A LEI N ° 9.099/95 E OS PROCESSOS DE JÚRI Aramis Nassif (*)
O advento da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, repercutiu intensamente nos institutos de direito penal e processual penal, entre os quais o Tribunal do Júri, alterando competência, procedimento, (des)penalização, etc.
Os crimes dolosos contra a vida, pela invulnerabilidade constitucional e apenamento superior previstos na referida lei, não foram afetados pelo deslocamento da competência para os Juizados Especiais Criminais, como aconteceu para expressiva gama de delitos. Todavia, são alcançados, alguns deles, direta e reflexivamente, pela perspectiva do sursis processual e influência da norma sobre os delitos conexos (sem animus necandi) e desconfigurados na originalidade denunciada via desclassificatória, de possível ocorrência em variados momentos processuais.
1.1- Judicium Accusationis
O primeiro exame pelo magistrado ocorrerá quando tiver que optar entre o recebimento, ou não, da denúncia ou, mais tarde, nas condições do artigo 408, § 4°, e do artigo 410, CPP, ou seja, quando concluir pela desclassificação para outro delito doloso contra a vida ou para um da competência do Juiz singular.
A impronúncia mantém a acusação da prática de delito doloso contra a vida, em tese, sem produzir (como a sentença de pronúncia), coisa julgada material. Portanto, se não houve proposta ab initio de sursis processual, somente em relação aos delitos conexos é possível o exame da aplicabilidade, ou não, da novidade legal, o que será feito no juízo singular (se já não o foi, obviamente, quando do oferecimento da denúncia), com a separação do processo.
1.1.1- Aborto e sursis processual
Conforme expresso no artigo 89, da Lei dos Juizados Especiais, nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidos ou não por essa lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por 2 (dois) ou 4 (quatro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional do pena (art. 77, do Código Penal), afetando, em princípio, os delitos descritos nos artigos 124, e 126, do Código Penal, qual seja o auto-aborto, o aborto consentido pela gestante e aborto provocado por terceiro com apenamento de um a três anos de detenção aquele e um a quatro anos de reclusão este.
Mesmo que os delitos sejam constitucionalmente afetos aos jurados, não há como deixar de considerar a possibilidade de aplicação do sursis processual, porque deste benefício não resulta alteração jurisdicional. O Júri mantém-se competente para o julgamento e expirando o prazo da suspensão sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade (art. 89, § 5°, L. 9.099/95), da gestante ou do terceiro (parteiro/parteira). Se cassada a suspensão processual, o feito retoma seu curso sem prejudicar o julgamento pelo Juiz natural. Não seria jurídico que, em nome da competência, subtraísse aos acusados a perspectiva de afastamento da pretensão acusatória legalmente prevista (1) o que significaria retirar arbitrariamente uma parcela fenomenológica do âmbito legislativamente selecionado para incidir a nova política criminal estatal, de natureza transacional (2).
1.1.2- Conexão e continência. Competência do Júri e do JEC
Sabidamente, serão julgados pelo Tribunal do Júri em caso de conexão ou continência com os dolosos contra a vida, os da competência de outro órgão da jurisdição comum (art. 78, I, CPP). Por isto mesmo que tais delitos poderiam, aparentemente, estar arrolados entre os que deveriam ser apreciados pelos Juizados Especiais Criminais ou admitam o sursis processual: em relação à primeira hipótese, ficam excluídas as infrações de menor potencial ofensivo que, em face de conexão ou continência, devam ser processadas com outra infração, estranha à sua competência (3) , o que levaria à conclusão de que o julgamento deveria ser feito pelo colegiado popular, de vez que, além da previsão adjetiva referida, o Júri tem competência inalterável ante a sua gênese constitucional.
Em que pese a autoridade cultural-jurídica de eminentes autores (Ada Pelegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance e Luiz Flávio Gomes, roborada por Damásio E. De Jesus), no tanto que se refira ao Tribunal do Júri, a questão merece ser examinada sobre outra ótica e, por isto, tenho como inspiradora a lição do eminente Juiz gaúcho Nereu Giacomolli:
Situação diversa ocorre em se tratando de infração de menor potencial ofensivo, ou como passível da suspensão condicional do processo, conexa com delito doloso contra a vida. Às infrações conexas a Constituição Federal não assegurou a garantia do julgamento pelo Tribunal Popular. Portanto, havendo conexão, em princípio, o processo deverá ser cindido. (Juizados Especiais Criminais, p. 56).
