.
«Mas não é isto fundamental para determinar ou excluir a natureza judicial de uma actividade...
« ... O que é decisivo na actividade do tribunal e na actividade do Ministério Público é o plano de actuação e os fins a que uma e outra estão pré-ordenados e se dirigem.
«Ora, tanto o plano como os fins de uma e outra actividades são intrinsecamente judiciais, porque, estando sujeitos a um estatuto definido para o poder judicial, operam (melhor, cooperam), numa relação de necessidade, com a realização última das atribuições dos tribunais.
«Concluiremos, assim, no sentido de que o Ministério Público é um órgão judicial, integrado, com autonomia, no poder judicial, embora dotado de atribuições que não são materialmente jurisdicionais nem se confinam às exercidos pelos tribunais.»
3.2. Os propósitos expressos do Constituinte
Convém, a propósito, recordar, que foram precisamente esses os objectivos do Constituinte e designadamente dos representantes dos dois maiores partidos, então, como hoje, representados na Assembleia.
Dizia, à época, aflorando a questão, embora sem grande preocupação de rigor técnico, José Luís Nunes: « ... Eu entendo que nós devemos ter consciência de que o tribunal não é só o juiz. O Tribunal é formado pelo juiz, pelo Ministério Público e pelos advogados, que também fazem parte do tribunal ... »
No mesmo sentido, referia Barbosa de Melo: «... Por um lado, o princípio da autonomia, que nós entendemos no sentido de conferir ao corpo constituído pelo Ministério Público uma independência perante os poderes políticos...
... Parece importante, na verdade, que a perseguição de crimes ou a luta contra a criminalidade não dependa necessariamente das opções políticas concretas feitas pelo governo em cada momento...
... E é a ideia de se dizer que o Ministério Público só tem sentido, só funciona, só actua na órbita dos tribunais. Quer dizer, o Ministério Público não se pode arvorar num qualquer órgão que proceda à gestão de outras tarefas do Estado que nada tenham a ver com o poder judicial ... » Mas, Barbosa de Melo vai mais longe e já então alcança claramente que a independência do «poder judicial» não se resume às garantias atinentes ao estatuto dos juizes. Explicita portanto: «... sendo os juizes, por natureza, instâncias passivas no sentido de só actuarem quando são estimulados por outros órgãos, pelos particulares ou pelo Ministério Público, sendo os tribunais órgãos portanto passivos que a intervenção dos tribunais na moralização, na juridificação permanente da vida colectiva dependa não de critérios oportunísticos dos políticos mas da consciência ética e profissional daqueles a quem incumbe o dever de estar atentos e de promover em tempo oportuno o cumprimento da legalidade. Entende o Partido Popular Democrático agora, e suponho que entenderá depois também, que o Ministério Público deve ser estruturado por forma que a intervenção dos juizes não esteja dependente da pressão indirecta que durante muitos anos, muitas décadas neste país, se fez através do Ministério da Justiça sobre e por intermédio dos agentes do Ministério Público."
Isto é, quer os deputados do PS, quer os do PPD, procuraram, através da configuração constitucional inicial do Ministério Público, configuração aclarada e precisada no mesmo sentido nas revisões subsequentes, arquitectar uma independência para o «poder judicial» que se não resumisse à independência da função jurisdicional, através das garantias estatutárias dos juizes. Desenvolvendo um conceito amplo e funcional de independência do «poder judicial», a Constituição dotou-o portanto, do Ministério Público, como órgão indispensável àquele propósito.
3.3. Síntese
Podemos, assim, concluir que, em Portugal, o Ministério Público é um órgão do poder judicial e que este constitui, por isso, um verdadeiro poder de Estado e não, como noutros países, uma mera função constitucional, dependente, em última análise, de outros órgãos de soberania.
