Esta sentença bíblica ecoa no ouvido da humanidade há
milênios e o homem não conseguiu, ainda, libertar-se desta
condenação. Está destinado a empregar sua capacidade
laborativa para poder obter os bens necessários à sua
subsistência. Para isso conta com a força bruta de seu corpo e
com as energias de sua mente. Ferramentas que se estragam à
medida que o organismo biológico envelhece, ou até mesmo antes,
diante de acontecimentos imprevisíveis. Está o homem exposto a
toda sorte de risco, que a qualquer momento podem minimizar sua
força de trabalho, impedindo-o de prover ao seu sustento e de
sua família. Necessita então de amparo, de socorro que
possibilite a continuação de sua existência sem que se prive
do mínimo razoável para sua subsistência. Se não pode
obtê-lo pelos seus meios próprios, alguém há de fazer por
ele. Surge assim a idéia de socorro mútuo, assistência,
finalmente, de previdência, em que o encargo de assistir aos que
atingiram o limiar de suas forças ou capacidade é repartido
entre todos os membros da coletividade. A Previdência Social é
também chamada por alguns de Seguro Social.
O sistema da previdência social apresenta um complexo de
relações jurídicas em que a lei estabelece direitos e
obrigações para os sujeitos abrangidos pela atividade da
Seguridade Social. Ao dissertar sobre a natureza jurídica do
Seguro Social, quando então o órgão dele encarregado
denominava-se Instituto Nacional de Previdência Social, o
renomado Professor A. F. Cesarino Júnior bem demonstra a teia de
relações jurídicas existentes envolvendo a matéria, ao dizer
que: no seguro social tal como está estabelecido entre nós,
intervêm quatro pessoas: o Instituto Nacional de Previdência
Social, o Estado, o empregador e o empregado. Destas, abstraindo
do poder de contrôle do Estado sôbre as autarquias, duas
somente têm obrigações, são sujeitos passivos: o Estado e o
empregador, meros contribuintes; duas têm ao mesmo tempo
direitos e obrigações: o Instituto que tem o direito de receber
as contribuições (do Estado, do empregador e do empregado) e a
obrigação de conceder os benefícios (aposentadorias,
auxílios, etc.); e o empregado (substituído em caso de morte e,
as vêzes, no seguro-maternidade por um ou mais dependentes) que
tem o direito de exigir a concessão dos benefícios, e a
obrigação de pagar a sua contribuição, aliás, de consentir
no desconto de sua contribuição do seu salário. Tôdas estas
obrigações resultam exclusivamente da lei e não da autonomia
da vontade. Têm, portanto, caráter estatutário e não
contratual. (DIREITO SOCIAL BRASILEIRO - Saraiva - 6ª ed. 1970 -
1º vol., pág. 270).
Esta pequena digressão sobre o sistema previdenciário ou do
seguro social teve por objetivo demonstrar, aquilatar e reavivar
a importância de um sistema previdenciário sadio, capaz de
atender às diversas hipóteses de sinistros ocorrentes em meio a
enorme massa de trabalhadores brasileiros. Um sistema dito de
cobertura universal, como o nosso, precisa contar com uma enorme
capacidade financeira para atender a demanda por seus benefícios
e prestações, sempre crescente, tendo em vista o aumento
demográfico. E, ainda mais, para compatibilizá-lo com os
preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da
valorização do trabalho, da criação de uma sociedade justa (
arts. 1º, III, IV, 3º, I, da Constituição Federal de 1988).
No tocante ao sistema previdenciário brasileiro, dispõe a Carta
Magna, em seu artigo 194 que, a ordem social tem como base o
primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça
sociais.
No Brasil adota-se o sistema tripartite de custeio da
previdência social: o Estado, o empregador e o empregado, nos
termos do que dispôe a Constituição Federal, em seu artigo
195.
A Constituição Federal atribui competência privativa à União
para legislar sobre a seguridade social (art. 22, XXIII); o
legislador ordinário editou a Lei nº 8.212, de 24 de julho de
1991, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social,
institui Plano de Custeio e dá outras providências, e a Lei nº
8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre os Planos de
Benefícios da Previdência Social. Juntas, traçam as diretrizes
normativas para que o Estado brasileiro possa atender aos ditames
constitucionais relativos à previdência social, com o escopo de
a todos garantir, nas hipóteses de sinistros e infortúnios o
amparo necessário. A lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991 cuida
das tradicionais contribuições dos trabalhadores e empregadores
sobre a folha de salários.
