Ilícitos Previdenciários: Crimes sem Pena?

Autor: *Nelson Bernardes de Souza
Data: 01/jun/96

Ganharás o pão com o suor de seu rosto”



Esta sentença bíblica ecoa no ouvido da humanidade há milênios e o homem não conseguiu, ainda, libertar-se desta condenação. Está destinado a empregar sua capacidade laborativa para poder obter os bens necessários à sua subsistência. Para isso conta com a força bruta de seu corpo e com as energias de sua mente. Ferramentas que se estragam à medida que o organismo biológico envelhece, ou até mesmo antes, diante de acontecimentos imprevisíveis. Está o homem exposto a toda sorte de risco, que a qualquer momento podem minimizar sua força de trabalho, impedindo-o de prover ao seu sustento e de sua família. Necessita então de amparo, de socorro que possibilite a continuação de sua existência sem que se prive do mínimo razoável para sua subsistência. Se não pode obtê-lo pelos seus meios próprios, alguém há de fazer por ele. Surge assim a idéia de socorro mútuo, assistência, finalmente, de previdência, em que o encargo de assistir aos que atingiram o limiar de suas forças ou capacidade é repartido entre todos os membros da coletividade. A Previdência Social é também chamada por alguns de Seguro Social.


O sistema da previdência social apresenta um complexo de relações jurídicas em que a lei estabelece direitos e obrigações para os sujeitos abrangidos pela atividade da Seguridade Social. Ao dissertar sobre a natureza jurídica do Seguro Social, quando então o órgão dele encarregado denominava-se Instituto Nacional de Previdência Social, o renomado Professor A. F. Cesarino Júnior bem demonstra a teia de relações jurídicas existentes envolvendo a matéria, ao dizer que: no seguro social tal como está estabelecido entre nós, intervêm quatro pessoas: o Instituto Nacional de Previdência Social, o Estado, o empregador e o empregado. Destas, abstraindo do poder de contrôle do Estado sôbre as autarquias, duas somente têm obrigações, são sujeitos passivos: o Estado e o empregador, meros contribuintes; duas têm ao mesmo tempo direitos e obrigações: o Instituto que tem o direito de receber as contribuições (do Estado, do empregador e do empregado) e a obrigação de conceder os benefícios (aposentadorias, auxílios, etc.); e o empregado (substituído em caso de morte e, as vêzes, no seguro-maternidade por um ou mais dependentes) que tem o direito de exigir a concessão dos benefícios, e a obrigação de pagar a sua contribuição, aliás, de consentir no desconto de sua contribuição do seu salário. Tôdas estas obrigações resultam exclusivamente da lei e não da autonomia da vontade. Têm, portanto, caráter estatutário e não contratual. (DIREITO SOCIAL BRASILEIRO - Saraiva - 6ª ed. 1970 - 1º vol., pág. 270).


Esta pequena digressão sobre o sistema previdenciário ou do seguro social teve por objetivo demonstrar, aquilatar e reavivar a importância de um sistema previdenciário sadio, capaz de atender às diversas hipóteses de sinistros ocorrentes em meio a enorme massa de trabalhadores brasileiros. Um sistema dito de cobertura universal, como o nosso, precisa contar com uma enorme capacidade financeira para atender a demanda por seus benefícios e prestações, sempre crescente, tendo em vista o aumento demográfico. E, ainda mais, para compatibilizá-lo com os preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da valorização do trabalho, da criação de uma sociedade justa ( arts. 1º, III, IV, 3º, I, da Constituição Federal de 1988).


No tocante ao sistema previdenciário brasileiro, dispõe a Carta Magna, em seu artigo 194 que, a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.


No Brasil adota-se o sistema tripartite de custeio da previdência social: o Estado, o empregador e o empregado, nos termos do que dispôe a Constituição Federal, em seu artigo 195.