4. As propostas de revisão dos estatutos dos magistrados e a independência do poder judicial
4.1. O auto-governo
De tudo o que antes se disse, resultam agora mais evidentes as repercussões que algumas propostas (mais, ou menos, contraditórias, na aparência), avançadas por certos sectores políticos, desde há cerca de três anos, podem comportar para a independência do poder judicial, da sua função jurisdicional, para a independência dos juizes e o estatuto e autonomia do Ministério Público.
Afirmações de que a independência dos juizes não está em causa, nem se discute, constituindo uma aquisição incontornável do Estado de Direito, parecendo definitivas nesta matéria, não são esclarecedoras, quanto ao alcance do conceito de independência que se quer, ainda, reservar para o poder judicial e permitem, por isso, apreensões quanto ao objectivo de propostas recentes, tanto mais que estão ainda presentes algumas iniciativas legislativas, cujo significado último ficou afinal por esclarecer.
Falar, por isso, da independência dos juizes - como se da independência do poder judicial se tratasse - significa, ou pode significar, na verdade, que não se pretende associar a ela a autonomia do Ministério Público e, portanto, que se pretende reduzir aquele poder do Estado a uma função jurisdicional externamente manipulável.
Se, além do mais, acrescentarmos àquela tese uma outra, também recentemente esboçada, e que consiste na ideia de que o auto-governo das magistraturas em nada importa para a independência dos magistrados, mormente dos juizes, pois esta apenas deve operar a nível concreto de cada decisão, fica criado o cenário para uma total revolução dos princípios que até agora enformaram a constituição judiciária.
É que o auto-governo das magistraturas, se incide em grande parte na gestão das carreiras dos magistrados - e só por isso, evita manipulações externas, resultantes de possíveis transferências oportunas, ou promoções premiadas - visa, como já se viu também, evitar a interferência directa ou indirecta de outros poderes, no rigoroso cumprimento da lei.
Confundir auto-governo, nos termos em que a Constituição o materializa para ambas as magistraturas, com governo corporativo do poder judicial, é esquecer deliberadamente que, em qualquer dos dois conselhos de que aqui se trata, os membros eleitos, ou designados por outros órgãos de soberania, estão em maioria e que as funções constitucionais e legais desses órgãos não lhes permitem (porque todos os magistrados juizes ou do Ministério Público estão vinculados ao cumprimento da lei, no respeito pelo princípio da igualdade do cidadão perante ela) dirigir politicamente, ou elaborar políticas judiciárias, à revelia dos órgãos políticos representativos.
4.2. As competências dos Conselhos Superiores e os órgãos de governo do Ministério Público
Por outro lado, as competências do Conselho Superior do Ministério Público são bastante diferentes, por defeito, das do Conselho Superior da Magistratura.
Este último, é verdadeiramente o único e autêntico órgão de governo da magistratura judicial, enquanto o governo do Ministério Público se divide - com relevância acrescida para este - entre o Procurador-Geral e o Conselho Superior do Ministério Público. É a chamada estruturação monocrática do Ministério Público que Cunha Rodrigues analisa - não se pronunciando porém sobre os méritos ou deméritos da solução legal encontrada - e explica da seguinte forma: «... Sendo o Ministério Público uma magistratura predominantemente monocrática, isto é funcionando - normalmente por intermédio de órgãos ou agentes unipessoais, concentra-se na posição do procurador-geral da República a representação do Ministério Público e as atribuições que, pertencendo à Procuradoria-Geral da República, não se encontram confiadas a outros órgãos. Em breves termos, pode dizer-se que só estão atribuídas a órgãos colegiais - o conselho superior e o conselho consultivo - aquelas funções que, respeitando à gestão e disciplina da magistratura ou à interpretação da lei, não se encontram directamente ligadas à actividade processual ou ao exercício concreto das competências de iniciativa e acção.»