Além desta lei, conta a previdência social também com a
contribuição das empresas sobre os seus lucros, a chamada
Contribuição Social sobre o Lucro, instituída pela Lei nº
7.689, de 15 de dezembro de 1988 e a contribuição para
financiamento da seguridade social (COFINS), da Lei Complementar
nº 70, de 30 de dezembro de 1991, com as alterações
introduzidas pela Lei Complementar nº 85, de 15 de fevereiro de
1996 e Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995. Conta também
com recursos oriundos do Fundo Social de Emergência, aprovado
pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1 de março de
1994, com as alterações da Emenda Constitucional nº 10, de 4
de março de 1996.
Para garantir o real recebimento dos recursos que são destinados
à Previdência Social, o legislador pediu socorro às armas
características do Direito Penal. Na mesma lei em que instituiu
o Plano de Custeio da Previdência Social definiu também as
condutas consideradas ilícitos penais. Entretanto, ao assim
agir, trouxe à baila a velha discussão sobre as imperfeições
da obra legislativa.
Como conteúdo da expressão dá outras providências
do enunciado da referida lei está o artigo 95 e alíneas, que
define e institui os chamados crimes
previdenciários.
No contexto da lei sobre o custeio do sistema de previdência
social no Brasil, resolveu o legislador elencar condutas que
atentam diretamente contra os interesses de seus integrantes e,
por via indireta, o de todos os componentes da sociedade que
necessitam da proteção previdenciária.
A tipificação das condutas atentatórias aos bens ou interesses
da Previdência Social não é nenhuma novidade e não foi
introduzida agora com a citada lei. Surgiram os delitos contra a
previdência com a edição da Lei nº 3.807, de 26 de agosto de
1960. Referido diploma legal, em seu artigo 155, com as
alterações do Decreto-lei nº 66, de 21 de novembro de 1966,
elencava as condutas tidas como caracterizadoras de ilícitos
penais. Para a definição dos ilícitos penais previdenciários,
o legislador de então tomou de empréstimo definições de
condutas ilícitas já existentes no ordenamento jurídico, ao
invés de criar uma tipificação própria. Era a chamada
tipificação por equiparação. Assim, o citado artigo 155 (com
as alterações introduzidas pelo Dec.-lei nº 66), em seu inciso
I enumerava determinadas condutas e as equiparava ao delito de
sonegação fiscal, previsto na Lei nº 4.729, de 14 de julho de
1965; o inciso II mencionava conduta equiparada à de
apropriação indébita, definida no art. 168 do Código Penal; o
inciso III arrolava uma série de condutas que foram equiparadas
ao delito de falsidade ideológica, previsto no art. 299 do
Código Penal e, finalmente, o inciso IV contemplava condutas
equiparadas ao estelionato, previsto no art. 171 do Código
Penal.
Assim, ao legislador de 1960 pareceu mais fácil a enumeração
de delitos previdenciários por assemelhação, renunciando a sua
prerrogativa de criar os tipos penais autônomos, próprios e
específicos, destinados à proteção da previdência social.
Tal situação, que criou inúmeras dificuldades de
interpretação para os aplicadores do Direito, persistiu até a
edição da Lei nº 8.137/90, que define os crimes contra a ordem
econômica e tributária e abrangia também as ações criminosas
contra a previdência social. (cf., a propósito, a sadia
discussão entre Manoel Pedro Pimentel e Jorge Medeiros da Silva
sobre se o não recolhimento de contribuições descontadas dos
empregados caracterizaria ou não o delito de apropriação
indébita, in RT 451/321 e Direito Penal Especial,
respectivamente).
Finalmente, em 1991 é editada a Lei nº 8.212 que cuida do
custeio da previdência social, dispondo seu artigo 95 sobre
condutas que o legislador entendeu definir como ilícitos penais
previdenciários. Abandonou em parte a velha tradição e
resolveu definir os ataques à Previdência Social estabelecendo
as condutas ilícitas em uma lei própria, tida então como
especial, no tocante à definição de ilícitos penais, em
relação às mesmas condutas da Lei nº 8.137/90.
Algumas das figuras típicas criadas pelo artigo 95 e suas
várias alíneas são novas; outras, porém, já eram conhecidas.
