CRÉDITOS DE ENTRADAS DE BENS DE CONSUMO OU DE ATIVO PERMANENTE E A NÃO CUMULATIVIDADE DO ICMS


HUGO DE BRITO MACHADO

Professor Titular de Direito Tributário da UFC








1. Introdução

Entre as várias questões suscitadas pela Lei Complementar nº 87, de 13/09/96, está a de saber qual a natureza jurídica do crédito de ICMS relativo a estradas de bens destinados ao consumo e ao ativo permanente do estabelecimento.

Com efeito, ao cuidar da não cumulatividade, a referida Lei Complementar assegura ao contribuinte o direito ao crédito do imposto relativo a operações das quais tenha decorrida a entrada de mercadorias no estabelecimento, inclusive daquelas destinadas a seu uso ou consumo ou ao ativo permanente. Importante, portanto, é saber se esse crédito está sendo concedido ao contribuinte a título de estímulo fiscal, ou se ele resulta simplesmente do princípio da não cumulatividade.

Em se tratando de estímulo fiscal, tem-se de examinar a questão da validade de tal concessão por Lei Complementar federal, tendo-se em vista que a Constituição veda à União "instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios."

2. A Não Cumulatividade na Constituição

Estabelece a Constituição Federal de 1988 que o ICMS "será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa a circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal." E ainda, que "cabe à Lei Complementar disciplinar o regime de compensação do imposto."

Dessas disposições constitucionais duas conclusões podem ser extraídas: primeira, a de que o imposto a ser compensado é apenas aquele que diz respeito às entradas de mercadorias que, como tal, seguirão sendo objeto de circulação, vale dizer, sairão do estabelecimento no qual entraram; de observar que o crédito relativo à entrada, e segunda, a de que as opções interpretativas podem ser validamente resolvidas pelo legislador complementar.

O conceito de mercadoria, usado pela Constituição para definir a competência tributária dos Estados, evidentemente não pode ser modificado pela lei tributária. Doutrina e jurisprudência são firmes neste sentido.

Pode-se, é certo, argumentar que o bem do ativo permanente, utilizado no comércio ou na indústria, de certa forma também segue circulando, porque, como utilidade, do ponto de vista financeiro, o seu valor se vai aos poucos incorporando ao valor dos bens vendidos pelo estabelecimento. Este é o entendimento que fundamentou a doutrina do denominado crédito financeiro, em oposição à doutrina do crédito físico, que tem predominado no Brasil.

Seja como for, verdade é que a Constituição permite mais de uma interpretação, sendo por isto mesmo da maior importância a competência atribuída ao legislador complementar, para dispor a respeito do regime de compensação do imposto.

3. Constituição e Lei Complementar

Como ensina KELSEN, a relação entre Constituição e lei, ou lei e sentença judicial, é uma relação de determinação ou vinculação: a norma do escalão superior regula o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior. Não só o processo de produção da norma inferior, mas também, eventualmente, o seu conteúdo. "Esta vinculação nunca é, porém, completa. A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direcções (sob todos os aspectos) o acto através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre em relação ao acto de produção normativa ou de execução que a aplica o caráter de quadro ou moldura a preencher por este acto.

O legislador complementar, no caso, opera dentro do quadro ou moldura de possibilidades deixadas pelas normas da Constituição. E estando, como está, expressamente autorizado pela norma constitucional a dispor sobre o regime de compensação do imposto, pode validamente optar entre o regime do crédito físico, ou o do crédito financeiro, assim como pode adotar um regime misto, com características de um e do outro.

4. Leis Estaduais e Saída de Bens do Ativo Permanente

As leis estaduais em geral, anteriores à Lei Complementar nº 87/96, tributam a saída de bens do ativo permanente, embora não admitam o crédito relativamente à entrada destes. São inconstitucionais. Não no que vedam o crédito, mas no que tributam a saída de bens do ativo permanente.

Com o advento da LC 87/96, e a partir do início da vigência de suas disposições específicas sobre o assunto, evidentemente já não valem as disposições de leis estaduais que vedam o crédito relativo a entrada de bens destinados ao consumo ou ao ativo permanente.

5. Crédito Estímulo

Não há dúvida de que o crédito na entrada de bens destinados ao ativo permanente, ou imobilizado, especialmente para os estabelecimentos industriais, representa valioso estímulo fiscal. Estímulo do qual na verdade o parque industrial brasileiro está a necessitar para modernizar-se e assim poder enfrentar a competição internacional que se intensifica com a globalização da economia. Não se confunde, porém, com a isenção, que a União não pode conceder em virtude da expressa vedação constitucional. Cuida-se apenas de modificação no regime de compensação do imposto, cuja disciplina compete, também por expressa disposição constitucional, ao legislador complementar.

6. O Regime de Compensação do Imposto.

Não há dúvida de que o crédito relativo à entrada de bens de consumo, ou de ativo permanente, integra o regime de compensação do ICMS, não devendo ser considerada como estímulo fiscal, dele independente. Que se trata de norma integrada no regime de compensação, ou norma reguladora da não cumulatividade, já afirmaram José Eduardo Soares de Melo, e Misabel de Abreu Machado Dersi.

Relevante, e por isto vale a insistência neste ponto, é notar que a Constituição diz caber à Lei Complementar "disciplinar o regime de compensação do imposto". Em sendo assim, pode o legislador complementar adotar o regime do crédito financeiro, ou o regime do crédito físico, bem assim adotar um regime com características de um e do outro.

Pelo regime do crédito financeiro é assegurado o crédito do imposto pago em todas as operações de circulação de bens, e em todas as prestações de serviços, que constituam custo do estabelecimento. Não importa se o bem, ou o serviço, compõem o bem a ser vendido. Importa é que o bem vendido teve como custo aquele bem, ou aquele serviço, já tributado anteriormente.

É um regime de não cumulatividade absoluta. Não cumulatividade que leva em conta o elemento financeiro, por isto mesmo regime denominado de crédito financeiro.

Pelo regime de crédito físico, diversamente, só o imposto relativo a entrada de bens que são vendidos pelo estabelecimento, ou que, no caso de indústria, integram fisicamente o produto industrializado a ser vendido, enseja crédito para compensação com o imposto devido na saída dos bens.

É um regime de não cumulatividade relativa. Não cumulatividade que desconsidera o elemento financeiro, e toma em consideração apenas o elemento físico do bem, por isto mesmo denominado regime de crédito físico.

7. Direito Intertemporal.

Pelas razões expostas vê-se que a norma que assegura o direito ao crédito relativamente às entradas de bens destinados ao consumo, ou ao ativo permanente do estabelecimento, não tem aplicação a fatos anteriores ao início de sua vigência. Em outras palavras, não há como se possa considerar tal norma meramente interpretativa da Constituição, conferindo-lhe eficácia retroativa. E pelas mesmas razões, é válido o adiamento do início de vigência dessa norma, como está no art. 33, da Lei Complementar nº 87/96.