Ainda que a conclusão deste autor seja a mais correta, tenho que é possível alcançá-la por interpretação mais elástica e, por isto mesmo, mais debatida, pois entendo que a Constituição Federal, ao estabelecer a competência do Tribunal do Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida (Art. 5º, XXXVIII, 'd'), não conferiu à instituição força julgadora em relação aos demais tipos penais legalmente reconhecidos. As regras relativas à conexão e continência são ampliativas da competência e não prevalecem, pois, diante do óbice constitucional, pelo menos até que se subverta a natureza do Júri, conferindo-lhe competência judicante para outros delitos. (Júri - Instrumento da Soberania Popular, p. 70). No caso, importa lembrar que a conexão é instituto gestado pela norma comum, no Código de Processo Penal, e não na Lei 9.099/95 (que dela não trata), o que autoriza a admitir que, em sendo norma de caráter especial, não é afetada pelo fenômeno da vis atractiva.
Por esta mesma razão, não há que se lembrar da incidência supletiva do Código de Processo Penal (art. 92, LJECC), de vez que somente acontece em caráter subsidiário e no que não for incompatível com ela. Inexiste maior incompatibilidade que a alteração de competência, mormente quando esta é expressa no respectivo texto legal.
Convence, pois, que é correta a cisão do processo, seja quando do recebimento da denúncia, seja quando do encerramento da judicium accusationis, ante eventual desclassificação, se o Juiz antever delito da competência dos Juizados Especiais Criminais (4).
Evidentemente que, se o fenômeno jurídico atrativo envolver delito que dependam de representação, imprescindível torna-se a manifestação de quem tem legitimidade para a ação penal (5).
1.1.3- Conexão e continência. Suspensão do processo
A segunda hipótese aventada pela vínculo processual de delitos, confronta a possibilidade de, atraído um que, por força do art. 89, da Lei 9.099/95, passível de suspensão e o doloso contra a vida, que não a admite (com exclusão, obviamente, dos delitos dos arts. 124, e 126, CP).
Segundo alguns autores, o sursis processual relacionado com o atraído depende da gravidade do delito prevalente, que o contamina e, por isto mesmo, as circunstâncias do homicídio, por sua natureza, afetariam as deste último. Mas, com todo o respeito que mereça este entendimento, não é assim que deve ser encarado o quadro concursal. A orientação resultaria na antecipação de juízo censório em relação ao delito prevalente, só aceitável como reflexo de juízo condenatório. A lei autoriza o exame das circunstâncias para a concessão da suspensão da pena tão-só para os delitos sujeito ao benefício, pois que, cumpridas as condições do sursis processual, será extinta a punibilidade do agente pela sua prática. Portanto, a análise das operadoras judiciais (art. 59, CP) - necessárias para o sursis tradicional - só é permitida em favor do réu quando não referir ao benefício do Código Penal, exatamente porque não se lhe precede qualquer juízo de censura. A idéia da contaminação deve ser repelida.
Por outro lado, entendo que, o embaraço maior está circunscrito à manifestação ministerial, de vez que, admitindo a possibilidade do sursis processual em relação ao delito conexo, terá que enfrentar a detalhes analíticos comuns ao doloso contra a vida e, assim, fragilizar a tese acusatória. É que, conforme dispõe a lei, o Promotor de Justiça proporá a suspensão desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 89, Lei 9.099/95). Ora, deverá ele manifestar-se a respeito da reincidência, culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente motivos e circunstâncias judiciais (art. 77, I e II, CP), levando aos jurados qualidades do acusado ou do crime que serão bem exploradas, e com razão, pela defesa. As circunstâncias judiciais do art. 59, CP, aproveitada obliquamente como requisitos para a concessão do benefício, só eram examinadas antes da edição da Lei 9.099/95 pelo Juiz de Direito, já estabelecido um veredicto condenatório. O problema, que é de caráter geral, mas que aflige especialmente nos crimes a serem julgados pelo Tribunal do Júri, está na reserva concedida ao Ministério Público para a proposta de suspensão e sua postura perante os Juízes de fato. Há, a evidentemente, diferença entre os destinatários da pretensão acusatória e punitiva: o Juiz de Direito não sofre a influência dos detalhes periféricos do crime, desde que não decisivos para a elaboração de seu convencimento (o que se deve à sua formação estruturalmente jurídica); o jurado, ao contrário, está sujeito a conhecer o processo despojado das circunstâncias técnico-jurídicas, vinculando-se estritamente ao fato. Por isto que o exame amplo dos requisitos para concessão do sursis processual será tarefa árdua para o órgão acusador. Mesmo que se lobrigue a dificuldade ministerial em sua vocação acusatória, certamente não impedirá que ele proponha a suspensão, adotando um critério dentro dos primados de justiça e bom-senso que qualificam o Ministério Público.
