Teia Jurídica Paraná
Editor Executivo: Luiz Gustavo Fraxino
Tutela antecipada concedida contra a Administração Pública e dispensa de precatório (possibilidade de levantamento do numerário sem a prestação de caução se se tratar de verba alimentar) .
Emerson Odilon Sadim é Procurador do Instituto
Nacional de Seguridade Social do Mato Grosso do Sul, escritor e Professor
Universitário.
1 - Introdução
A gênese desta problemática
vem à lume quando se admite a tutela antecipatória contra
a Administração Pública, fato este, a nosso ver, que
deveria raiar-se pela impossibilidade.
Mas, se for a dita antecipação
concedida, e, demais disso, tratar-se de verba de caráter alimentar,
não somente a inexigibilidade do precatório se impõe,
como, igualmente despiciendo torna-se a prestação de caução,
sob pena de malferimento ao sistema processual e equivocada interpretação
constitucional.
Neste prisma instrumentalista
é que se desenvolverá o tema suso mencionado, com vistas
a que se abram novas perspectivas de seu estudo, na dinâmica dos
casos concretos, que, sabidamente, o sistema jurídico-positivo haverá
de dar, senão a melhor, pelo menos a mais plausível das respostas.
2 - Da ordem constitucional como
informadora da exegese jurídica
As normas jurídicas do
mais alto grau encontram-se lançadas na Constituição
Federal, mas, ainda assim, a relevância delas é diferenciada,
tendo em vista que umas veiculam regras, enquanto que outras, por sua vez,
consagram princípios, como magnificamente apregoado por ROQUE ANTÔNIO
CARRAZA.
Desta feita, e é por
isso que sempre digo, sem a dimensão de uma exegese principiológica,
o operador do direito passaria a tratar todas as normas como se iguais
fossem, sem dar-se conta de que uma regra, mesmo que constitucional, pode
ter conteúdo de dignidade dissemelhada.
Se somente os princípios
darão os parâmetros de uma escorreita exegese, já que
deles poderá se ter idéia exata do querido pelo regime jurídico
positivo, mister observar que, em algumas situações, existem
verdadeiras 'colisões de direitos fundamentais'. Ou seja, podem
ocorrer situações em que ter-se-ão dois direitos garantidos
constitucionalmente, mas, ainda assim, a moldura fática virá
exigir que um deles seja sacrificado. Como proceder em tais hipóteses?
Não se deslembrando que, uma vez mais, o plano das normas constitucionais
e, sobretudo, o altiplano dos princípios jurídicos devem
ser o norte almejado.
3 - Da colisão entre direitos
assegurados constitucionalmente
A presença de tensões
entre dois ou mais direitos protegidos, todos eles, no plano constitucional,
não é nova e nem tampouco trata-se de invenção
deste modesto escritor, isto, aliás, pode ser conferido na matéria
escrita pelo jurista TEORI ALBINO ZAVASCHI.
E, no caso em comento, não
se pode negar que há a presença de dois direitos fundamentais,
quais sejam: o direito de o Estado condenado a pagar seus credores, fazê-lo
via precatório (art. 100 da Lei Mater) e, por outro lado,
o direito de o administrado ter acesso a uma jurisdição
justa e eficaz (art. 5º, incisos XXXV e LIV, também da
Carta da República Federativa do Brasil).
4 - Dos princípios cardeais
frente às tensões de direitos fundamentais
O remédio para choques
de direitos, que se confrontem no momento de sua aplicabilidade, encontra
prescrição na lira de J. J. GOMES CANOTILHO, assim vazada:
"a solução do conflito há de ser estabelecida
mediante a devida ponderação dos bens e valores concretamente
colidentes, de modo a que se identifique uma relação específica
de prevalência de um deles".
Em síntese, pode-se dar
como cânones para a temática da controposição
de direitos fundamentais, os abaixo catalogados:
a) princípio da necessidade
- resumido na senda de que o conflito reinante haverá de ser real
e não passível de solucionamento via convivência harmônica
dos direitos em oposição;
b) princípio da restrição
minimizada - a limitação hermenêutica, em sede
de direitos fundamentais, haverá de pautar-se no limite estrito
do atendimento à colmatação dos direitos em choque;
c) princípio da proporcionalidade
- explicável na sanação de interpretações
que conduzam ao excesso, deixando entrever que a relatividade é
perceptível, também, no campo jurídico, e, por conseqüência,
a melhor argumentação é aquela que pondere os valores
em jogo;
d) princípio da salvaguarda
do núcleo essencial dos direitos fundamentais - para pacificar
o embate entre direitos fundamentais não se pode eliminar a substância
elementar de um deles.
5 - Da prevalência da decisão
concessiva de tutela antecipada, como meio de exeqüibilidade imediata,
frente ao instituto do precatório, se para atender o provimento
judicial houver recurso monetário
Sabidamente, o precatório
é a forma normal de solvimento de débitos do Estado, oriundos
de ordem judicial trânsita em julgado. E que, por isso mesmo, o requisitório
obedece todo um plano cronológico precedente ao desembolso do numerário,
como meio de se assegurar a devida previsão orçamentária.
