(JSTJ e TRF - Volume 85 - Página 9)
DOUTRINA
DO PRINCÍPIO DA PROBIDADE ADMINISTRATIVA E DE SUA MÁXIMA EFETIVAÇÃO
JUAREZ FREITAS (*)
SUMÁRIO: I - Introdução. II - Sobre o fenômeno da ambigüidade dos textos legais e de sua superação, nos limites do sistema, pela via hermenêutica. III - O princípio da probidade administrativa e a legitimação passiva dos agentes públicos e dos terceiros beneficiários. IV - Espécies de improbidade administrativa e as sanções correspondentes. V - As penas de perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, competência e reflexos na esfera administrativa. VI - Das medidas cautelares, da atuação fiscalizatória do cidadão, dos legitimados ativos da ação de improbidade administrativa e derradeiros aspectos. VII - Conclusões.
I - Introdução
A história das leis, bem observada, tem sido fértil em atestar que várias disposições draconianas, não raro, assumem tais moldes, consciente ou inconscientemente, para não se deixarem cumprir. Diante de tal fenômeno e de sua recorrência, mister se faz encontrar o antídoto certo numa interpretação moderadora de textos assim drásticos e destemperados, no intuito de alcançar a máxima e razoável observância dos mesmos. Oportuno ter presente a serena e marcante lição de Montesquieu no sentido de evitar que o espírito enfurecido e revoltado faça com que a lei, criada para converter a sociedade, sirva apenas para torná-la mais culpada(1). Neste prisma, o estudo da Lei n. 8.429/92 representa, inclusive quando se pretende vê-la virtuosa, inegável fonte de perplexidades e desafios para o aplicador. Trata-se de legislação, não propriamente inédita(2), que introduz, com feições assaz peculiares, uma ação pública quanto ao objeto, a qual acarreta penalidades civis e, ao mesmo tempo, suspensivas do gozo de direitos políticos. Sua natureza reclama, modo agudo, uma visão coerente que opere compenetrada de que não são os silogismos formais os que servem para mitigar a angústia dos bons aplicadores em face dos intrincados dilemas da vida concreta.
Decerto, uma semelhante posição hermenêutica precisa proteger, por inteiro, a ótica da necessidade basilar de contribuir para uma interpretação guiada pela Lei Fundamental(3), e, com a mesma ênfase, há de contribuir para a mais improtelável e fulcral das mudanças no plano das relações administrativas, as quais devem ser firmemente reorientadas pelos princípios. Com efeito, o objeto das relações de administração nada mais há de ser do que a concretização dos princípios constitucionais, de sorte a permitir que o vínculo jurídico se aperfeiçoe pelo plexo dos liames volitivos com a vontade, por assim dizer pública. Destarte, a relação juspublicista, envolvendo a Administração, há de ser repensada com o objetivo de estimular que as nossas organizações coexistam à base do mais pronto reconhecimento de paradigmas éticos, no encalço de um Estado que não colime sufocar o que há de mais elevado e digno no indivíduo, tampouco ceda ao individualismo niilista. Ao mesmo tempo, um Estado no qual a denominada vontade geral não seja o mero fruto de uma abstração similar àquela dos que se resignam a nomenclaturas repletas de abjeções e de vilipêndios contra as nucleares reivindicações da moralidade, solidária e objetivamente partilhável.
Na senda de tornar factível a concretização principiológica através da inteligência comedida do diploma em apreço, arrole-se, de plano e desde logo, uma série de asserções eminentemente ilustrativas do preconizado neste estudo:
a) o Juiz, com firmeza de ânimo e espírito de moderação, deve considerar, com extrema acuidade, a "extensão do dano" e o "proveito patrimonial do agente" (art. 12, parágrafo único), motivo pelo qual, em especiais circunstâncias, pode e precisa determinar a aplicação, de modo parcelar, das penalidades retributivas, desde que tal postura brote do intuito fundamentado de robustecer o princípio, cuja concreção é o desiderato normativo;
b) com igual firmeza de ânimo, contudo, em se comprovando a improbidade administrativa que acarreta enriquecimento ilícito (art. 9º), por sua nota de irretorquível e gravíssima hostilidade ao interesse público, deve o julgador aplicar, na íntegra, as sanções cabíveis, assim como elencadas no art. 12, I;
c) nada obstante a dicção literal, considera-se facultativo o litisconsórcio da pessoa jurídica prejudicada (art. 17, § 3º) à vista inclusive da partícula disjuntiva presente no "caput", da mesma sorte que, para além da literalidade, resulta inegável cuidar-se de arresto, não de seqüestro, no art. 16, impondo-se, pois, os devidos cuidados no processamento;
d) as cominações relativas às múltiplas espécies de improbidade administrativa não se devem aplicar aos agentes que tenham condutas culposas leves ou levíssimas, exatamente em função do "telos" em pauta e por não se configurar a improbidade, nestas situações, sequer por violação aos princípios, sendo de grifar que a preservação do sistema jurídico não se coaduna com excessos de qualquer matiz;
e) em rigor, aconselha-se não cogitar de inversão do ônus da prova em face da situação descrita no art. 9º, VII, a qual deve ser entendida como simples exigência de que determinada prova seja vista como suficiente para o enquadramento do agente no tipo descrito;
f) a figura do dano moral precisa ter os seus contornos melhor definidos e objetivados, sendo, no entanto, indubitavelmente, dela que se cogita nas hipóteses ilustrativas do art. 11;
g) a regra de que a perda da função pública, por improbidade, sucede com o trânsito em julgado da sentença condenatória, não exclui a possibilidade de resultar tal perda do adequado procedimento administrativo, exceto em relação aos vitalícios;
h) sugere-se que a multa civil, potencialmente de elevada monta, sirva como sucedâneo reparatório do dano especificamente moral, mormente nos casos envolvendo a terceira espécie de improbidade;
i) a diferença do que sucede com a imprescritível ação de ressarcimento por danos materiais ao erário, nos termos do art. 37, § 5º da Carta Política, cumpre notar que a matéria comporta sutis distinções, significando que a reparação por dano especificamente moral precisa ser pleiteada com a estrita observância dos prazos prescricionais do art. 23, I e II.
Tais e outras soluções, a serem lançadas para resolver os embargos deste diploma de pronunciados reflexos em termos doutrinários e empíricos(4), fazem, de imediato, recomendável ressaltar que se empresta uma função decisiva à interpretação sistemática do Direito, sobremodo quando se pretende cominar sanções justas e ponderadas(5), diversas das penalizações ortodoxas (raras vezes, aliás aplicadas contra os grandes infratores). Acresce a tudo isso que, em se tratando de evitar ou de coibir a prática reiterada do dano moral contra o Estado Democrático, impõe-se, por todos os motivos, fazê-lo de modo ética e juridicamente irretocável.
Eis o propósito exegético. Almejando cumpri-lo, sempre sem olvidar a eleição da premissa maior de que a má-fé jamais se presume, em paralelo com a de que não se deve considerar o agente público objetivamente responsável em nosso sistema, passar-se-á, doravante, a enfrentar o plexo de assuntos mais relevantes a respeito da ação civil de improbidade administrativa, cujo advento brotou da incontornável determinação do art. 37, § 4º do Estatuto Fundamental.
II - Sobre o fenômeno da ambigüidade dos textos legais e de sua superação, nos limites do sistema, pela via hermenêutica
Para melhor desenvolver a exegese dos referidos aspectos relevantes da Lei da Improbidade, urge tecer esclarecimentos prévios sobre o pano de fundo da norma a ser interpretada. Para tanto, imperiosa se mostra a nítida consciência do fenômeno legislativo, consistente na inoculação de ambigüidades nos textos legais, em maior ou menor escala, dependendo da complexidade do modelo representativo. Conjugado a este fenômeno, encontra-se o da freqüente e inflacionada aprovação de textos feitos mais para constar, ou seja, a introdução de normas nascidas sob a égide de um congênito ceticismo dos seus próprios elaboradores. Somados, os fenômenos em tela são mananciais de ambigüidades exacerbadas, cujas origens não devem ser olvidadas pelo aplicador maduro.