Acresce, ainda, que o Ministério Público é uma magistratura hierarquizada. Ora, como explica Cunha Rodrigues: «... a hierarquia do Ministério Público corresponde também a necessidades impostas pela natureza das funções e por um objectivo de democratização da administração da justiça ... » e desenvolve: «... é especialmente por intermédio do Ministério Público que se asseguram as finalidades de uniformização da jurisprudência e da igualdade do cidadão perante a lei e a justiça. Por via dos recursos (particularmente dos recursos para uniformizar jurisprudência e de constitucionalidade), o Ministério Público potencia a unidade do direito e a igualdade dos que recorrem aos tribunais ... ».
Ora, é precisamente esta característica da maioria dos Ministérios Públicos europeus que, por um lado, pode e é, nalguns países e sistemas, utilizada para as interferências e condicionamentos ilegítimos, efectuados por outros poderes, sobre o poder judicial.
Neste sentido e devido ao acompanhamento que, apesar de tudo, o Conselho Superior do Ministério Público faz hoje, regular e atentamente, das funções e desempenho do Procurador-Geral da República (ligadas à actividade ou ao exercício concreto das competências de iniciativa e acção) e dada a sua proximidade e adequação funcional e legal àquele objectivo, preocupante se torna, sem outras explicações globais, ouvir falar da criação de um Conselho único para as duas
magistraturas, a criar em sede de revisão constitucional. Com efeito, a manter-se no mais a organização monocrática e o princípio hierárquico de estruturação desta magistratura, pode o Ministério Público - desacompanhado o Procurador-Geral de um conselho que lhe esteja próximo - vir a ser utilizado em sentido e com objectivos distintos daqueles para que foi concebido até agora, pela Constituição e a lei. Isto apesar de, formalmente, os magistrados poderem, eventualmente, continuar a ter a sua carreira gerida, ao menos no que respeita a classificações e disciplina, por um órgão idêntico ao que hoje os governa.
Teríamos, em suma - esse sim - um Conselho com funções exclusivamente corporativas, e em contrapartida, um governo do Ministério Público exclusivamente monocrático e não fiscalizado ou informado por membros de origem parlamentar e da própria magistratura. Abdicar-se-ia assim do controlo e fiscalização democrática efectiva dos membros do órgão político plural que é a Assembleia da República - ali devidamente esclarecidos pelos magistrados, os outros membros que compõem o Conselho Superior do Ministério Público - e que tem especial vocação para esse objectivo.
Nestes termos, já pouco restaria da (alegadamente) pretendida independência do poder judicial, reduzida, na melhor das hipóteses, à independência subjectiva dos juizes, na apreciação do caso concreto.
4.3. Determinação dos caminhos possíveis de reforma do sistema
Se, no entanto, o que afinal se procura é encontrar melhores instrumentos de controlo e transparência dos órgãos de governo das magistraturas, e designadamente do Ministério Público, cremos existir um largo espaço para a obtenção de consensos.
Duas linhas de trabalho poderão então ser definidas: uma dentro do espírito e letra da actual Constituição; outra numa perspectiva de revisão.
4.4. Alterações no respeito da actual constituição judiciária - maior transparência e controlo dos órgãos de governo
No âmbito da actual Constituição, poder-se-ão sempre ampliar, legalmente, os poderes de iniciativa do Conselho Superior do Ministério Público de forma a alargar a este órgão, plural por natureza e composição, parte das atribuições e competências exclusivas do Procurador-Geral da República. Desta forma se reforçaria a participação do Parlamento - único órgão que, como refere o Professor Gomes Canotilho, tem, para além dos magistrados eleitos, legitimidade para o integrar - no acompanhamento das iniciativas e acção do Ministério Público.
Do ponto de vista da transparência - como acontece noutros países e se defende no projecto de estatuto da MEDEL - importaria consagrar o princípio da publicidade geral das decisões dos órgãos de governo das magistraturas e, como se estabelece já hoje em França, a imposição, a nível processual, do conhecimento, pelos sujeitos processuais, das determinações hierárquicas concretas e casuísticas, designadamente daquelas que determinam o destino final dos autos.