É imperativo, se proposta a suspensão do processo, que ele seja separado, mas mantido apensado ao outro, prosseguindo-se em direção ao julgamento apenas no que trata do crime doloso contra vida. No que resultou suspenso, terá desenvoltura apenas para verificação do cumprimento das condições. Explica-se: a suspensão não revoga o elo conexivo e, descumpridas as condições, o fato será examinado pelo Tribunal do Júri (em princípio, como se verá mais adiante).
Outro aspecto a ser considerado quanto aquela reserva de iniciativa ministerial é a restrição feita ao magistrado para tal. O antagonismo interpretativo parece superado na jurisprudência e pode ser sintetizado na lição de Ada Pelegrini Grinover e seus cultos parceiros na obra já citada: parte-se do pressuposto de que a suspensão condicional do processo é instituto de natureza processual, atrelado ao princípio da discricionariedade regrada, cabendo ao Ministério Público a escolha da via relativa ao delito. A suspensão, de outro lado, de modo algum poderia ser concebida sem a transação explícita do órgãos acusatório. A solução para a recusa injustificada está no artigo 28 do CPP, portanto. E, se o Procurador-Geral de Justiça insistir na não realização da proposta de suspensão, nada mais pode ser feito (p.273).
1.1.4- Vencimento do prazo da suspensão ou sua revogação e o Júri
1.1.4.1- Anterior ao julgamento pelo Júri
Concedida suspensão condicional do processo e vencido o prazo das condições antes do julgamento do crime doloso contra vida sem razão para sua revogação, o magistrado declarará extinta a punibilidade do agente; se, porém, der causa para a cassação do benefício, nada obsta que ele seja julgado, como deve ser, pelo Tribunal do Júri, juntamente com delito contra a vida. É que não depende o delito conexo de pronúncia e nem pode manifestar-se a respeito a sentença de pronúncia. A cautela necessária é a convocação do Ministério Público para incluir o delito no libelo-crime, ou aditá-lo se já oferecido, depois de restabelecida e encerrada a instrução.
1.1.4.2- Posterior ao julgamento pelo Júri
Acontecendo ser o crime doloso julgado pelo Tribunal do Júri antes de vencer o prazo da suspensão do crime conexo, duas situações podem ocorrer: uma, o réu cumpre as condições do sursis processual, e o Juiz declara extinta a punibilidade (art. 89, § 5°, Lei 9.099/95); outra, o réu descumpre as condições e o benefício é revogado.
Sem relevância a
primeira hipótese. Preocupante a segunda.
Acontece que o
vínculo da conexão torna competente o Tribunal do Júri para o
julgamento de todos os delitos interligados pela expressão da
lei, salvo se declarada antes a extinção da punibilidade ou
ocorrer desclassificação pelo Conselho de Sentença.
Ora, se a lei autoriza a suspensão do processo pelo Juiz de Direito, conforme conclusão acima, não afasta, é certo, a competência do Tribunal Popular para o seu julgamento.
A indagação que se faz é se o Juiz da suspensão pode, consumado o julgamento do delito prevalente, julgar o conexo pelo desatendimento das condições do sursis processual ? Ao meu ver a solução está implicitamenmte contida no artigo 82, última parte, do Código de Processo Penal: se, não obstante a conexão ou continência, forem instaurados processos diferentes, a autoridade de jurisdição prevalente deverá avocar os processos que corram perante os outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva. Neste caso, a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação das penas. Assim, pela existência da sentença definitiva anterior à revogação do benefício, está autorizado o magistrado a remeter os autos ao Juizado monocrático, onde será processada a ação penal. Se condenado o acusado nos dois delitos (pelo Júri e pelo Juiz singular), poderá providenciar na unificação das penas, conforme a autoridade da última parte do artigo citado.