A Constituição Federal atribui competência privativa à União para legislar sobre a seguridade social (art. 22, XXIII); o legislador ordinário editou a Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio e dá outras providências, e a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social. Juntas, traçam as diretrizes normativas para que o Estado brasileiro possa atender aos ditames constitucionais relativos à previdência social, com o escopo de a todos garantir, nas hipóteses de sinistros e infortúnios o amparo necessário. A lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991 cuida das tradicionais contribuições dos trabalhadores e empregadores sobre a folha de salários.


Além desta lei, conta a previdência social também com a contribuição das empresas sobre os seus lucros, a chamada Contribuição Social sobre o Lucro, instituída pela Lei nº 7.689, de 15 de dezembro de 1988 e a contribuição para financiamento da seguridade social (COFINS), da Lei Complementar nº 70, de 30 de dezembro de 1991, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar nº 85, de 15 de fevereiro de 1996 e Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995. Conta também com recursos oriundos do Fundo Social de Emergência, aprovado pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1 de março de 1994, com as alterações da Emenda Constitucional nº 10, de 4 de março de 1996.


Para garantir o real recebimento dos recursos que são destinados à Previdência Social, o legislador pediu socorro às armas características do Direito Penal. Na mesma lei em que instituiu o Plano de Custeio da Previdência Social definiu também as condutas consideradas ilícitos penais. Entretanto, ao assim agir, trouxe à baila a velha discussão sobre as imperfeições da obra legislativa.


Como conteúdo da expressão “dá outras providências” do enunciado da referida lei está o artigo 95 e alíneas, que define e institui os chamados “crimes previdenciários”.


No contexto da lei sobre o custeio do sistema de previdência social no Brasil, resolveu o legislador elencar condutas que atentam diretamente contra os interesses de seus integrantes e, por via indireta, o de todos os componentes da sociedade que necessitam da proteção previdenciária.


A tipificação das condutas atentatórias aos bens ou interesses da Previdência Social não é nenhuma novidade e não foi introduzida agora com a citada lei. Surgiram os delitos contra a previdência com a edição da Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960. Referido diploma legal, em seu artigo 155, com as alterações do Decreto-lei nº 66, de 21 de novembro de 1966, elencava as condutas tidas como caracterizadoras de ilícitos penais. Para a definição dos ilícitos penais previdenciários, o legislador de então tomou de empréstimo definições de condutas ilícitas já existentes no ordenamento jurídico, ao invés de criar uma tipificação própria. Era a chamada tipificação por equiparação. Assim, o citado artigo 155 (com as alterações introduzidas pelo Dec.-lei nº 66), em seu inciso I enumerava determinadas condutas e as equiparava ao delito de sonegação fiscal, previsto na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965; o inciso II mencionava conduta equiparada à de apropriação indébita, definida no art. 168 do Código Penal; o inciso III arrolava uma série de condutas que foram equiparadas ao delito de falsidade ideológica, previsto no art. 299 do Código Penal e, finalmente, o inciso IV contemplava condutas equiparadas ao estelionato, previsto no art. 171 do Código Penal.


Assim, ao legislador de 1960 pareceu mais fácil a enumeração de delitos previdenciários por assemelhação, renunciando a sua prerrogativa de criar os tipos penais autônomos, próprios e específicos, destinados à proteção da previdência social.


Tal situação, que criou inúmeras dificuldades de interpretação para os aplicadores do Direito, persistiu até a edição da Lei nº 8.137/90, que define os crimes contra a ordem econômica e tributária e abrangia também as ações criminosas contra a previdência social. (cf., a propósito, a sadia discussão entre Manoel Pedro Pimentel e Jorge Medeiros da Silva sobre se o não recolhimento de contribuições descontadas dos empregados caracterizaria ou não o delito de apropriação indébita, in RT 451/321 e Direito Penal Especial, respectivamente).


Finalmente, em 1991 é editada a Lei nº 8.212 que cuida do custeio da previdência social, dispondo seu artigo 95 sobre condutas que o legislador entendeu definir como ilícitos penais previdenciários. Abandonou em parte a velha tradição e resolveu definir os ataques à Previdência Social estabelecendo as condutas ilícitas em uma lei própria, tida então como especial, no tocante à definição de ilícitos penais, em relação às mesmas condutas da Lei nº 8.137/90.