Dispõe o art. 95 que constitui crime:
a) deixar de incluir na folha de pagamentos da empresa os
segurados empregado, empresário, trabalhador avulso ou
autônomo, que lhe prestem serviços;
b) deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da
contabilidade da empresa o montante das quantias descontadas dos
segurados e o das contribuições da empresa;
c) omitir total ou parcialmente receita ou lucro auferidos,
remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de
contribuições, descumprindo as normas legais pertinentes;
d) deixar de recolher, na época própria, contribuição ou
outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos
segurados ou do público;
e) deixar de recolher contribuições devidas à Seguridade
Social que tenham integrado custos ou despesas contábeis
relativos a produtos ou serviços vendidos;
f) deixar de pagar salário-família, salário-maternidade,
auxílio-natalidade ou outro benefício devido a segurado, quando
as respectivas quotas e valores já tiverem sido reembolsados à
empresa;
g) inserir ou fazer inserir em folha de pagamentos, pessoa que
não possui a qualidade de segurado obrigatório;
h) inserir ou fazer inserir em Carteira de Trabalho e
Previdência Social do empregado ou em documento que deva
produzir efeito perante a Seguridade Social, declaração falsa
ou diversa da que deveria ser feita;
i) inserir ou fazer inserir em documentos contábeis ou outros
relacionados com as obrigações da empresa, declaração falsa
ou diversa da que deveria constar, bem como omitir elementos
exigidos pelas normas legais ou regulamentares específicas;
j) obter ou tentar obter, para si ou para outrem, vantagem
ilícita, em prejuízo direto ou indireto da Seguridade Social ou
de suas entidades, induzindo ou mantendo alguém em erro,
mediante artifício, contrafação, imitação, alteração
ardilosa, falsificação ou qualquer outro meio fraudulento.
§ 1º No caso dos crimes caracterizados nas alíneas d, e e f
deste artigo, a pena será aquela estabelecida no artigo 5º, da
Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, aplicando-se à espécie
as disposições constantes dos artigos 26, 27, 30, 31 e 33 do
citado diploma legal.
Embora passados 35 anos do início da proteção penal à
Previdência Social, o legislador ainda não conseguiu criar uma
legislação escoimada de equívocos, pois, ao estatuir sobre as
condutas definidoras dos tipos legais, o legislador produziu obra
defeituosa.
Com efeito, para as condutas descritas nas alíneas
d, e e f após enumerar o
preceito, tomou de empréstimo, uma vez mais, como costuma fazer
o legislador em matéria previdenciária, numa demonstração de
pouco caso com tão relevante assunto para a nacionalidade, a
sanção estabelecida para os chamados crimes do colarinho
branco, previstos na Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986.
Parece que a intenção foi a de aumentar sensivelmente a
gravidade da sanção cominada a essas condutas delituosas.
Entretanto, para as condutas definidas nas demais alíneas, o
legislador esqueceu-se da sanção! Assim, quem praticar qualquer
das condutas enumeradas nas alíneas a,
b, c,g, h,
i e j, não terá sanção nenhuma. Nas
normas elencadas nessas alíneas, o legislador instituiu o
preceito, porém, olvidou-se de estabelecer a sanção
correspondente à sua violação.
O tema tem profunda imbricação com o princípio da legalidade,
pois, não há crime nem pena sem lei anterior.
Pretendeu o legislador de 1991 criar normas incriminadoras para a
proteção de bens jurídicos ligados diretamente à previdência
social. Entretanto, não instituiu uma norma penal porque a
característica desta é a enumeração do preceito, definindo
uma conduta, de comando ou de proibição, com a necessária
descrição da sanção correspondente.
O binômio preceito e sanção é parte integrante de toda norma
jurídica. Não se trata de característica particular do Direito
Penal.
Veja-se a clássica definição de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO
- Curso de Direito Civil - Parte Geral - 14ª ed. - Saraiva -
1976 - lei é um preceito comum e obrigatório, emanado do poder
competente e provido de sanção (p. 13). O renomado civilista,
ao tecer considerações sobre a diferença entre Direito e Moral
ensina que: a principal oposição entre a regra moral e a regra
jurídica repousa efetivamente na sanção. ... a segunda, ao
inverso, conta com a sanção para coagir os homens. Se não
existisse esse elemento coercitivo, não haveria segurança nem
justiça para a humanidade. O conceito de sanção, ou
possibilidade de constranger o indivíduo à observância da
norma, torna-se inseparável do direito. Neste, como diz JEAN
H&EACUTEMARD, essencial é o problema das sanções, pois,
justamente através de sua aplicação é que a regra jurídica
adquire sua mais completa eficácia, seu valor absoluto (ob. cit,
p. 3)
Prossegue o eminente jurista: Por fim, a última característica
da lei é a sanção (no sentido de coação), do verbo sancire,
que significa reforçar o preceito, torná-lo inviolável.