Repousam, neste contexto, os fatores por que exsurgem dispositivos francamente contraditórios, quando lidos a partir de um enfoque desapaixonado e científico, pois no processo mesmo da produção normativa, como condição até de sua exitosa tramitação, várias antinomias e dubiedades foram sendo inseridas para viabilizar que grupos rigorosamente rivais votassem em uníssono. Por certo, sem excluir as falhas causadas por deficiências propriamente jurídicas, tanto mais se acentuam os referidos fenômenos quanto menos impregnada de translucidez estiver uma dada máquina de produção legislativa.
De tal maneira, sobre serem os comandos normativos - todos - dotados de inarredável pluralidade e indeterminação de significados, o legislador, insistentes vezes, utiliza a polissemia como técnica para converter em realidade a norma, extraindo-a, impura, da arena dos interesses conflitantes. Claro está que a fenomenologia descrita comporta múltiplas angulações, algumas desfavoráveis e outras que surpreendem o lado benigno trazido pelo acento da flexibilização. Entretanto, antes de se formularem ambos aspectos, convém que o intérprete sublinhe para si: a ambigüidade, desde sempre, na técnica legislativa, converte-se em instrumento de negociação, ainda que tal prática prossiga sem maiores explicitações e com os inconvenientes que daí advêm.
Em aparente paradoxo, no que tange à flexibilidade na sua aplicação, um texto de ambigüidade potenciada, quanto mais indeterminado e impreciso for, maiores reclamos suscitará para que, pela via interpretativa, resulte adaptado às realidades novas e, em razão disso, menores apresentar-se-ão os riscos de minar a credibilidade do sistema jurídico em suas conexões. Dito de outra forma, o legislador permite, pelo excesso de ambigüidades, nem sempre a contragosto, uma sensível abertura à razoabilidade do intérprete para dar cobro às antinomias, às incongruências ou para desfazer nebulosas terminológicas e nominais, assim como para afirmar os conteúdos orientados a granjear a adesão do maior número de interessados no êxito do princípio e da norma que surge para lhe conferir a inadiável concretude.
A contrapartida desvantajosa está em que parcelas dos interesses em jogo, que se deixam acomodar pela ambigüidade, podem estar compostas de inimigos não-declarados da efetividade dos princípios. Anseiam por deixar frestas entre as quais possam ser escamoteadas teleologias superiores. Em outras ocasiões, desejam aprovar um determinado comando para lograr obter este ou aquele proveito particularista sem imprimir à norma a universalização de sua eficácia, apostando na retórica do inatingível e do draconiano estéril(6).
Em razão disso, as características de generalidade e de imantação normativa pelo interesse público - sem as quais a Lei nunca seria reconhecida como tal -, restam, em boa medida, obnubiladas quando se dá a imposição de uma dose excessiva de ambigüidade, por meio de forças políticas contraditórias, vocacionadas, por definição, para hegemonias tópicas e conjunturais. Nestes moldes, a prescrição legislativa costuma vir a lume sob o signo da dubiedade quanto a seus fins maiores, o que representa uma distorção a ser, precipuamente, evitada e coibida no âmbito do Parlamento, eis que bem mais nociva do que aquela oriunda de involuntárias deficiências técnicas, as quais apenas traem a incompreensão sistemática do ordenamento jurídico.
Portanto, a clareza e a coerência teleológica, assim como o completo acatamento dos princípios superiores, tais como o da probidade administrativa, seguem paradigmas irrenunciáveis de avaliação da qualidade etiológica e interpretativa da norma ou do sistema de normas, de princípios e valores, devidamente hierarquizados. Ora, não parece fugir à regra a Lei em comento. Destarte, em face das numerosas aporias que residem na Lei n. 8.429/92, em especial as resultantes, a um só tempo, dos fenômenos da ambigüidade exacerbada e do ceticismo originário, cumpre resolver a matéria em favor da plausibilidade, da coerência e da efetividade, do mesmo modo pelo qual se devem enfrentar os fenômenos do lapso, do erro e das contradições por falhas de técnica jurídica. Vale dizer, realizando uma aplicação sistematizante(7), naturalmente respeitados os limites impostos pelo próprio sistema, sem nunca decidir "contra legem", senão que a favor do Direito.
Perante as antinomias, não se constata situação de impotência - embora tão-só "de lege ferenda" possam ser equacionados determinados aspectos - porquanto, para combater o eventual déficit de racionalidade dialógica do texto legal demasiado ambíguo, instado se encontra o intérprete a supri-lo com a racionalidade indispensável à preservação do Direito como efetivo sistema axiológico. Por certo, o que não se deve jamais é permitir o abandono do ideal, ao menos regulador, de ver reduzidos ao mínimo, quando não elididos, os fenômenos da ambigüidade sem limites e da originária descrença ou indiferença quanto à execução das leis, pois a coerência e a efetividade, sobremaneira no plano dos princípios, conquanto impossíveis de se atingir de modo absoluto - o que torna constantes e inelimináveis as tarefas de interpretar e de promover aprimoramentos legislativos -, são metas que não podem ser descuradas no fazer hermenêutico lúcido e fiel à juridicidade. A abdicação de semelhante ideal acarretaria uma inaceitável, para o verdadeiro jurista, falta de compromisso com a interpretação firme, sólida e consistente do Direito Positivado. Poderia também implicar, o que seria idêntico equívoco de fundo, adesão a posturas cegas e unilaterais ou a posições destituídas de qualquer legitimidade, eis que desvinculadas dos critérios.
Para além das ideologias, por conseguinte, o saneamento hermenêutico, desde que observadas as fronteiras do sistema, representa, na perspectiva agasalhada, o préstimo mais nobre e irrenunciável da exegese, ainda que não se possa traduzi-lo como garantia plena de um Direito unitário e coerente. Em suma, faz-se necessário interpretar a Lei da Improbidade à base da inteligência conducente à verdadeira efetivação do princípio em pauta, obrando por sua máxima afirmação, no afã de contribuir, com realismo, para o evolver satisfatório da ciência jurídica e do Direito constituído. Trata-se daquele mínimo que se deve esperar dos aplicadores e dos intérpretes animados pela expectativa de vitória do melhor Direito, entendendo-o como rede axiológica e hierarquizada que depende do intérprete para, evitando ou superando as antinomias, experimentar o máximo cumprimento dos princípios supremos, avultando entre os quais o da probidade administrativa.
III - O princípio da probidade administrativa e a legitimação passiva dos agentes públicos e dos terceiros beneficiários
Associado ao juridicamente autônomo princípio da moralidade positiva - mais especificação do que qualificação subsidiária daquele - o princípio da probidade administrativa consiste na proibição de atos desonestos ou desleais para com a Administração Pública, praticados por agentes seus ou terceiros, com os mecanismos sancionatórios inscritos na Lei n. 8.429/92, que exigem aplicação cercada das devidas cautelas para não transpor os limites finalísticos traçados pelo ordenamento. Sob a ótica da Lei, ainda quando não se verifique o enriquecimento ilícito ou o dano material, a violação do princípio da moralidade pode e deve ser considerada, em si mesma, apta para caracterizar a ofensa ao subprincípio da probidade administrativa, na senda correta de perceber que o constituinte quis coibir a lesividade à moral positivada, em si mesma, inclusive naqueles casos em que se não se vislumbram, incontrovertidos, os danos materiais.
De outra parte, numa adequada e percuciente intelecção, em especial do art. 11 do diploma em exame, não se devem aplicar as sanções cominadas às condutas culposas leves ou levíssimas, exatamente em função do "telos" em pauta e por não se evidenciar, em situações semelhantes, a improbidade, sequer por violação aos princípios. Postula-se, mais do que coibir o dano material, inibir a infringência, por si mesma nefasta, do princípio da moralidade, seja pelo agente público ou por terceiro, punindo-os com a imposição de penalidades severas, incompatíveis com a culpa leve ou levíssima.
