A TUTELA JUDICIAL DO MEIO AMBIENTE
Edson Aguiar de Vasconcelos
(Juiz auxiliar da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro)
Um tema preocupante - A abordagem da questão ambiental recomenda sempre algumas referências à sua importância vital.

Nunca é desnecessário enfatizar o reclamo de racionalização e cientificidade no aproveitamento das terras tropicais brasileiras, cuja erosão, em decorrência de maltratos de áreas agrícolas e pastoris, é mais acentuada. É óbvio, por outro lado, que se não pode descurar da preservação do ciclo da água, pois somente muito menos de 1% do manancial do planeta é potável e em certas regiões já se apresenta rara, quando não está poluída com detritos cloacais, ejetos fabris ou envenenamento com pesticidas, constituindo verdade absoluta, que a todos envergonha, o lastimável e perigoso estado de degradação de muitos dos nossos rios, lagoas, manguezais e até mesmo da Baía de Guanabara, esta última situação uma das causas da frustração brasileira de a Cidade do Rio de Janeiro vir a sediar os Jogos Olímpicos de 2004.

Nosso ar está cada vez mais pobre em oxigênio, por diversas razões que não podem ser aqui resenhadas, avultando, no entanto em proporção o desmatamento e a emissão de gases de efeito estufa, tudo a exigir uma pronta e eficaz reação hoje. Não se pode olvidar que o ecossistema é dotado, além dos elementos abióticos (terra, água e ar), de uma estrutura biótica, integrada dos seres vivos, que se encontrem em determinado meio, cuja preservação não é apenas necessária a manutenção da rede alimentar humana, sendo sabido que o rompimento do equilíbrio destas cadeias bióticas também pode levar a degradação ecológica.1

A tomada de consciência ecológica - A irracional utilização dos recursos naturais já remonta séculos, mas somente em 1972 representantes de 114 países reuniram-se na Suécia em Conferência das Nações Unidas e aprovaram a Declaração de Estocolmo sobre o ambiente, ficando definido no 1º princípio daquela declaração que o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e a condições de vida satisfatórias, num ambiente cuja qualidade lhe permita viver com dignidade e bem-estar, incumbindo a todos o dever solene de proteger e de melhorar o ambiente para as gerações presentes e futuras.

Esta Declaração foi a base de todas as medidas ulteriores no âmbito da proteção do ambiente. No dizer do ex-Provedor de Justiça de Portugal, Dr. Mário Raposo, a Declaração de Estocolmo deu início à "era ecológica", conferindo foro de cidadania universal ao direito do ambiente2 .

Dez anos depois, um outro texto foi aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas (Resolução 37/7, de 28 de outubro de 1982) adotando a Carta Mundial da Natureza, que regulamentou minuciosamente os princípios da Declaração de Estocolmo.

Entre os textos de 1972 e 1982 intercalou-se o Programa das Nações Unidas para o Ambiente ( Resolução 2.996 - XXVII), que, em virtude do caráter não vinculativo da Declaração, criou estruturas institucionais para a sua concretização, principalmente mediante um sistema jurídico para a defesa do ambiente.

Proclamada a Declaração de Estocolmo, inicialmente, países do Terceiro Mundo, de certa forma liderados pelo Brasil, desconfiaram das recomendações dos países ricos, ao argumento de que a "maior poluição é a pobreza" e que "a industrialização suja é melhor que a pobreza limpa.".

Édis Milaré3 observa que a conscientização entre nós somente começou a tomar corpo no início da década de oitenta, primeiro com a edição da Lei nº 6.938, de 31.8.81, que conceituou o meio-ambiente como objeto de proteção em seus múltiplos aspectos; depois com a Lei nº 7.347/85, que instituiu a ação civil pública, instrumento que transformou a agressão ambiental em "caso de justiça".

Ao influxo da Declaração de Estocolmo, diversos países conferiram dignidade constitucional à questão do meio ambiente, existindo normas respeitantes à matéria nas Constituições de 44 Estados, bem como nas de 11 Estados norte-americanos.

O Brasil não ficou de fora desse "movimento de constitucionalização", embora a respectiva inserção constitucional somente tenha ocorrido com o advento da Carta de 1988, que, em verdadeira consagração da questão ambiental, ao tema dedicou todo o Capítulo VI do Título VIII, no qual exsurge a proclamação do direito fundamental de fruição do meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225).

O Constituinte de 1988 não se limitou ao âmbito das normas programáticas, pois, além de enunciar o direito de que se trata, estabeleceu diretrizes para garantir sua efetividade.