Todavia, se a administração possuir dotação
para tal fim, nada impede que ela efetue o pagamento, porque, do contrário,
seria uma injusticável protelação.
De outro lado, todavia, a decisão
que concede a tutela antecipada é de plano exeqüível,
até porque o predito provimento de urgência tem como norte
"a utilidade da prestação jurisdicional e a busca da
celerização de tal tutela".
Então, in casu,
tem-se dois institutos jurídicos onde o fator tempo é tido
diferentemente para cada um deles, isto é, para o precatório,
a demora é mesmo da sua essência e, ao contrário, para
a tutela antecipada, o vetor temporal é de ser vencido a todo custo,
sob pena de malogro de tal meio procedimental.
Ora, se a Administração
Pública possuir numerário para solver uma quantia e, por
outro lado, se a ordem judicial haverá de ser cumprida a nível
de tutela de urgência, a principiologia acima mencionada recomenda
que é proporcional, razoável e jurídico, que o desembolso,
em caso que tal, seja levado a efeito fora dos parâmetros do requisitório.
Pensar-se de forma diversa,
a par de malferir o direito a uma jurisdição justa,
seria deixar que motivos caprichosos pudessem adentrar ao âmago da
Administração Pública, fazendo com que o precatório
deixasse de ser a via do respeito à ordem orçamentária
para transmudar-se em modalidade de procrastinação de solvimentos
de débitos do Estado. Ora, a própria moralidade, insculpida
no art. 37, caput, da Constituição Federal já
poria, terra abaixo, um entendimento de tal jaez, que, por um certo vezo,
ainda é, de certa forma, preconizado pela Administração
Pública.
Tem-se, ademais, outro argumento
que bem reforça a inexigibilidade do precatório para a espécie
em testilha, qual seja: o art. 100 da Carta da República, fala em
"sentença judiciária" como pontecializadora do
mesmo. Entrementes, o provimento judicial que não transitou em julgado
é despido de possibilidade de gerar ofício requisitório
a teor do que se extrai da letra do art. 730, do Código de Processo
Civil, guindado na índole de uma execução específica,
que, por isso mesmo, pressupõe um título judicial timbrado
pela definitividade. E, obviamente, o ato judicial que concede a tutela
antecipatória é um meio anômalo de engendrar atos de
executividade, por tratar-se de mera decisão interlocutória,
uma vez que o diploma processual civil exige, para a configuração
de título executivo, a existência de uma sentença condenatória
(art. 584, inciso I, do diploma processual civil).
Disso sobressai uma indagação:
para excutir uma tutela antecipada mister que se instaure, a título
de execução provisória, um novo processo, com vistas
a implementar a pretensão insatisfeita? Ou, ao contrário,
o art. 273, § 3º, do Código de Processo Civil, é
de ser interpretado com um norte diferenciado, vendo que a 'execução
provisória', ali existente, é apenas informadora de como
se procedimentalizar a execução da tutela de urgência?
Parece que neste último
rumo é o escólio doutrinário de J. J. CALMON DE PASSOS,
ao prelecionar que: "O § 3º do art. 273 prescreve que a
execução da tutela antecipada observará, no que couber,
o disposto nos incisos II e III do art. 588. Os referidos dispositivos
dizem respeito à execução provisória e preceituam
que ela não abrangerá atos que importem em alienação
do domínio (...) O § 2º do mesmo art. 273 já estabelecera
não ser possível a concessão da antecipação
havendo perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. Esses dispositivos
reforçam, decisivamente, o entendimento de que a antecipação
outra coisa não é senão emprestar eficácia
executória, de caráter provisório, à decisão
de mérito que dela seria desprovida. Cuida-se, em verdade, de uma
hipótese de execução provisória, acrescida
ao que prevê o art. 587 do Código e com os temperamentos postos
na lei".
Seria, com certeza, um contra-senso
pensar na abertura de uma execução, como processo autônomo,
na postulação do cumprimento de uma tutela antecipatória
de feitio condenatório, no mínimo, por estes pontos:
a) Se se entender como processo
de execução provisória o cumprimento de decisório
que deferiu tutela de jaez condenativo, abrir-se-ia prazo para o réu
embargá-la e, assim sendo, restaria suspenso o feito da referida
execução provisória. Onde se teria a razão
de ser da tutela emergencial?
b) possibilitando-se embargos,
como acima alinhado, seriam eles tidos na conta de cabíveis na hipótese
do art. 741 do diploma processual civil, que contém os permissivos
de forma taxativa. Muito bem: todos os incisos ali referentes têm
por hipótese de incidência situações posteriores
ao término do processo de conhecimento, exceto a do inciso I. Como
tornar factível uma fundamentação qualquer do art.
741 se nem sequer, em muitos dos casos da concessão da tutela antecipada,
houve ainda a citação do réu ou fora apresentada a
contestação? De maneira que tudo indica pela inexistência
de processo de execução provisória, sob pena de se
cogitar que haja uma 'execução sem possibilidade, ainda que
diferida, de contraditório'.