Além disso, note-se que nada impede que a aludida afronta seja perpetrada pela via oblíqua, não apenas virtual, da infringência dos demais princípios regentes da Administração Pública. Em sentido correlacionado, aliás, poder-se-ia invocar o art. 1º da Lei da Ação Civil Pública, com a redação dada pela Lei n. 8.884/94, ao admitir, sem prejuízo da ação popular, o cabimento de ações de responsabilidade por danos morais - além dos patrimoniais -, causados ao consumidor (neste caso, apenas interessando, na analogia, o tangente a serviços públicos remunerados à base de preços públicos), ao meio ambiente, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, por infração à ordem econômica e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo.
Assentada a escolha de mais esta premissa, consoante a qual, de modo precípuo, exige-se a reparação, não apenas do dano material, senão que do dano moral, imperativo adotá-la no rumo das melhores soluções para os impasses diante da normatização do princípio em estudo. Reafirma-se, cristalina, a posição teleológica assumida: é imprescindível, para a aplicação das penalidades e para que a ação seja catalogável como a de um ímprobo, que se caracterize o destoamento nítido e manifesto da moralidade e não mera ameaça(8).
A partir daí, pode ser reelaborada a noção conceitual do princípio da probidade administrativa, vendo-o como aquele que veda a violação de qualquer um dos princípios, independentemente da caracterização de dano material, desde que tal violação se mostre causadora concomitante de um dano mensurável, num certo horizonte histórico, à moralidade administrativa, prejuízo este a ser aferido por critérios que não devem descansar suas raízes em juízos preordenados pela vindita ou por outros impulsos menos nobres, recomendando-se, ainda uma vez, a atitude ponderada dos que não abusam da coercitividade, nunca admitindo transitar além dos limites traçados pela preservação da harmonia e da justiça numa sociedade livre, simultaneamente sem escorregar para subjetivismos contingentes(9).
Neste diapasão, pratica a improbidade qualquer agente público, consoante a dicção elástica do art. 2º, servidor ou não (inclusive os agentes políticos em geral, os contratados por tempo determinado ou temporários e os celetistas), que atentarem contra as pautas morais básicas - abrangendo as relacionadas ao princípio conexo da boa-fé nos atos e nos contratos públicos -, da Administração Direta ou Indireta de qualquer dos Poderes e das várias entidades políticas, bem como de empresa incorporada ao patrimônio público e de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com qualquer valor, não se coadunando com o espírito da Constituição a exigência de "mais da metade do patrimônio ou da receita anual" (nos termos do
art. 1º da Lei n. 8.429/92). Percorrendo a mesma linha de raciocínio que indica inaceitáveis, diante da Carta Fundamental vigente, em sede de ação popular, acolher as restrições colimadas pelo art. 1º da Lei n. 4.717/65, por não recepcionadas, imperativo, por igual, sustentar que onde houver a presença de recursos públicos, no manejo dos mesmos sempre se poderá verificar a improbidade, sem embargo de render ensejo, noutro contexto processual, à anulação do ato lesivo.
Curiosamente, ademais, já se encontram sujeitos às sanções da Lei da Improbidade os atos praticados contra o patrimônio de entidades que recebam subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público, bem como daquelas para cuja criação o erário haja participado com menos da metade do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestas situações, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dada pelo Poder Público (art. 1º, parágrafo único). Ora, a "extensão do dano" sempre deverá ser levada em consideração não apenas ao fixar, senão que ao escolher as penalidades (art. 12, parágrafo único). Sem sentido, portanto, a distinção supostamente pretendida no citado parágrafo único.
"A fortiori", a Lei Maior exige que se interpretem os comandos em tela em harmonia plena com a abrangência dada por seu art. 70, parágrafo único, que determina a prestação de contas de qualquer pessoa física ou entidade pública que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações pecuniárias. Urge, pois, por força do sistema, abarcar, desde logo, no conceito ampliado de agente público, a pessoa física aí descrita, desde que, está claro, entreteça qualquer vínculo jurídico, ainda o mais tênue, com a Administração. Se tal não suceder, ao menos enquadrar-se-á na hipótese inscrita no art. 3º, relativa a outros que não os agentes públicos, indutores ou concorrentes para os indigitados atos ou deles beneficiários.
Nesta categoria, entretanto, não poderiam ser inseridos no rol dos violadores do princípio da probidade administrativa os que, "v. g.", cometem o delito de tráfico de influência (tipificado com extrema imprecisão pela Lei n. 9.127/95), desde que, no máximo, insinuem ou aleguem que a vantagem seria também destinada ao servidor, sem induzir propriamente a prática do ato censurável. Reitere-se, com esta ressalva, que mesmo àqueles que não se enquadrarem no conceito latíssimo de agente público, aplicar-se-á o comando endereçado aos terceiros que induzem ou colaboram para a prática da improbidade. Nestes termos, a intelecção proposta robustece, de maneira sensível, a possibilidade de punir com a suspensão dos direitos políticos, a par da cominação civil, todos quantos cometerem atos reprováveis em face da moralidade positiva.
IV - Espécies de improbidade administrativa e as sanções correspondentes
Frise-se que a improbidade administrativa é uma das hipóteses constitucionais de suspensão dos direitos políticos, ao lado do cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado, incapacidade civil absoluta, condenação criminal também definitiva e recusa de cumprir obrigação imposta a todos ou prestação alternativa (CF, art. 15). Em qualquer caso, a suspensão do gozo de direitos políticos é medida de extraordinária severidade, que implica, entre outros efeitos, ao lado da inelegibilidade e do cerceamento do direito de voto, a proibição de se filiar a partido político e a não investidura em cargo público, além da questionável falta de legitimidade para intentar a ação constitucional popular. Quanto a este último efeito, assinale-se que a legislação de regência deveria ser revista, pois - este será objeto de outro estudo - o instituto da cidadania não se exaure no gozo dos direitos políticos.
Especificamente para reprimir o cometimento da improbidade administrativa, a Lei Maior estabelece, em traços não taxativos - remetendo à forma e à gradação estabelecidas na legislação ordinária, e sem prejuízo da ação penal -, aquelas que devem ser as principais sanções, quais sejam, a suspensão da fruição dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o imprescritível ressarcimento ao erário (CF, art. 37, §§ 4º e 5º). Vai daí que a natureza da ação em análise há de ser tida como singularíssima e independente das esferas penal e administrativa, inclusive considerando a aparente e bizarra exceção em relação à última, a qual será oportunamente comentada, tendo em vista o disposto no art. 20 da Lei da Improbidade.
No atual modelo, múltiplas se apresentam as espécies de improbidade administrativa, embora separadas, às vezes, por tênues linhas demarcatórias. Observe-se que nem todos os atos deste jaez haverão de ser necessariamente classificáveis na rubrica de administrativos, sendo suficiente que se mostrem práticas infratoras da probidade. Posto isto, a primeira modalidade concerne aos atos que importam enriquecimento ilícito por ter o sujeito (agente público em especial) auferido qualquer tipo de vantagem indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função ou emprego, ou atividade pública, no sentido amplo (art. 9º). Com o fito ilustrativo e para figurar situação desta primeira - gravíssima - modalidade, convém averbar o ato de aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público(10) (art. 9º, VIII), logicamente presumindo, apesar da imperfeita redação da norma em apreço, o nexo do prejuízo à Administração e o conseqüente enriquecimento ilícito, pois mesmo que resulte, sem o menor sofisma, proibida a mencionada aceitação, o descumprimento de tal vedação não se apresenta capaz, por si só, de implicar a improbidade administrativa desta espécie.