O dispositivo constitucional em comento classificou o meio ambiente como "bem comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida". A consagração na Constituição do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, além de impor ao poder público o dever de defender e preservar esse bem maior, em dimensão prospectiva inclusive, eis que se reconhecem deveres às atuais gerações em prol das futuras, também legitima e exorta a atuação de todos os cidadãos, isoladamente ou em comunhão associativa, ao exercício supletivo da ação estatal, conferindo-lhes não só instrumentos jurisdicionais para a estrita observância das regras protetivas minuciosamente descritas no preceptivo em pauta, mas também atribuiu-lhes legitimidade participativa de intervenção em procedimento administrativo de impacto ambiental (art. 225, § 1º, IV) e, na perspectiva dos deveres, determinou a responsabilização, nas órbitas administrativa, penal e civil, daqueles cuja conduta ou atividade sejam consideradas lesivas do meio ambiente (art. 225, § 3º).

Do regramento do art. 225, conforme exposto, pode-se entrever uma estrutura principiológica, integrada pelos princípios da prevenção, da responsabilização, mais conhecido como princípio do poluidor-pagador, e da cooperação ou da participação.

Essa capa principiológica constitui a consagração no texto constitucional brasileiro de valores subjacentes a todas as ações mundiais de defesa da ecológica, que foram fincadas no concerto de nações a partir da sempre referida Declaração de Estocolmo.

Posição do Judiciário - É perceptível que a defesa dos direitos fundamentais à margem da via judiciária torna inócuo o arcabouço constitucional estruturado para a defesa desses direitos. Foi por esta razão que o Constituinte Federal, reforçando o princípio da acessibilidade ao Judiciário - já agora contemplando, em fórmula genérica, os direitos difusos e coletivos - armou o Estado e a comunidade com os instrumentos jurisdicionais suficientes à efetivação do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

O Judiciário precisa responder a esse desafio com a consciência de que o legislador constitucional de 1988 plasmou uma Constituição de índole constitutiva, em cujo quadro a exigência de racionalidade do discurso jurídico deve separar-se das tradicionais "anti-ideologias" e neutralidade do direito, para se assumir como racionalidade de um Estado de Direito Democrático Constitucional.

O meio ambiente adquiriu dignidade constitucional, com status de bem essencial "à sadia qualidade de vida". Por esta ótica, alguns dogmas do Direito Constitucional clássico entram em crise de autocompreensão, arrolando-se, desde já, o secular princípio da imparcialidade ou neutralidade do juiz. Em tema ambiental, qual será a dimensão desse princípio? Será ele aplicável à questão ambiental em sua inteireza? Ou deve ser encarado em uma perspectiva dialeticamente plástica, na consideração de não constituir o bem ambiental, eventualmente objeto de uma demanda judicial, direito subjetivo exclusivo dos demandantes, senão integrante do patrimônio de toda a coletividade. É de se perguntar se essa circunstância e o dever geral de proteção do meio ambiente não determinam uma atuação defensiva por parte do Judiciário. Se a resposta desta indagações for positiva, de lege ferenda, pode-se avançar, dentre outras providências, à utilização judicial da regra in dubio pro meio ambiente e fixar-se na pessoa de imputado violador do meio ambiente o ônus probatório, que se tornaria processualmente invertido. São colocações que necessitam ser melhor discreteadas pelos teóricos e operadores do Direito.

Dúvidas não há de que a problemática constitucional do meio ambiente se apresenta carregada de complexidade, mas o magistrado , antes de tudo, há de se munir de extrema sensibilidade humana, sem descurar dos elementos básicos da eficiência na prestação da atividade jurisdicional, enfatizadas a celeridade e a preparação técnica que o Direito Ambiental, em formação, reclama, ficando, por todos esses motivos, banidas as práticas de improvisação, vindo aqui a calhar a advertência de Diogo Freitas do Amaral aos juízes portugueses: "de nada valerá termos legislação muito completa, mesmo que seja muito bem redigida, e muito bem concebida, se os Tribunais não estiverem sensibilizados para esta problemática, e se não forem capazes de corajosamente impor medidas que sejam adequadas nos caos de ofensa ecológica. De nada valerá a lei se os Tribunais não chamarem a si a responsabilidade de serem co-participantes na ingente e fundamental tarefa da proteção do ambiente, que a todos nos impõe a nossa condição de cidadãos ativos e conscientes."4


1Cfr. Diogo Freitas do Amaral, "Introdução ao Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico", Ed. Forense, RJ, 1977 , ps. 24/29).

2In "Textos", revista do Centro de Estudos Judiciários de Portugal, "Ambiente", 1994, p. 118.

3Obra coletiva "Dano Ambiental - Prevenção, Reparação e Repressão", v. 2, ERT , SP, 1993, p. 264

4Análise Preliminar da Lei de Bases do Ambiente, in Textos", revista do Centro de Estudos Judiciários, "Ambiente", 1994, p. 258.