Não entendo que o Juiz-Presidente do Tribunal possa julgar o delito remanescente da conexão mesmo que tenha sido o Juiz do sursis revogado. Acontece que, vencida a fase da judicium accusationis ele só poderá prolatar sentença de mérito autorizado pelo Conselho de Sentença, e pela via única da desclassificação. Haverá, pois, pela impossibilidade de julgamento simultâneo a separação dos processos nos termos do artigo 80, CPP, por motivo relevante.
Cabe uma exceção: se anulado o Júri, o delito conexo terá o destino do doloso contra a vida, isto é, não haverá dificuldade para o julgamento conjunto (art. 82, CPP, por analogia). Portanto, é recomendável esperar o trânsito em julgado da sentença ou o julgamento do recurso, se houver, para o Juiz promover a separação do processo.
1.1.5- Concursos de Crime
O concurso material de crimes dispensa maiores indagações, por sua imperativa consideração individual. Presentes as condições, o Juiz deverá cindir o processo ou remetê-lo inteiramente aos Juizados Especiais Criminais.
Debate-se sobre a
possibilidade de reconhecimento de crime continuado ou concurso
formal para os crimes dolosos contra a vida.
Refugindo da
discussão, eis que as correntes divergentes produzem argumentos
ponderáveis num e noutro sentido, presente que o disposto no
artigo 70, ou 71, do Código Penal são derivativos do concurso
material e gerados para beneficiar o acusado, importa considerar
que, se admitida a possibilidade de aplicação das regras
pertinentes, seja para efeitos de cisão do processo e remessa de
aos Juizados Especiais Criminais, seja para efeito de suspensão
condicional do processo, os delitos devem ser examinado um a um,
desprezando-se o acréscimo legal. É assim para reconhecimento
da prescrição (art. 119, CP), e não se justifica que não o
seja para a realização das figuras benéficas da Lei 9.099/95
(transação ou sursis processual).
1.1.6- Tentativa de crimes dolosos contra a vida
Para verificação do alcance da Lei 9.099/95 em relação aos delitos tentados, está pacificado na jurisprudência e doutrina que o critério para o cálculo penal abstrato é o da redução máxima sobre o limite mínimo da sanctio legis.
Conclui-se, por isto, que os homicídios tentados estão fora das perspectivas despenalizadoras, de vez que a pena mínima é de 6 (seis anos) para sua forma simples (121, caput, CP) e, assim, a cominação abstrata fica reduzida para 2 (dois) anos de reclusão (redução de dois terços). Não merece debate o homicídio qualificado pela sua obviedade de sua situação ante a lei.
Para os demais delitos, a perspectiva do benefício é positiva, com exceção do tipo descrito no art. 122, CP, que não admite a forma tentada. Assim: art. 123, CP, com pena mínima de dois anos; art. 124, CP, que admite a suspensão pela pena mínima em abstrato para o próprio delito consumado, com mais razão o seria para a forma tentada (vide comentário supra); art. 125, CP, com pena mínima de três anos; art. 126, CP, com pena mínima de um ano reclusão.
A regra do artigo 127, CP, não afeta a conclusão porque, mesmo havendo referência doutrinária e jurisprudencial de forma "qualificada" às remissões ali feitas, na verdade ela contempla causa especial de aumento da sanção. Não é uma qualificadora.
Por isto que, efetuado o cálculo para redução de dois terços sobre as penas abstratamente cominadas, o Promotor de Justiça deverá propor a suspensão condicional do processo na forma da lei (ao oferecer a denúncia, art. 89, Lei 9.099/95). Por oportuno relembro os argumentos expendidos neste texto a respeito da suspensão do processo em caso de crimes dolosos contra a vida (auto-aborto, etc).