Exame que merece maior detença é o relativo ao ato de improbidade por enriquecimento ilícito, que consiste em adquirir, para si ou para outrem, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente (art. 9º, VII). Em semelhante contexto, não se deve imaginar uma inversão do ônus da prova - embora a mesma tenha quase figurado na última formatação do texto normativo -, porém de mera consideração legal de que se mostra suficiente, não presumível, a prova da ausência de origem para tornar ilícita a renda assim obtida, sobretudo levando-se em conta a transparência advinda do regime publicista de trabalho daqueles que lidam com a coisa pública. Reitere-se: a rigor, não se deveria identificar, na situação prevista no art. 9º, VII, uma inversão do ônus da prova, dado que não se deve esgrimir com a responsabilidade objetiva do agente público. Trata-se tão-só de produzir simples prova da aventada desconformidade para que se torne viável o enquadramento do agente no tipo descrito.
Incontestavelmente, aquele que intentar a ação terá que se basear, "v. g.", na declaração de bens e não alegar, sem solidez ou pelo só gosto de testilha, a inexistência de origem ou incertos e brumosos sinais exteriores de riqueza desmedida. Como regra, não se admite, em nosso sistema, a culpa presumida, já que a formação da prova carece de esforço consistente, mais do que de duvidosas e frágeis ilações. Com efeito, nos termos da Lei n. 8.730/93, não por acaso, corroborou-se a obrigatoriedade da declaração de bens e rendas para o exercício de cargos, empregos e funções públicas, sendo que o art. 13 da Lei da Improbidade cuidou, com maior amplitude ("vide" § 1º), de estabelecer tal exigência, preceituando que a posse e o exercício do agente ficam condicionados - sob pena de não se permitir aquela ou de ser aplicada a pena demissória -, à apresentação da declaração, anualmente atualizada, dos bens e valores que compõem o seu patrimônio privado, com a meta de, por sério e probo cotejo, verificar, com objetividade, se ocorreu variação patrimonial desenraizada e denunciadora de repudiável enriquecimento ilícito, eis que inocorrente a origem válida.
Pelo exposto, imperioso que o ônus da prova não se perceba como invertido, neste como em todos os casos de improbidade, sequer em relação aos atos de improbidade que afetem direitos do usuário de serviços públicos (registre-se que a proteção de tais relações de consumo radica sobretudo no art. 22 da Lei n. 8.078/90). De um modo geral, o agente público que, por desonestidade, desrespeitar os direitos do usuário de serviços públicos, irromperá contra a moralidade administrativa, sendo, contudo, incumbência do autor a efetuação da prova no tocante à prática omissiva ou comissiva do agente, pois a responsabilidade extracontratual objetiva aplica-se, nestes casos, apenas às pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado prestadoras de serviço público.
Acresce que é regra áurea de hermenêutica que se deve interpretar, nos limites do sistema, invariavelmente deixando-se guiar pela Lei Fundamental e pela observância do princípio da concordância prática(11). O reverso desta leitura poderia ensejar resultado suspeito de inconstitucionalidade, ao introduzir uma figura de responsabilidade não versada, nem pretendida, no texto do art. 37, § 6º da Lei Maior. De outro ângulo, tampouco se mostra aflorável a hipótese do art. 334 do CPC, consoante o qual não dependem de prova os fatos notórios ou em cujo favor militaria uma presunção legal de existência ou veracidade, eis que não se cuida de nenhuma das situações ali enfocadas.
Outro aspecto digno de nota: as sanções não reclamam sempre a aplicação conjunta, até para que se alcance a moderação pretendida, apta a escoimar do texto legal o seu vezo draconiano. Entretanto, para não desprestigiar o sistema jurídico, em se defrontando o julgador com enriquecimento ilícito - a mais torpe das espécies de improbidade administrativa - deve sempre, tendo em vista o alto apreço teleológico pelo princípio normativado, aplicar as sanções na sua totalidade.
Inversamente, no que diz com as outras espécies, não se trata de cominações que se devam considerar em moldes inflexíveis e rígidos, notada e destacadamente quando relacionadas a atos de improbidade por violação aos princípios. Dito sem nenhum titubeio: por excepcionalidade, as sanções devem ser aplicadas isoladamente, sendo que fazê-lo, diante de atos de menor expressão, somente revela a salutar compreensão de que a lógica jurídica não se circunscreve a silogismos formais nem se destina a soluções traduzíveis em extremos, sob pena de, na prática, redundar triunfante o nada da espúria antijuridicidade ou da ausência de concreção do elevado princípio em análise(12).
Outorga-se, por meio da exegese formulada, ao se admitir a aplicação isolada das penalidades, exceto nos casos do art. 9º, uma abrangente resposta interpretativa à dicção do parágrafo único do art. 12, ou seja, a melhor teleologicamente orientada, sem cair no mero retributivismo destituído do senso de Justiça(13). É dizer, na mediação fixadora
das penas, o Juiz levará em conta a extensão do dano, assim como o proveito patrimonial logrado pelo agente, não apenas para dosar as penalidades, senão que para elegê-las. Tal senda hermenêutica resulta a mais propícia à aplicação atenta às finalidades eticizantes inerentes ao diploma legal, através da contemplação das circunstâncias objetivas e subjetivas, agravantes e atenuantes, da ação ou omissão reprovável, em sintonia com o prudente meio-termo aristotélico(14) e a cautelosa fruição da prerrogativa de apreciar o caso, zelando pela não instauração dos excessos. Ademais, como preceituava Cícero, força é cuidar para que a pena não seja maior do que a culpa(15).
Sublinhe-se que para a modalidade que acarreta enriquecimento ilícito, as sanções precisam ser aplicadas, de modo global, em função da gravidade do ato praticado. Ei-las: a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio (mister perceber que não se trata de mero efeito da condenação, como na seara penal), ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios, incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, mesmo que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos (art. 12, I).
Observe-se quanto à proibição de contratar, que tal penalidade poderia, à primeira e enganosa impressão, transcender à imposta pela declaração de inidoneidade, contida na Lei de Licitações (art. 87, IV); contudo ali se diz "enquanto perdurarem os motivos" determinantes. Destarte, a leitura conjugada faz ver que os sobreditos motivos haverão de prosseguir, em se cristalizando, na inexecução total ou parcial do contrato, qualquer ato de improbidade administrativa, nos moldes ora delimitados, assim como os concernentes às demais espécies. Ainda a respeito, bem de ver que não se deve confundir a penalidade aventa-da com aquela constante no art. 70 da Lei n. 9.100/95, segundo a qual a pessoa jurídica que infringir a legislação eleitoral restará impedida de participar de licitações e de celebrar contratos com o Poder Público pelo período de cinco anos, porquanto aí se trata de determinação específica da Justiça Eleitoral. De outra parte, impende observar que não subsiste qualquer dificuldade para aplicar a sobredita sanção à pessoa jurídica em razão da improbidade administrativa, fazendo-se desnecessário invocar, com o sinal invertido, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Cristaliza-se não uma extensão da sanção, mas a simultânea penalização da empresa que prestigiou ou contribuiu para que se consumasse o ato de improbidade. Não se cuida, pois, de transferência da pena, corretamente vedada pelo sistema constitucional.
A segunda espécie é a relativa aos atos de improbidade que resultam prejudiciais ao erário, vale dizer, quando o sujeito, por ação ou omissão, dolosa ou culposa, suscita perda patrimonial, desvio, malbaratamento por desaviso e negligência ou dilapidação dos bens ou haveres públicos (art. 10). Deveras, a avaliação do grau de culpa há de, outra vez, tomar em consideração a extensão do dano, desconsiderando-se a culpa leve ou levíssima. Em outras palavras, urge ver preservada a simétrica compatibilidade das eventuais sanções aplicadas com o ato ou omissão em foco, sob pena de injustiças inaceitáveis e irremissíveis, numa afronta manifesta ao próprio princípio da moralidade, vinculado à idéia de proporção, cujo prestígio, por fortuna, a pouco e pouco, parece estar crescendo em nosso ambiente jurisdicional.