Trata-se, como já vimos, de elemento inseparável do direito.
Regra jurídica sem coação, disse IHERING, é uma contradição
em si, um fogo que não queima, uma luz que não alumia. ( ob.
cit., p. 14).
A mesma integração entre preceito e sanção, como elementos
componentes da norma jurídica também se faz presente no Direito
Penal.
Isto porque, a norma penal, como espécie de um conceito mais
amplo (a norma jurídica), contém, portanto, uma ordem, ou norma
de conduta, e a respectiva sanção, como garantia para seu
cumprimento e eficácia... e ... tôda norma incriminadora
contém, portanto, dois elementos constitutivos: o preceito e a
sanção ...no Direito Penal, não há normas incompletas, pois
se ao imperativo de que decorre o preceito não suceder uma
sanctio juris, a norma é inexistente ... (TRATADO DE
DIREITO PENAL - José Frederico Marques - Saraiva - 2ª ed. -
1964 - Vol 1º, p. 118).
Nas precisas palavras de ANIBAL BRUNO, como tôda norma
jurídica, a norma penal compreende o preceito e a sanção; o
preceito, que contém o imperativo de proibição ou comando, e a
sanção, que ameaça de punição a violação do preceito. No
preceito se exprime a vontade estatal de estender a determinados
bens jurídicos a proteção penal, proibindo ou ordenando atos,
em conformidade com essa proteção; na sanção manifesta-se a
coercibilidade do preceito, que é uma das características da
norma jurídica. São dois têrmos que se prendem
indissolùvelmente um ao outro, para integrar a unidade de
conteúdo da norma de Direito. (Direito Penal - Forense - Livro
I, Tomo I, 1959 - p. 180).
Ou como leciona HELENO CL&AACUTEUDIO FRAGOSO, a norma penal
é constituída do conjunto formado pelo preceito e a sanção,
que constituem unidade lógica indissolúvel. A norma sem
preceito ou sem sanção é inexistente.
(LI&CCEDIL&OTILDEES DE DIREITO PENAL - Forense - 4ª ed.,
1980 - p. 75).
De fato, é inconcebível pensar-se em uma norma que contenha o
preceito sem a sanção. Seria um vazio, um nada, pois o elemento
característico da norma jurídica é a sua coercibilidade, que
se caracteriza pela imposição de uma sanção quando violada.
Ora, sem a previsão da correspondente sanção, a norma
incriminadora é inexistente, de modo que lícitas seriam as
condutas elencadas nas alíneas a, b,
c, g, h, i,
j, do art. 95, da Lei nº 8.212/91.
Continuando a dar pouco caso à sistematização penal, à
definição clara e precisa dos tipos penais instituidores dos
ilícitos previdenciários, o legislador de 1995 perdeu outra
oportunidade de reparar o mal cometido. Editou a Lei nº 9.032,
de 28 de abril de 1995, que alterou várias das disposições das
Leis nº 8.212/91 e 8.213/91, sem alterar o malfadado art. 95 da
primeira delas, deixando-o intocado. Agora, bem recentemente, em
obediência ao art. 6º da Lei nº 9.032, de 28 de abril de 1995,
o Poder Executivo promoveu a publicação consolidada das Leis
nº 8.212/91 e 8.213/91 no Diário Oficial da União, de 11 de
abril de 1996. Nessa consolidação das leis permaneceu a
redação defeituosa do art. 95, na parte em que instituiu os
crimes previdenciários sem prever as respectivas sanções.
Estará, então, a previdência social destituída da poderosa
proteção que é conferida pelo Direito Penal, como a ultima
ratio para a garantia de seus interesses e proteção jurídica
de seus bens?
Poderão então os indivíduos e as empresas, por seus
dirigentes, tranquilamente agir sem que sejam molestados pelo
soldado de reserva da ordem jurídica que é o Direito Penal?
Nosso entendimento inclina-se pela resposta negativa.