1.2 Judicium causae
Assente que as questões versando sobre a aplicabilidade da Lei 9.099/95 são resolvidas no recebimento da denúncia, desclassificação ou impronúncia, alguns delitos originariamente da competência dos Juizados Especiais, ainda assim, podem ser examinados pelo Conselho de Sentença. Basta que a transação ou proposta de sursis resultem frustradas ou que a complexidade ou circunstâncias do caso determinem o deslocamento da competência dos Juizados Especiais Criminais para o Tribunal do Júri. O tratamento processual será o mesmo, isto é, constando da pronúncia e do libelo, será submetido o seu julgamento pelo Conselho de Sentença e, portanto, objeto do questionário.
A questão mais angustiosa deriva da desclassificação pelo Tribunal do Júri, ou seja, quando, com deslocamento ou não da competência, opera-se a desclassificação por não reconhecer o Júri a existência de animus necandi.
1.2.1- Desclassificação própria
Se o colegiado popular concluir pela sua incompetência, pura e simplesmente, o Juiz singular assume a plenitude jurisdicional e, por força do consta do art. 492, § 2°, do Código de Processo Penal, deverá prolatar e publicar ainda na sessão sua sentença. A Lei 9.099/95 subverteu parcialmente a aplicação do referido dispositivo. Eis as situações possivelmente resultantes:
1.2.1.1- Desclassificação e os Juizados Especiais Criminais
A desclassificação pode definir, no resíduo típico, um delito da competência dos Juizados Especiais Criminais (v.g. tentativa de homicídio incruenta para crime de perigo do artigo 132, CP). Nesta hipótese, o magistrado deverá prolatar decisão onde descreverá a conseqüência dos veredictos e ordenará o encaminhamento ao órgão jurisdicional competente (6). Portanto, o artigo 492, § 2°, CP, merece ser melhor interpretado, cumprindo sua essência mandamental com a leitura do despacho. O dispositivo, quanto a exigibilidade de sentença está revogado pela lei especial, mas está mantida a exigência de leitura da decisão (interlocutória) em plenário. Acontece que, com a publicidade, encerra-se a instância coletiva, dissolve-se o Conselho de Sentença e fixa o termo inicial do prazo para recurso, ficando as partes intimadas e ciente a sociedade do veredicto. Com o trânsito em julgado, os autos serão remetidos aos Juizados Especiais Criminais.
Inaceitável, por isto mesmo, que o Juiz-Presidente do Júri promova qualquer ato que resulte em usurpação da competência dos Juizados Especiais Criminais. Aqui, a conclusão deriva do cotejo entre a norma especial e a comum, e não mais de qualquer delas com a Constituição Federal, que só assegura a competência do Tribunal do Júri.
1.2.1.2- Desclassificação e a Suspensão Condicional do Processo
Se o delito residual for daqueles que não sendo da competência dos Juizados Especiais Criminais, mas que admitem a suspensão condicional do processo por força da Lei 9.099/95 (art. 89), o Promotor de Justiça será chamado a manifestar-se a respeito da proposta. Todo o procedimento ocorrerá no próprio julgamento, após a votação do questionário e antes de restabelecer a situação plenária, envolvendo embate entre normas especiais ou ordinárias.
Oferecida e aceita a proposta, concordando o Juiz, fixará as condições, suspendendo o processo. O despacho correspectivo será lido em plenário; não aceita pelo réu ou dela discordando o magistrado, lavrará este a sentença, que será lida na forma prevista no Código Processual.
Interessante lembrar que, concedido o sursis processual, o Juiz-Presidente do Júri ficará vinculado ao feito até sua extinção, seja pelo cumprimento das condições, seja pela prolação de sentença por seu descumprimento como conseqüência da perpetuatio jurisdicionis. Resulta concluir que repete-se a conseqüente revogação parcial do art. 492, § 2°, CPP, de vez que a sentença, extintiva da punibilidade ou de mérito, será publicada em momento que não o previsto legalmente.
1.2.2- Desclassificação imprópria
Mais complexa é a matéria envolvendo a desclassificação imprópria, ou seja, aquela em que, afastado o animus necandi pela resposta dos jurados aos quesitos, pela relação de conexividade ou continência, sua competência é prorrogada e, assim, decidirá sobre crime que deveria, em tese, ser julgado pelo Juiz singular.