De qualquer sorte, as sanções prosseguem drásticas, mormente se e quando enfeixadas numa totalidade, conquanto já não tão severas quanto as comináveis para os atos da primeira espécie: além do ressarcimento integral do dano (incluindo também a reparação pelo dano moral), sujeita-se o desonesto causador de prejuízo à perda da função pública, à suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, ao pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e à proibição de contratar com o Poder Público ou de receber benefícios, incentivos fiscais ou creditícios, diretamente ou por via oblíqua, pelo prazo de cinco anos (art. 12, II). Ora, por evidente lapso, cogitou a Lei de aplicar a perda dos bens ou valores acrescidos, de maneira ilícita, ao patrimônio. É bem de observar que se tal sucedesse, em boa técnica, estar-se-ia, indisputavelmente, perante ato de improbidade da primeira espécie, cumprindo que o intérprete não se impressione com a pequena confusão redacional patrocinada pelo dispositivo. Afinal, a interpretação jurídica há de ser sistemática ou não merece o designativo de interpretação(16).
A seu turno, a terceira espécie ou acepção de improbidade causa estranheza apenas aos que ainda não desvendaram a estrutura, não apenas normativa, mas principiológica do sistema jurídico. Na melhor visada técnica, a infringência de um princípio acarreta a afronta, em graus diversos, dos demais princípios, em face da natural correlação dos mesmos e do fato de que os seus conteúdos se nutrem e se consti-tuem, respectiva e mutuamente. De fato, tudo repercute em tudo na esfera jurídica, com variações de grau.
A espécie em comento é a dos atos de improbidade que atentam contra os princípios reitores da Administração Pública, seja por ação ou por omissão, transgredindo os deveres de retidão e lealdade ao interesse público. Em técnica redacional duvidosa, uma vez que o princípio da moralidade experimenta autonomia relativa em nosso sistema, a Lei enquadrou neste tipo de improbidade o ato violador da legalidade, embaralhando, ao menos para a primeira abordagem, os princípios em pauta (art. 11, "caput"). Nada disso sucede, no entanto, se bem sopesada a releitura. Apesar de a dicção literal do comando não ser, de fato, das mais felizes, o que parece plausível dele inferir é que, entretecidos os inegáveis nexos entre os princípios (moralidade e legalidade), o cometimento de uma irregularidade acompanhada pela marca indelével da desonestidade do agente ou da deslealdade para com o Poder Público, implica, em suficiente grau, a violação do princípio da probidade administrativa. Naturalmente, idêntico raciocínio se pode operar em relação aos demais princípios, o que empresta significado e tom inteligível ao disposto no art. 4º da Lei da Improbidade, o qual, num primeiro vislumbre, soaria inócuo.
Neste quadro, a hipótese, de caráter exemplificativo, inscrita no art. 11, VI, é a que melhor ilustra a quebra do princípio da probidade, nos moldes delineados para esta espécie. Trata-se de revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da veiculação oficial, teor de medida política ou econômica. Efetivamente, pode suceder de não haver o enriquecimento ilícito - ou se tornar inviável "in casu" a sua prova -, assim como inexistir qualquer dano material ao erário; entretanto se o princípio da impessoalidade restar violado e, via de conseqüência, afetar a moralidade, por extensão resultará agredido o subprincípio da probidade. Nesta ordem de considerações, ratifique-se a idéia-chave de que os princípios sempre irradiam efeitos, embora em intensidades diversas, uns sobre os outros. A infringência de um princípio, sob determinados aspectos, acarreta a debilitação do sistema geral, conquanto se mostre cogente verificar, na casuística, a intensidade obtida, para, então sim, identificar o acontecimento da espécie em tela.
No que tange às penalidades, figuram a reparação do dano especificamente moral, que se deve considerar já sancionado pela aplicação da multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente, além da perda da função pública, da suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos e da proibição de contratar com o Poder Público, assim como de receber benefícios, incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, pelo prazo de três anos (art. 12, III). Recorde-se, bem a calhar, que a ofensa à probidade administrativa encontra punição no diploma em comento, de forma independente da ocorrência de dano material e da aprovação ou rejeição das contas pelos instrumentos de controles externo e interno (art. 21). Decerto, em se consubstanciando o dano material ao erário, sem o simultâneo enriquecimento ilícito, estar-se-á perante a segunda espécie de improbidade. Por conseguinte, ao referir a penalidade de ressarcimento integral do "dano, se houver" no art. 12, III, novamente a dicção literal da Lei parece não combinar com a arquitetura intra-sistemática engendrada, salvo se se interpretar o dano mencionado, nos termos aqui propostos, ou seja, como dano de natureza moral estrita e reparado pela simples aplicação da multa.
Eis, pois, o que parece acertado fazer, sempre convindo recordar que linguagem legal, quando arrevesada e vertida de forma incogruente, vale menos do que a imperativa visão finalística e atual do sistema. O que se pretendeu prescrever - ao menos na visão que melhor se coaduna com a própria "voluntas legis" - é que, para efetuar a reparação indenizatória dimanante da espécie elencada no art. 11, lançar-se-á mão do expediente da multa para punir o dano imaterial. Como interessante corolário da exegese sustentada, o ato de improbidade de qualquer das espécies sempre poderá acarretar algum dano, ao menos de conteúdo moral, mas certo deve resultar que a multa civil, potencialmente de elevada monta, reúne forças mais do que razoáveis para assumir o lugar deste "ressarcimento" por dano moral, cumprindo perceber que a matéria comporta sutis distinções, por seus efeitos no tocante à prescrição.
Em sendo assim, força é admitir a reparação circunscrita ao dano moral impingido à sociedade, por intermédio da multa civil. Trata-se de inovação expressiva, apesar de, há muito, a via contrária ser aceita com extrema naturalidade. Na perspectiva hermenêutica advogada, significa, enfim, que a reparação por danos morais há de ser pleiteada dentro dos prazos prescricionais estatuídos pelo art. 23, I e II da Lei da Improbidade, ao passo que tão-só a ação de ressarcimento por danos materiais ao erário mostrar-se-á imprescritível, "ex vi" do art. 37, § 5º da Carta Fundamental.
V - As penas de perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, competência e reflexos na esfera administrativa
Observe-se que a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos apenas se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória (art. 20). No pertinente à suspensão dos direitos políticos, sobreleva assinalar que a mesma não tem o condão de deslocar a competência do julgamento de tais ações, que segue, à evidência, pertencendo à Justiça Comum, Estadual ou Federal, esta última se se configurar o interesse das pessoas descritas no art. 109, I da CF. No tocante à competência, ainda, tirante a previsões constitucionais expressas, não haverá prerrogativa de função, é dizer, a ação civil de improbidade deverá seguir, com peculiaridades, o rito ordinário, similar àquele da ação popular, devendo ser intentada em primeiro grau.
No que tange à perda da função pública, é de se refletir algo mais demoradamente. A independência do procedimento administrativo em face das esferas civil e penal soa pacífica. A despeito disso, com relação às decisões penais, há esteio legal para repercussão na seara administrativa (art. 126 da Lei n. 8.112/90), afastando-se a responsabilidade administrativa diante de absolvições criminais que neguem a existência do fato ou sua autoria. Na pendência, no entanto, nada autoriza sobrestar o procedimento administrativo.
Ao versar sobre a perda da função pública, por provável desaviso, há quem pense ter a Lei pretendido conferir garantias ínsitas à vitaliciedade ao estável ou até aos sequer possuidores de estabilidade. Em realidade, porém, a impositiva exegese saneadora deve restringir o alcance do texto, isto é, quando, no art. 20, diz-se que a perda da função pública só se aperfeiçoará com o trânsito em julgado da sentença condenatória, o legislador não está vedando que, através de simples e adequado procedimento administrativo, imponha-se a perda da função daqueles que não são vitalícios. Seguramente, tal se apresenta a solução mais dotada de razoabilidade e guiada pelo sistema constitucional, notadamente à vista do comando presente no art. 41 da CF. Assim, para punir a improbidade que acarreta a pena demissória (no regime federal, art. 132 da Lei n. 8.112/90), não se mostra necessário suspender o procedimento administrativo. Nada impede o afastamento do agente público mediante ato da autoridade administrativa, quando a medida se fizer imperiosa à adequada instrução do processo.