Uma interpretação mais ligeira da norma estaria a indicar que
ela ofende o princípio da legalidade, tão bem insculpido na
fórmula latina de FEUERBACH: nullum crimen, nulla poena sine
lege, inserido na Constituição Federal, em seu art. 5º, XXXIX
e reproduzido no art. 1º do Código Penal.
Apesar dessa lacuna, as hipóteses elencadas nas citadas alíneas
continuarão a ser punidas. Ocorre que a lei 8.212/91 é especial
em relação à lei anterior, de nº 8.137/90 e aos dispositivos
do Código Penal em que se amoldavam condutas que violavam bens e
interesses da previdência social. Os chamados delitos
previdenciários, embora previstos em lei especial não escapam
às teorias e princípios gerais do Direito Penal.
De fato, muitas das condutas enumeradas naquelas alíneas do art.
95 já se encontravam anteriormente descritas na lei 8.137/90 e,
ainda que não houvesse a previsão típica desta lei, de
caráter geral em relação a de nº 8.212/91, mesmo assim,
muitas delas estariam perfeitamente elencadas no Código Penal,
de modo que, subsidiariamente haveria a previsão legal de
punição, obedecendo assim ao princípio da legalidade.
Compare-se, por exemplo, a título exemplificativo, as condutas
descritas nas alíneas g, h e
i do art. 95, que nada mais são do que a mesma
conduta descrita no art. 299 do Código Penal, que define o
delito de falsidade ideológica. Tome-se, ainda, como exemplo, a
conduta definida na alínea j e a descrita no art.
171, § 3º do Código Penal. Em verdade, estas alíneas
reproduzem as anteriores definições dos delitos de falsum, do
estelionato.
Não se trata de aplicação de analogia, proibida em Direito
Penal em matéria de normas incriminadoras. Trata-se, apenas, da
aplicação dos princípios próprios que regulam o instituto da
tipicidade, segundo os quais, o tipo está na lei, que contém a
descrição abstrata da conduta, e a tipicidade, encontra-se na
ação, que revela o comportamento do agente amoldável àquela
descrição. Desse modo, pode haver subsunção típica das
condutas do art. 95 em tipos da Lei 8.137/90 ou em tipos
previstos no Código Penal, aplicados subsidiariamente. Deixa de
haver a tipicidade pela lei especial, porém, está ela presente
na norma incriminadora de caráter geral.
A solução do problema dar-se-ia pela simples aplicação do
princípio da subsidiariedade: lex primaria derogat legi
subsidiariae.
Na impossibilidade de aplicação do art. 95, alíneas
a, b, c, g,
h, i e j, da Lei nº
8.212/91, aplica-se a Lei nº 8.137/90, ou disposições
incriminadoras do Código Penal, se for o caso, àquelas condutas
que se amoldam nos tipos penais descritos nestas leis, porque,
sempre que um tipo especial não puder, por um motivo qualquer,
abrigar tipicamente o episódio que se analisa e examina, o tipo
geral, subsidiária e supletivamente, como reserva do tipo
especial (já que este contém todos os seus elementos),
outorgará guarida típica ao fato (FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO -
Conflito Aparente de Normas Penais - RT 673/294).
A não previsão da sanção, que deixou a norma incompleta, não
significa que as hipóteses elencadas nas alíneas a,
b, c, g, h,
i, j, do art. 95 da Lei nº 8.212/91 não
serão punidas. Aparentemente, tal punição viria de encontro
com o princípio da legalidade.
Entretanto, tal princípio em sua formulação completa impõe o
reconhecimento de que não basta a existência de lei. Se faz
necessário que a lei seja anterior - falando-se, então, no
princípio da anterioridade da lei penal, tal como definido no
art. 1º do Código Penal, em combinação com o disposto no art.
5º, XXXIX, da Constituição Federal.
Assim, as condutas descritas no art. 95, alíneas a,
b, c, g, h,
i e j se amoldam, ou na adequação
típica dos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, ou então, nas
descrições típicas dos arts. 171, 299, etc. do Código Penal.
A concretude dos fatos e sua subsunção em uma norma penal
incriminadora é tarefa que se apresentará ao julgador no
momento da decisão, em que dirá da certeza do direito a ser
aplicado.
O que não se pode admitir é que os sonegadores e fraudadores da
Previdência Social permaneçam ilesos e impunes diante da
omissão do legislador. A punição é possível como demonstrado
acima.