Algumas das figuras típicas criadas pelo artigo 95 e suas várias alíneas são novas; outras, porém, já eram conhecidas.


Dispõe o art. 95 que constitui crime:


a) deixar de incluir na folha de pagamentos da empresa os segurados empregado, empresário, trabalhador avulso ou autônomo, que lhe prestem serviços;


b) deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa o montante das quantias descontadas dos segurados e o das contribuições da empresa;


c) omitir total ou parcialmente receita ou lucro auferidos, remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições, descumprindo as normas legais pertinentes;


d) deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público;


e) deixar de recolher contribuições devidas à Seguridade Social que tenham integrado custos ou despesas contábeis relativos a produtos ou serviços vendidos;


f) deixar de pagar salário-família, salário-maternidade, auxílio-natalidade ou outro benefício devido a segurado, quando as respectivas quotas e valores já tiverem sido reembolsados à empresa;


g) inserir ou fazer inserir em folha de pagamentos, pessoa que não possui a qualidade de segurado obrigatório;


h) inserir ou fazer inserir em Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado ou em documento que deva produzir efeito perante a Seguridade Social, declaração falsa ou diversa da que deveria ser feita;


i) inserir ou fazer inserir em documentos contábeis ou outros relacionados com as obrigações da empresa, declaração falsa ou diversa da que deveria constar, bem como omitir elementos exigidos pelas normas legais ou regulamentares específicas;


j) obter ou tentar obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo direto ou indireto da Seguridade Social ou de suas entidades, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, contrafação, imitação, alteração ardilosa, falsificação ou qualquer outro meio fraudulento.


§ 1º No caso dos crimes caracterizados nas alíneas d, e e f deste artigo, a pena será aquela estabelecida no artigo 5º, da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, aplicando-se à espécie as disposições constantes dos artigos 26, 27, 30, 31 e 33 do citado diploma legal.


Embora passados 35 anos do início da proteção penal à Previdência Social, o legislador ainda não conseguiu criar uma legislação escoimada de equívocos, pois, ao estatuir sobre as condutas definidoras dos tipos legais, o legislador produziu obra defeituosa.


Com efeito, para as condutas descritas nas alíneas “d”, “e” e “f” após enumerar o preceito, tomou de empréstimo, uma vez mais, como costuma fazer o legislador em matéria previdenciária, numa demonstração de pouco caso com tão relevante assunto para a nacionalidade, a sanção estabelecida para os chamados crimes do colarinho branco, previstos na Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986. Parece que a intenção foi a de aumentar sensivelmente a gravidade da sanção cominada a essas condutas delituosas.


Entretanto, para as condutas definidas nas demais alíneas, o legislador esqueceu-se da sanção! Assim, quem praticar qualquer das condutas enumeradas nas alíneas “a”, “b”, “c”,”g”, “h”, “i” e “j”, não terá sanção nenhuma. Nas normas elencadas nessas alíneas, o legislador instituiu o preceito, porém, olvidou-se de estabelecer a sanção correspondente à sua violação.


O tema tem profunda imbricação com o princípio da legalidade, pois, não há crime nem pena sem lei anterior.


Pretendeu o legislador de 1991 criar normas incriminadoras para a proteção de bens jurídicos ligados diretamente à previdência social. Entretanto, não instituiu uma norma penal porque a característica desta é a enumeração do preceito, definindo uma conduta, de comando ou de proibição, com a necessária descrição da sanção correspondente.


O binômio preceito e sanção é parte integrante de toda norma jurídica. Não se trata de característica particular do Direito Penal.