Outro tema controvertido concerne ao ressarcimento de dano material ao erário, o qual, fora de dúvidas, reclama tratamento específico no que toca à tempestividade do ajuizamento da demanda. Desborda, de maneira insofismável, dos prazos prescricionais estabelecidos no art. 23 da Lei da Improbidade. Ressalte-se que o art. 37, § 5º da Lei Fundamental determina que o legislador estabeleça prazos prescricionais para ilícitos cometidos por qualquer agente, servidor ou não, geradores de prejuízos ao erário, fazendo expressa ressalva quanto às ações de ressarcimento. Noutras palavras, solarmente se infere que o constituinte vedou que a lei infraconstitucional fixe tais prazos, assim inclusive fazendo responder indefinidamente os sucessores (art. 8º da Lei da Improbidade), nos limites da herança, pelos bens e valores havidos ilicitamente em decorrência dos atos do ímprobo. Porém, como sugerido que a multa civil, assim como prevista no art. 12, I a III, deve servir para reparar o núcleo moral do dano, então é de reforçar a conclusão de que a ação reparatória atinente ao dano especificamente moral deve ser intentada nos prazos prescricionais aludidos. Frise-se, pois, que a ação imprescritível de ressarcimento de que nos fala o constituinte é apenas relativa aos danos materiais.
Destarte, fixando o resguardo da exceção de matriz hierárquica constitucional, é que se devem considerar os prazos prescricionais para levar a efeito as ações que colimam a penalização civil da improbidade administrativa, nos termos da Lei n. 8.429/92, contando-se cinco anos a partir do término do exercício do mandato, do cargo em comissão ou da função de confiança (art. 23, I) ou considerando o tempo prescricional previsto para as faltas disciplinares mais graves, puníveis com a demissão, nas hipóteses de exercício de cargo efetivo ou emprego (art. 23, II). Neste último caso, no âmbito da União, por força do art. 142 da Lei n. 8.112/90, operou-se uma salutar coincidência qüinqüenal, fazendo as vezes de termo inicial o momento em que o fato se tornou conhecido.
Repare-se que o referido comando da Lei Maior, ao não permitir dúvida razoável de estar vedada a fixação de prazos para a propositura da ação reparadora, funciona como um argumento poderosíssimo a mais no sentido da não-obrigatoriedade da aplicação integral das sanções determinadas pelo art. 12, II e III - excluída, em nossa ótica, apenas a primeira das espécies de improbidade, até porque ao intérprete incumbe dar a máxima força normativa ao sistema jurídico, cuidando de fazê-lo de sorte a jamais transformá-lo em fonte de contradição e autonegação de sua ínsita unidade.
VI - Das medidas cautelares, da atuação fiscalizatória do cidadão, dos legitimados ativos da ação de improbidade administrativa e derradeiros aspectos
Em se configurando lesão ao patrimônio público por ação ou omissão, dolosa ou culposa, do agente ou de terceiro, dar-se-á o integral ressarcimento do dano (art. 5º da Lei n. 8.429/92), fazendo-os perder, no caso de enriquecimento ilícito, os bens ou valores acrescidos (art. 6º). Numa hipótese como noutra, cabe à autoridade administrativa responsável pelo inquérito representar ao Ministério Público para que este diligencie quanto à judicial indisponibilidade dos bens do indiciado, sem embargo do possível e mais aconselhável arresto - que a Lei impropriamente denominou de seqüestro - e, se for o caso, do bloqueio de contas bancárias e aplicações mantidas pelo indiciado no exterior (art. 16), havendo forte verossimilhança quanto ao cometimento do ato merecedor de reprovação pública.
Não se trata de seqüestro, senão que de arresto, apesar do equívoco nominal da Lei. Aliás, o próprio constituinte, no art. 100, valeu-se da expressão em sentido algo duvidoso, além da recorrência do uso errôneo dos termos no plano infraconstitucional. Convém, no entanto, gizar que, embora ambos constituam medidas excepcionais de natureza cautelar, o seqüestro visa a, com especificidade, garantir a entrega de coisa determinada, ao passo que o inconfundível arresto - atendidos os seus requisitos inarredáveis e aplicando-se, tão-só, no que couber, os arts. 822 e 825 do CPC, para não desacatar o que reza o § 1º do art. 16 da Lei da Improbidade -, representa constrição dirigida a todo e qualquer valor ou bem capaz de assegurar o êxito da execução forçada por quantia certa, que é, afinal, a pertinente em se tratando da presente ação civil.
Destaque-se, a teor do art. 14 da Lei n. 8.429/92, que qualquer cidadão, embora desprovido de legitimação para agir como substituto da Administração Pública, poderá, ao menos, representar à autoridade administrativa para que esta instaure investigação voltada a apurar a prática da improbidade, sem prejuízo da representação ao Ministério Público, o qual, aliás, atuará de ofício ou a requerimento da própria autoridade administrativa e inclusive dos Tribunais de Contas (art. 15), requisitando a instauração do inquérito policial ou do procedimento administrativo (art. 22), assumindo, portanto, função primordial para que se outorgue a pretendida máxima efetivação ao princípio. De passagem, convém lamentar que tenha sido tipificado, com excessiva vagueza, o crime que se dá quando o cidadão souber inocente o agente público ou o suposto terceiro beneficiário (art. 19). Em tais termos, é daqueles delitos que tendem a cair no vácuo, nada obstante persistir o paralelo direito de indenização por danos materiais e morais consumados contra a vítima de representação leviana, sem vestígio de fundamento. Em compensação, porém, consola a vantagem de não se ver, em quase nada, inibida a desenvoltura fiscalizatória da cidadania.
Frise-se, outrossim, que a ação principal haverá de ser intentada em trinta dias a contar da efetivação da medida cautelar, prosseguindo no rito ordinário (art. 17). Se não for ajuizada, urge ter presente o caráter peremptório e decadencial de semelhante prazo, impondo-se que a medida cautelar seja extinta por ato de ofício do julgador, por se tratar de situação típica de caducidade. Inocorrerá óbice para que outra ação civil de improbidade venha a ser proposta, nem mesmo para que a medida cautelar, nesta oportunidade futura, logre ser exitosa.
Decerto, pela natureza mesma do processo sob análise, inexiste possibilidade de nele se realizar qualquer transação, acordo ou conciliação, perante o caráter indisponível do valor ético-jurídico em tela. Bem por isso, a Lei n. 9.099/95 andou bem ao excluir da competência dos Juizados especiais cíveis as matérias de interesse da impropriamente denominada Fazenda Pública (art. 3º, § 2º). Nada obstante, tipos criminais há que configuram, ao mesmo tempo, atos de improbidade administrativa. Virtualmente todos os crimes contra a Administração configuram uma das espécies de improbidade. Todavia, não existe impedimento para que se processem determinados crimes contra a Administração nos Juizados especiais criminais, dada a mencionada independência das esferas civil e penal e em virtude da inocorrência de efeitos recíprocos. Claro está que remanesce sem sentido falar em composição dos danos civis (art. 74), mas o Ministério Público poderá, em face de determinados crimes - "v. g." o peculato culposo, o emprego irregular de verbas ou rendas públicas, a prevaricação, a condescendência criminosa, a advocacia administrativa, o abandono de função, entre outros -, por se enquadrarem na descrição do art. 61 como infrações de menor potencial ofensivo, propor a aplicação de pena restritiva de direitos ou multas, consoante especificado (art. 76), a despeito de caracterizarem uma simultânea infringência do princípio da probidade e sem prejuízo da ação civil cabível. Neste ponto, parece indisputável que a construção legislativa não vedou a utilização deste caminho processual, ainda que se recomende parcimônia na utilização desta simplificadora Lei.