A mais comum é a que ocorre quando, em concurso de agentes, um dos réus adotando tese desclassificatória, a tem acolhida pelo Conselho de Sentença, enquanto que o co-autor é condenado ou, mesmo, absolvido, isto é, foi julgado pelo Júri; ou quando a tese do réu concorrente é a participação em crime menos grave, identificando a defesa o delito residual, e pelo qual é penalizado, etc. É o imperativo da perpetuatio jurisdicionis.
Entendem alguns que o excesso culposo acolhido quando afastada a excludente da criminalidade, opera a desclassificação para homicídio culposo, o que levaria à mesma conclusão acima.
Acontece que, com exceção da que deriva da perpetuatio, onde pode ser investigada outra tese defensiva e alcançar-se a absolvição, as demais resultam em automática condenação. Assim, condenado em delito diferente do doloso contra a vida porque os jurados reconhecem que o réu quis participar em crime menos grave ou excedeu-se culposamente, é fácil concluir que, menos que tese defensiva propriamente dita, há a proposição de uma pretensão alternativa, condenatória, é certo, mas mais benéfica ao acusado.
Impõe-se três considerações: primeira, em se tratando de julgamento definitivo pelo Tribunal do Júri, os veredictos são soberanos por imposição constitucional. Não há, assim, que se falar em concorrência de normas de vez que a emanada da Carta submete hierarquicamente a infra-constitucional, sem excluir a da de lei especial; segunda, a desclassificação opera, automaticamente, a condenação na maioria dos delitos; terceira, a que não existe surpresa para a defesa, seja pela perspectiva normal do evento desclassificatório, seja porque normalmente ele ocorre como pleito defensivo.
Por todo o
argumento acima, estou convencido de que, em se tratando de desclassificação
imprópria, inaplicável se torna a Lei 9.099/95 (7),
impondo-se o respeito à soberania dos veredictos do Tribunal do
Júri.
______________
NOTAS:
(1) Neste sentido a lição de Damásio E. De Jesus, Lei
dos Juizados Especiais Criminais Anotada, p.100.
(2)
Luiz Flavio Gomes, Suspensão Condicional do Processo,
p. 284/285. Contra: Carla Rodrigues de Araujo, Juizados
Especiais Criminais, p. 47.
(3)
Magistério de Ada Pelegrini Grinover et alii, Juizados
Especiais Criminais, p. 57. No mesmo sentido, Damásio, obra
citada, p. 40.
(4)
Marino Pazzaglini Filho et alii, Juizado Especial Criminal
Aspectos Práticos da Lei 9099/95, p. 113, defendem a
prática dos atos transacionais, etc, no próprio processo e sob
a jurisdição do magistrado do Júri.
(5)
Não é demais lembrar que a Lei 9099/95 impôs a necessidade de
iniciativa neste sentido para os crimes de lesão corporal leve
ou culposa (art. 88).
(6)
Comungam deste entendimento os doutos Ada Pelegrini Grinover et
alii, Damásio E. de Jesus e Nereu Giacomolli (obras citadas).
(7) O
eminente Juiz gaúcho Nereu Giacomolli, um dos raros autores que
escreveram a respeito da desclassificação imprópria e a Lei
9099/95, disserta que: Ocorrendo a desclassificação
imprópria, isto é, afastamento da tipicidade originária, mas
com emissão de juízo acerca dessa, aliás, diversa da constante
na pronúncia (condenação por homicídio culposo em virtude do
excesso na legítima defesa, participação em crime menos grave,
v.g.). O Conselho de Sentença se manifesta sobre o mérito da
acusação, motivo pelo qual as infrações conexas, as
agravantes e as atenuantes deverão ser quesitadas. Assim, a
competência não poderá ser transferida ao JECRI, cabendo ao
Juiz-presidente do Tribunal do Júri decidir. Preserva-se a
soberania do veredicto, nos termos do artigo 5º, XXXVIII,
"c", da Constituição Federal (obra citada, p.58).
(*) O autor é Juiz de Alçada no Rio Grande do Sul, professor de Processo Penal nas Escolas Superiores da AJURIS e da FESMP. Por vários anos foi Juiz do Tribunal do Júri de Porto Alegre e tem escritos, além de vários artigos, dois livros sobre o tema: Júri- Instrumento da Soberania Popular e O Júri Objetivo (no prelo).