4.5. A revisão constitucional - aprofundamento do modelo original da constituição judiciária
Numa perspectiva de revisão constitucional, sem pôr em causa o que antes se propôs, pareceria interessante analisar, à luz da nossa experiência, uma recente proposta dos nossos companheiros espanhóis da UPF, que defende a legitimação parlamentar do Procurador-Geral.
Na verdade, a eleição, por maioria qualificada de dois terços, do Procurador-Geral, além de conferir uma legitimidade acrescida àquele órgão, permite centrar no parlamento, órgão fiscalizador por excelência, o controlo democrático do poder judicial, o que parecer ser, afinal, a preocupação geral (aparente) das diversas propostas até agora publicitadas.
Nestes termos, permitir-se-ia, além do mais, agora numa perspectiva correcta, configurar a estatuição de um mandato para o Procurador-Geral, que garantisse, simultaneamente, uma responsabilização efectiva e os princípios republicano e democrático da proibição da vitaliciedade dos cargos e da renovação dos cargos políticos (Gomes Canotilho)
Nem se diga que se trata de uma solução completamente inédita: no Brasil, a actual Constituição estatui já uma intervenção parlamentar no processo de designação e destituição do Procurador-Geral da República. Como refere Hugo Nigro Mazzilli: «... Quanto ao Procurador-Geral da República, posto ainda escolhido pelo Presidente da República, pela primeira vez será necessariamente um dos integrantes da carreira e terá mandato certo, princípio este de aplicação imediata (arts.128 § 1.1º e 129 § 2.º). Sua destituição, por iniciativa do chefe do Executivo federal, agora deverá ser precedida de autorização da maioria absoluta do Senado Federal...
«... Na Constituição de 1988, porém, não se conseguiu que o Procurador-Geral da República fosse escolhido pela classe ou pelo Poder legislativo; nem ao menos que a classe elaborasse a lista tríplice, que agora é prevista na escolha dos demais procuradores gerais.
«Mesmo assim, significativo avanço foi consagrado na Constituição de 1988, pois agora o Presidente da República terá de escolher o Procurador-Geral da República dentre integrantes da carreira, de mais de trinta e cinco anos, devendo o seu nome ser aprovado pelo Senado federal, por voto secreto, após arguição pública (art. 52, III e). E, o que é mais importante, também de forma inédita na nossa história, o Procurador-Geral da República agora terá mandato, ficando a sua exoneração de ofício, antes do término deste, na dependência da aprovação da maioria absoluta do senado, por votação secreta (art. 52, XI, e 128, §§ l.º e 2.º)».
Com as devidas adaptações, dados os diferentes modelos constitucionais, o certo é que o modelo de participação do poder legislativo na escolha do Procurador-Geral da República pode contribuir, no nosso país (onde ultimamente o papel da fiscalização do Parlamento tem sido tão questionado), para o reforço do prestígio desta instituição, sem, no entanto, se porem em causa os poderes do Presidente.
Desta forma se faria confluir, numa opção comum, a vontade e a legitimidade de dois órgãos (de legitimidade directa e não derivada, como a do Governo), que têm por função fiscalizar politicamente o exercício da actividade normal das instituições democráticas.
Finalmente, pôr-se-ia fim - cremos que de vez - à «querela» da legitimidade democrática do poder judicial, sistematicamente suscitada sempre que um qualquer político é alvo de procedimento judicial. É que, assim, todas, ou quase todas, as forças políticas do Parlamento, bem como o Presidente da República, se tornariam co-responsáveis na escolha da cabeça do Ministério Público, e no acompanhamento da sua actividade (através do conselho próprio) e, por via dele, de toda a iniciativa e actividade do poder judicial.
Donde se conclui que só numa perspectiva de reforço da transparência e do alargamento simultâneo da participação parlamentar, na escolha parcial e no controlo dos órgãos do governo do Ministério Público, tem interesse e significado democrático e legitimador rever a Constituição, ou alterar o estatuto desta magistratura.