Enfatize-se outro aspecto de notável repercussão: a probidade administrativa prossegue tutelável pela ação popular, pois qualquer cidadão pode impetrá-la para anular ato lesivo à moralidade administrativa (CF, art. 5º, LXXIII), desde que produzida a prova da cidadania com a apresentação do título eleitoral ou com documento que a ele corresponda, podendo terceiro habilitar-se como assistente ou litisconsorte. Diversamente, entretanto, da citada ação popular, a legitimação para a ação civil de combate aos atos de improbidade pertence apenas e, de modo privativo, ao Ministério Público ou à pessoa jurídica interessada. Quanto àquele, convém salientar que, se não atuar como parte, ao menos forçosamente haverá de fazê-lo "custos legis", sob pena de nulidade, tratando-se de interesses indisponíveis. No que tange à pessoa jurídica prejudicada, não parece invocável o princípio da economia processual para que a entidade venha ao processo com o intuito de defender o agente público, na suposta ânsia de preservar o ato, em si mesmo, de eventual anulação, visto que se trata de ação civil de objeto distinto, como remarcado, daquele que visa ao anulamento do ato ilegal e lesivo.
Ainda no tocante à pessoa jurídica prejudicada, se esta não intentar a ação, atuará como litisconsorte facultativo, a despeito de a literalidade do texto (art. 17, § 3º da Lei n. 8.429/92) conduzir ao erro de diagnosticar situação de litisconsórcio necessário. Com efeito, a bem da melhor leitura, vislumbra-se a possível, mas não obrigatória, comunhão de interesses relativos à lide, sendo de gizar que o litisconsórcio somente se afigura necessário, no pólo ativo, quando a lei obrigar a demanda conjunta, o que, fora de dúvida, não sucede na norma em apreço, porquanto estampada a partícula disjuntiva no "caput" do art. 17. Não haveria logicidade, sobretudo em diploma de cunho moralizador, que, havendo desmobilização da entidade interessada não pudesse o Ministério Público, com total exclusividade, autonomia e independência, intentar e dar andamento à demanda. A assertiva de se tratar de litisconsórcio facultativo é, pois, a que melhor consulta o espírito da lei e do Direito.
VII - Conclusões
Do articulado, emergem as seguintes principais formulações, além das assertivas e das propostas exegéticas veiculadas numa angulação ponderada, avessa a qualquer excesso(17), na meta de conferir o máximo vigor ao sistema jurídico em seu todo:
VII.1 - A ação civil e suspensiva do gozo de direitos políticos, que se intenta para sancionar a improbidade administrativa, consubstancia uma significativa inovação provocada pelo constituinte, no senti- do preventivo e repressivo, na linha do resguardo, em última análise, do princípio superior da moralidade. Perante tal diploma, resultam superadas antigas posturas que consideravam os Juízos éticos como inteiramente desconectados ou estranhos à apreciação jurisdicional(18). Com efeito, o princípio da moralidade pode, em nossa ordem jurídica, ser afrontado diretamente ou pela via oblíqua da afronta aos demais princípios superiores, sendo de curar, ao extremo, para evitar situações deste jaez, ou, ao menos, a vexatória reedição impune das mesmas, pois o Estado há de descansar sob os alicerces da confiança, da boa-fé e da honradez, cimentado pela probidade que exemplarmente precisa ser demonstrada pelos agentes públicos, em especial pelos ocupantes dos cargos de mais alto escalão.
VII.2 - A concretização do princípio da probidade se mostra escassa e rarafeita, em parte por falhas técnicas da norma destinada à sua efetivação, mas a Lei n. 8.429/92 é passível dos requeridos reparos mediante uma temperada interpretação saneadora. Faz-se, pois, imperativo examinar a referida Lei com ponderação sistemática, que torna indispensável, em casos menos graves, a aplicação parcelar das sanções, nomeadamente para as espécies de improbidade dos arts. 10 e 11, tendo claro que a melhor exegese - a mais eficaz - do disposto no art. 12, é a que determina ao Juiz considerar a extensão do dano causado e o proveito patrimonial obtido pelo agente, inclusive na eleição das penalidades, não apenas na dosimetria das mesmas. Desvestida, assim, a Lei de suas feições originariamente draconianas e iníquas, prestar-se-á para ser manejada com benfazeja cautela pelos legitimados ativos, evitando-se o desgaste de uma subsunção infrutífera e comprometedora, isto é, reservando-a, à vista da gravidade das sanções que comina, para as hipóteses em que se descortine o ensejo de fazê-la bem sucedida e paradigmática.
VII.3 - Orientou-se o legislador pátrio para dimensão eminentemente repressora à desonestidade para com a coisa pública, em que pese já se valer de inovadores meios. Destarte, sem que se receba tal obra com olhos reducionistas, é bem de ver como irrefutável que soluções de fundo hão de ser diligenciadas em paralelo, e residem tendencialmente na voluntária transformação cultural da sociedade inteira, tarefa que será tanto mais veloz quanto melhor se interpretarem e aplicarem, neste ínterim, os contemporâneos diplomas legais em prol da concretização, a cada passo mais incisiva, do princípio jurídico da moralidade. Uma exegese finalística, nos termos propostos, não faz prescindir de alterações outras de matiz sociológico, nem substitui, muito ao revés, o trabalho indispensável e digno de maciços investimentos, no sentido da sensibilização formativa do agente público e da própria coletividade em sua relação com o aparato estatal. Faz-se imprescindível, bem menos por temor e muitíssimo mais por espontânea persuasão, interiorizar padrões éticos respeitáveis, se se quiser timbrar a jornada dos que lidam com a coisa pública pelo acatamento cabal aos princípios superiores. Indubitavelmente, a eticidade apenas haverá de se tornar um bem universalizado, gerando o correlato afastamento do "improbus administrator" e dos seus comparsas, se vivificada - sem ingenuidade - a noção de cidadania plena e adulta(19), antes pela formação contínua do que pela repressão, ainda que já se mostrando louvável, na solução do constituinte, o incipiente anelo de superar as vias ortodoxas, tendência que deveria ser acolhida como irreversível em todas as áreas do saber jurídico. Em outras palavras, é no íntimo da cultura mesma das relações de administração, mais do que na exterioridade das regras, que devem ser concentradas as mais caras esperanças de revigoramento dos vínculos éticos, tudo reforçado pela descontaminação gradual da hodierna ambiência marcada por uma desintegradora e violenta desconfiança generalizada(20). Somente assim, a Administração Pública, a passo e passo, haverá de reunir as forças necessárias para atuar com previsibilidade, na determinação honesta(21), decidida e vertical do princípio da probidade administrativa.
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(*) Professor do Mestrado de Direito da PUC/RS, da UFRGS e da Escola Superior da Magistratura - AJURIS.
(1) Montesquieu "in" "Lettres Persanes", Oeuvres Complètes, Paris, Éditions du Seuil, p. 79: "L’esprit humain..., on se révolte avec fureur..., et la Loi, faite pour nous rendre plus justes, ne sert souvent qu’a nous rendre plus coupables".
(2) Cícero, "in" "De Officiis", Oeuvres Complètes, Paris, Librairie de Firminn-Didot et Cie, 1927, vol. IV/483, dá notícia de que a primeira lei com o desiderato de coibir delitos ligados à improbidade dos administradores públicos - "lex de repetundis" - deve-se aos esforços de L. Calpurnio Pisone, tribuno da plebe em 149 a. C. Em virtude desta lei, os administradores desonestos restaram compelidos a ressarcir os danos ao erário. Não logrando, contudo, frear a capacidade arraigada e consuetudinária, outras leis, destacando-se "lege Julia", foram editadas, prevendo novas e drásticas penalidades, tais como a devolução em quádruplo dos prejuízos, o exílio, bem assim a perda dos direitos civis. É o que se recolhe da leitura das fontes do Direito Romano: Digesto, Livro XLVIII, Títulos XI e XIII; Código de Justiniano, Livro IX, Títulos XXVI, XXVII e XXVIII. Sobre a contribuição romana, "vide", ainda, Théodore Mommsen, "in" "Manuel des Antiquités Romaines", Paris, Ernest Thorin Éditeur, 1892, pp. 382/394. William Blackstone, em seus "Commentaries on the Laws of England", Chicago & London, The University of Chicago Press, 1979, vol. IV, p. 121, ao enfrentar o tema "Of Public Wrongs", também apresenta precedentes interessantes, além de fazer alusão ao impulso pioneiro recebido do Direito Romano.