Entendemos, pois, que esta solução é mais consentânea com os
princípios e postulados do Direito Penal, e atende aos fins
sociais preconizados no art. 5º da Lei de Introdução ao
Código Civil que, na hipótese retratada, significa dar a devida
proteção penal à Previdência Social, punindo aqueles que por
meios ilícitos pretendam se furtar à obrigatoriedade de seus
deveres e obrigações de contribuir com a Seguridade Social,
mesmo porque, se assim não fosse, a ordem jurídica agasalharia
uma gritante desigualdade. Isso porque o agente que praticasse um
delito de falsum, com o fim de eximir-se do recolhimento de
tributos, por exemplo, o ICMS ou o IRPF, seria punido com as
sanções dos art. 1º ou do art. 2º da Lei nº 8.137/90,
conforme as hipóteses comprovadas, enquanto que, aquele que
praticasse a mesma conduta com o fim de sonegar o pagamento de
contribuições devidas à Previdência Social não teria
punição alguma, face a omissão do legislador em prever e
estabelecer a respectiva sanção. Seria dar tratamento desigual
aos iguais, o que contraria frontalmente o art. 5º, I, da
Constituição Federal.
Assim, todos que ofendam ou venham a ofender os bens jurídicos
de interesse da previdência social, cuja proteção se pretendeu
no art. 95, alíneas a, b, c,
g, h, i e j, da
Lei nº 8.212/91, não escaparão da respectiva punição, apesar
da inexistência da norma incriminadora, posto que, os
comportamentos lesivos alí descritos se subsumem em outras
disposições definidoras de delitos e o enquadramento deles
nestas normas incriminadoras atende ao princípio da
anterioridade da lei penal, pois, antes da edição da Lei nº
8.212/91, que almejou instituir aqueles ilícitos
previdenciários, muitas condutas nela descritas já eram
consideradas ilícitos penais.
Ad extremum, consideremos inexistentes as normas incriminadoras
previstas no art. 95, alíneas a, b,
c, g, h, i,
j, que não chegaram a adquirir sua inteira
configuração e por isso não ingressaram validamente no mundo
jurídico; as condutas descritas nessas alíneas continuarão a
ser consideradas ilícitas, pois, se apresentam como subsumíveis
ora nos tipos definidos nos artigos 1º ou 2º da Lei nº
8.137/90, ora, algumas delas, em disposições do Código Penal.
São condutas que se revelam típicas e antijurídicas em
função de outras normas penais incriminadoras existentes
previamente no ordenamento jurídico repressivo. Em verdade, tudo
se resume a uma questão de técnica jurídico-penal, de
qualificação dessas condutas à luz da teoria da tipicidade,
basilar no Direito Penal. O fundamento para a imposição da pena
está em o agente realizar no mundo fático, condutas que
encontram sua correspondência no mundo abstrato do tipo penal,
que encerra o preceito. Basta que se faça a indagação sobre a
existência de normas penais que encerram as mesmas condutas
descritas nas citadas alíneas do art. 95. Em caso positivo,
serão elas típicas, o que legitimará, então, a imposição da
sanções nelas previstas, sem que com isso se malfira o
princípio da legalidade inscrito no art. 1º do Código Penal.
Por isso, é injurídico pensar-se em absolvição do agente com
fundamento no disposto no art. 386, inciso III do Código de
Processo Penal, que prevê a não responsabilização penal
quando o fato imputado não constituir crime, porquanto, as
condutas enumeradas nas alíneas a, b,
c, g, h, i e
j do art. 95, da Lei 8.212/91, podem e devem ser
consideradas criminosas porque, revestidas da necessária
tipicidade, tendo em vista a anterior existência de outras
normas penais incriminadoras nas quais elas se amoldam. Além do
mais, cabe ao julgador dar aos fatos a correta definição
jurídica, nos termos do disposto nos arts. 383 e 384 do mesmo
diploma legal. A inexistência da sanção naquelas alíneas não
significa não possa o julgador encontrá-la em outras normas,
desde que, evidentemente, faça-se presente o requisito da
tipicidade.
Dessa forma, a ordem jurídica, com o emprego do Direito Penal,
estará garantindo que o suor do rosto para o ganha pão será
enxugado pela Previdência Social.
*Nelson Bernardes de Souza é Juiz Federal em Campinas, São
Paulo.
e-mail: nbsouza@correionet.com.br