5. Conclusões
1. O poder judicial, como qualquer outro poder do Estado, tem de caracterizar-se (enquanto tal) pela sua independência face aos demais poderes.
2. O conceito de independência pressupõe - no relacionamento de poderes - a capacidade de iniciativa com autonomia, no exercício das funções que a cada um compete e não, essencialmente, a definição estrita das fronteiras das mesmas.
3. Daí que não possa o poder judicial cingir-se à função jurisdicional, que é, por definição, passiva e imparcial.
4. Autonomia e iniciativa, características próprias do Ministério Público, por causa das suas atribuições, são, deste modo, indispensáveis ao poder judicial - enquanto poder - e sem elas não se pode falar senão de «autoridade judiciária».
5. A Constituição portuguesa estruturou o poder judicial articulando as suas funções em duas magistraturas autónomas, que as prosseguem no âmbito das suas competências constitucionais, tendo em vista os mesmos fins, que são, afinal, os que comete aos Tribunais.
6. Isso resulta evidente, não só da inserção sistemática do Ministério Público na Constituição - Título V, consagrado aos Tribunais - como da interdependência das incumbências do Ministério Público e da sua relação necessária com as dos juizes.
7. Com efeito, as funções atribuídas constitucionalmente aos Tribunais (assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados) só podem ser exercidos com efectividade, na medida e por causa das funções constitucionais do Ministério Público (exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar) e do seu estatuto de autonomia face aos demais órgãos do Estado, que se traduz, além do mais, na autonomia de iniciativa e acção.
8. O próprio constituinte, desde logo, concebeu o Ministério Público como órgão do poder judicial e só nessa medida determinou as suas funções.
9. Neste sentido, falar da independência do poder judicial como significando unicamente a independência da função jurisdicional ou referindo-a exclusivamente à independência dos juizes é redutor e afecta o próprio conceito de um poder judicial independente.
10. As propostas de revisão dos estatutos das magistraturas que não tenham em conta as funções específicas dos órgãos de governo de cada magistratura podem pôr em causa o equilíbrio de controles existente actualmente e podem mesmo, assim, abalar a sua independência.
11. Se o Conselho Superior da Magistratura é o único órgão de governo dos juizes, o Ministério Público é governado por dois órgãos: o Conselho Superior do Ministério Público, com poder efectivo na gestão das carreiras dos magistrados e acompanhamento do exercício do Procurador-Geral da República; e este, preferentemente, a nível da acção e da iniciativa funcional.
12. Propor a unificação dos Conselhos pode pois contribuir - dada a distância a que esse órgão ficaria do exercício do Procurador-Geral da República - para reforçar a vertente monocrática desta magistratura, reduzindo o controlo democrático que sobre todo o Ministério Público se exerce através do seu órgão plural de governo e fiscalização, o Conselho Superior do Ministério Público.
13. No entanto, se se pretende um reforço da democraticidade dos órgãos de governo do Ministério Público, dois caminhos podem ser trilhados; um no âmbito da actual Constituição, outro no âmbito de uma eventual revisão constitucional:
a) no primeiro caso, bastaria aumentar os poderes do Conselho Superior do Ministério Público, fazendo-o comparticipar dos poderes do Procurador-Geral da República, designadamente a nível da definição das orientações doutrinárias gerais e na fiscalização das orientações hierárquicas concretas e processuais, além de tornar estas acessíveis ao Tribunal e às partes interessadas;
b) no segundo caso, propõe-se - sem prescindir das medidas que antes se enunciaram - que a escolha do Procurador-Geral da República venha a competir ao Presidente da República e ao parlamento - por uma maioria qualificada de dois terços - assim se restituindo aos órgãos constitucionais vocacionados para as funções de fiscalização a tarefa de escolher o titular do órgão judicial ao qual compete a defesa da legalidade democrática.
14. Só nesta perspectiva, de alargamento da transparência e da participação parlamentar, tem significado democrático rever o estatuto do Ministério Público.