(3) A interpretação guiada pela Lei Fundamental é preceito valiosíssimo para o intérprete maduro, que não se confunde com a regra da interpretação conforme a Constituição. A propósito desta última "vide" Volker Haak, "in" "Normenkontolle und verfassungskonforme Gesetzesauslegung des Richters", Bonn, Ludwig Röhrscheid Verlag, 1963; Mangoldt-Klein-Starck, "in" "Das Bonner Grundgesetz", München, Verlag Franz Vahlen, 1985, pp. 141/144.
(4) Para repensar a natureza da relação jurídico-administrativa, "vide" meu "Estudos de Direito Administrativo", São Paulo, Malheiros Editores, 1995, pp. 9/30.
(5) Para uma abordagem da ponderação como metodologia apta a desenvolver o Direito, "vide" Karl Larenz, "in" "Methodenlehre der Rechtswissenschaft", Heidelberg, Berlin, Springer-Verlag, 1983, parte II, Capítulo V. Já para fixar um apanhado dos diversos entendimentos acerca do dever de justa ponderação dos interesses, "vide" António Francisco de Souza, "in" "Conceitos indeterminados no Direito Administrativo", Coimbra, Almedina, 1994, pp. 134/145.
(6) Montesquieu, "in" "De L’Esprit des Lois", Oeuvres Complètes, Paris, Éditions du Seuil, 1964, pp. 749/755, fixa algumas regras das quais não se deveria o legislador afastar na importante tarefa de elaborar as leis. Tendo em vista o tema da necessária moderação, assumem especial relevo as seguintes: 1. "l’esprit de modération doit être celui du législateur; le bien politique, comme le bien moral, se trouve toujuours entre deux limites"; 2. "dans les lois il faut raisonner de la réalité à la réalité, et non pas de la réalité à la figure, ou de la figure à la réalité"; 3. "il faut dans les lois une certaine candeur. Faites pour punir la méchanceté des hommes, elles doivent avoir elles-mêmes la plus grande innocence".
(7) Sobre a função sistematizante do processo hermenêutico, "vide" meu "A Interpretação Sistemática do Direito", São Paulo, Malheiros Editores, 1995, especialmente pp. 50/52 e 178.
(8) Em sentido diverso: a ameaça à moralidade já parece punível a outros, como parece ser o caso, por exemplo, de Lorde Devlin, "in" "The enforcement of morals", Oxford University, 1959, p. 13.
(9) Inteira pertinência guarda a observação de John Rawls, "in" "A Theory of Justice", Cambridge, Harvard University Press, 1971, p. 475: "Once a morality of principles is accepted, however, moral attitudes arc no longer connected solely with the well-being and approval of particular individuals and groups, but are shaped by a conception of right chosen irrespective of theses contingencies".
(10) Em face da atualidade de tal hipótese, convém rememorar J. J. Rousseau, "in" "Du Contrat Social", Oeuvres Complètes, Paris, Éditions Seuil, 1971, p. 544: "Rien n’est plus dangereux que l’influence des intérêts privés dans les affaires publiques...".
(11) Com relação ao princípio da concordância prática ("Prinzip praktscher konkordanz"), diz Konrad Hesse, "in" "Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublick Deutschland", Heideberg, C. F. Müller Juristicher Verlag, 1978, p. 28: "os bens jurídicos constitucionalmente protegidos devem ser coordenados de tal modo na solução do problema que todos conservem sua entidade" ("verfassungsrechtlich geschützte Rechtsgüter müssen in der Problemlösung einander so zugeordnet werden, dass jedes von ihnen Wirklichkeit gewinnt").
(12) No mesmo sentido de afastar a aplicação obrigatória das penas em conjunto, "vide" Marcelo Figueiredo, "in" "Probidade Administrativa", São Paulo, Malheiros Editores, 1995, pp. 67/68, em valiosos e pioneiros comentários. A única diferença em relação ao ora preconizado reside em que aqui se sustenta, em relação exclusivamente à espécie de improbidade acompanhada de enriquecimento ilícito, a compulsoriedade e a conveniência da aplicação das cominações legais em sua totalidade.
(13) Neste passo, assiste razão a Herbert Hart ao criticar as simplificações dos postulados retributivistas, "in" "Law Liberty and Morality", Oxford University Press, 1968, sustentando que a moralidade não deve ser acatada apenas pelo temor, ainda que exagere na distinção entre as esferas do público e do privado.
(14) Sobre o tema da prudente escolha do caminho do meio, "vide" Aristóteles, "in" "Ethique a Nicomaque", Paris, Librairie Philosophique j. Vrin, 1972, pp. 87/118. Ainda sobre o assunto, "vide" W. K. C. Guthrie, "in" "A History of Greek Philosophy", Cambridge, Cambridge University Press, 1981, vol. VI/345; Sir David Ross, "in" "Aristotle". London, Methueu & Co. Ltd., 1983 e Eduardo Garcia Máynez, "in" "Doctrina Aristotélica de la Justicia", México, Universidad Nacional Autónoma de México, 1973.
(15) Cícero, "in" ob. cit., p. 446: "ne maior poena quam culpa sit"; de sua vez, Aristóteles, "in" ob. cit., p. 228: "Le juste est, par suite, une sorte de proportion".
(16) "Vide" meu "A Interpretação Sistemática do Direito", ob. cit., pp. 49 e 142.
(17) Convém sublinhar, não se trata do mero "aequilibrium arbitri", tão fortemente criticado por F. W. Schelling, "in" "A essência da liberdade humana", trad. de Márcia de Sá Cavalcante, Rio, Vozes, 1991, p. 67, mas da permanente decisão rumo ao justo, na certeza de que a consciência ético-jurídica implica a superação de si mesma, respeitadas as fronteiras do sistema.
(18) Sem descurar das advertências feitas por Herbert Hart, "in" "Separation of law and morals", especialmente pp. 36/37, ensaio instigante, "in" "The philosophy of law", Oxford, Oxford University Press, 1977.
(19) Neste passo, acertado Peter Drucker, "in" "A sociedade pós-capitalista", trad. de Nivaldo Montingelli Jr., São Paulo, Pioneira, 1993, p. 135, ao assinalar que todo país desenvolvido "necessita de um setor social autônomo e autogovernado de organizações comunitárias - para prover os serviços comunitários necessários, mas acima de tudo para restaurar os laços comunitários e o senso da cidadania ativa".
(20) Aguda a observação conclusiva do historiador Eric Hobsbawm, "in" "A era dos extremos", trad. de Marco Santarrita, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 562, ao observar que se a humanidade quiser ter um "futuro reconhecível", não haverá de ser pelo "prolongamento do passado ou do presente", pois "tem de mudar".
(21) De acordo com Eric Weil, "in" "Philosophie Politique", Paris, J. Vrin, 1989, p. 51, Hegel foi "le premier... a énoncé que dans la société moderne, la séule vertu est l’honnêtete". Sobre o tema, "vide" o próprio Hegel, "in" "Grundlinien der Philosophie des Rechts", Werke, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991, vol. 7/298-300. O desafio, de qualquer sorte, sem discutir a respeito da primazia, segue, no plano filosófico o empírico, o de converter a honestidade em hábito social, intensa e extensamente, cultivado tanto nas esferas do privado como nas do público, dado que as exigências do princípio da moralidade não se circunscrevem às clássicas relações de administração, mas precisam perpassar, por inteiro, o tecido das relações jurídicas em geral.