Bem por isso, que colhe-se a
lição de DONALDO ARMELIN, onde giza que: "Do sistema
implantado pelo art. 273 conclui-se que mister não se fará,
para tanto, a incoação de um processo novo, implicando a
aceitação da decisão interlocutória, que autorizar
a antecipação, com efeitos de título executivo judicial...".
Como cogitar-se de precatório,
que vem seguido de uma execução definitiva, tal como estabelecido
no art. 730, do Código de Processo Civil, se a 'execução
provisória' de tutela antecipada de feitio condenatório sequer
demanda o aforamento de processo específico? Quem requisitaria o
precatório? O próprio juiz da tutela emergencial? Após
transcorrido que lapso temporal?
De efeito, a tutela antecipada,
como é curial, se voltada contra a Administração Pública,
há de ser cumprida incontinente, sob pena de desvirtuamento de sua
ratio essendi que é, justamente, vencendo o tempo, precipitar
o atendimento do direito material do autor, ou, na brilhante linguagem
de ARRUDA ALVIM: "A decisão proferida dentro de um sistema
mais célere, em que se prescinde de audiência, sem lesão
às partes".
6 - Do levantamento de dinheiro
depositado, face à decisão de tutela antecipada que compele
ao solvimento de verba de índole alimentar, prescindibilidade de
ofertamento de garantia
Já que a conclusão
que se chegou no item anterior é de que o precatório torna-se
dispensável, soa oportuno inquirir: pode o beneficiado, com a prefalada
tutela antecipada, levantar numerário, em que Administração
Pública fora constrangida a depositar, sem prestar qualquer tipo
de garantia?
O § 3º do art. 273
do Código de Processo Civil informa que a executividade da tutela
antecipada, no que couber, segue os preceitos da execução
provisória. Ou seja, todas as vezes que a antecipação
estribar-se em levantamento de dinheiro, mister que seja prestada garantia,
como exsurge do art. 588, inciso II , do mesmo diploma legal.
Poder-se-ia objetar:
1º) O art. 588, inciso
I, do Código de Processo Civil, que exige a prestação
de caução não é aplicável à tutela
antecipada, ex vi legis: § 3º do art. 273, do mesmo codex.
Como, então pretender-se que haja ofertamento de garantia para o
levantamento de um numerário?
2º) Ainda mais, se se tratar
de lide de caráter alimentar. Porque preconiza a jurisprudência
pátria que, em execução provisória de verba
alimentária, não se há de prestar caução
(cf. RJTJESP 107/246). Destarte, e por analogia, não é de
se dispensar, também, da garantia exigida pelo inciso II, do art.
588, do Código de Processo Civil? Enfim, os institutos da caução
e o da garantia, previstos nos incisos I e II, do citado texto normativo,
não têm ambos a mesma finalidade, que é assecuratória?
O que não se precisa
na execução provisória de tutela antecipada é
prestar caução para inaugurar esta fase executiva, que, aliás,
em regra, ocorrerá no próprio processo de conhecimento, como
dantes fizemos questão de evidenciar. Porém, daí a
dispensar-se a caução em levantamento de depósito
vai uma grande distância, mesmo porque, a lei processual civil veio
de exigí-la, como se apreende do próprio § 3º,
do art. 273. Se não fosse essa a clara intenção da
norma, com certeza, teria abdicado de inserir tal exigência, como
fez com o inciso I do art. 588, do mesmo diploma legislativo.
Mas, se a ação
é de caráter alimentar, porque imbricada em vencimento funcional
(ou outra situação congênere), ainda assim, como demandar
caução para efetuar levantamento de depósito originado
de concessão de tutela antecipada? Não é isso incompatível
com a essência mesma deste tipo de litígio?
Verdadeiramente, se se está
frente à verba alimentar, ainda que em execução imprópria,
o certo é que se aplica, por analogia, a regra inserta no art. 732,
parágrafo único, do Código de Processo Civil, isto
é, mesmo diante de embargos à execução, que
são suspensivos de tal feito, pode o exeqüente-alimentando
efetuar o levantamento da verba depositada, sem que haja prestação
de caução, obviamente.
Este modo de pensar já
é bem antigo, basta conferir a ensinança de LAFAYETE: "o
alimentário não é obrigado a dar fiança para
receber os alimentos".
E não se pode perder
de vista, ainda, que a execução provisória de tutela
antecipada segue os ditames do art. 588 do Código de Processo Civil
"no que couber", como se vislumbra do muitas vezes citado §
3º, do mesmo codex. E a esta expressão 'no que couber',
com certeza, existe na lei exatamente para situações como
esta, ou seja, para verbas alimentares.
7 - Das conclusões
Tem-se, afinal, o seguinte:
a) dispensa-se o precatório
para a execução provisória de tutela antecipada, quando
a executada for a Administração Pública, em homenagem
ao rito procedimental próprio que guinda as medidas de urgência;
b) não se há,
igualmente, falar-se em prestação de caução
para levantamento de numerário depositado em virtude de decisão
concessiva de tutela antecipada, quando a pretensão de direito material
tiver conteúdo alimentar, por aplicação analógica
do art. 732, parágrafo único, do Código de Processo
Civil