Veja-se a clássica definição de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO - Curso de Direito Civil - Parte Geral - 14ª ed. - Saraiva - 1976 - lei é um preceito comum e obrigatório, emanado do poder competente e provido de sanção (p. 13). O renomado civilista, ao tecer considerações sobre a diferença entre Direito e Moral ensina que: a principal oposição entre a regra moral e a regra jurídica repousa efetivamente na sanção. ... a segunda, ao inverso, conta com a sanção para coagir os homens. Se não existisse esse elemento coercitivo, não haveria segurança nem justiça para a humanidade. O conceito de sanção, ou possibilidade de constranger o indivíduo à observância da norma, torna-se inseparável do direito. Neste, como diz JEAN H&EACUTEMARD, essencial é o problema das sanções, pois, justamente através de sua aplicação é que a regra jurídica adquire sua mais completa eficácia, seu valor absoluto (ob. cit, p. 3)


Prossegue o eminente jurista: Por fim, a última característica da lei é a sanção (no sentido de coação), do verbo sancire, que significa reforçar o preceito, torná-lo inviolável. Trata-se, como já vimos, de elemento inseparável do direito. Regra jurídica sem coação, disse IHERING, é uma contradição em si, um fogo que não queima, uma luz que não alumia. ( ob. cit., p. 14).


A mesma integração entre preceito e sanção, como elementos componentes da norma jurídica também se faz presente no Direito Penal.


Isto porque, a norma penal, como espécie de um conceito mais amplo (a norma jurídica), contém, portanto, uma ordem, ou norma de conduta, e a respectiva sanção, como garantia para seu cumprimento e eficácia... e ... tôda norma incriminadora contém, portanto, dois elementos constitutivos: o preceito e a sanção ...no Direito Penal, não há normas incompletas, pois se ao imperativo de que decorre o preceito não suceder uma” sanctio juris”, a norma é inexistente ... (TRATADO DE DIREITO PENAL - José Frederico Marques - Saraiva - 2ª ed. - 1964 - Vol 1º, p. 118).


Nas precisas palavras de ANIBAL BRUNO, como tôda norma jurídica, a norma penal compreende o preceito e a sanção; o preceito, que contém o imperativo de proibição ou comando, e a sanção, que ameaça de punição a violação do preceito. No preceito se exprime a vontade estatal de estender a determinados bens jurídicos a proteção penal, proibindo ou ordenando atos, em conformidade com essa proteção; na sanção manifesta-se a coercibilidade do preceito, que é uma das características da norma jurídica. São dois têrmos que se prendem indissolùvelmente um ao outro, para integrar a unidade de conteúdo da norma de Direito. (Direito Penal - Forense - Livro I, Tomo I, 1959 - p. 180).


Ou como leciona HELENO CL&AACUTEUDIO FRAGOSO, a norma penal é constituída do conjunto formado pelo preceito e a sanção, que constituem unidade lógica indissolúvel. A norma sem preceito ou sem sanção é inexistente. (LI&CCEDIL&OTILDEES DE DIREITO PENAL - Forense - 4ª ed., 1980 - p. 75).


De fato, é inconcebível pensar-se em uma norma que contenha o preceito sem a sanção. Seria um vazio, um nada, pois o elemento característico da norma jurídica é a sua coercibilidade, que se caracteriza pela imposição de uma sanção quando violada.


Ora, sem a previsão da correspondente sanção, a norma incriminadora é inexistente, de modo que lícitas seriam as condutas elencadas nas alíneas ”a”, “b”, “c”, “g”, “h”, “i”, “j”, do art. 95, da Lei nº 8.212/91.


Continuando a dar pouco caso à sistematização penal, à definição clara e precisa dos tipos penais instituidores dos ilícitos previdenciários, o legislador de 1995 perdeu outra oportunidade de reparar o mal cometido. Editou a Lei nº 9.032, de 28 de abril de 1995, que alterou várias das disposições das Leis nº 8.212/91 e 8.213/91, sem alterar o malfadado art. 95 da primeira delas, deixando-o intocado. Agora, bem recentemente, em obediência ao art. 6º da Lei nº 9.032, de 28 de abril de 1995, o Poder Executivo promoveu a publicação consolidada das Leis nº 8.212/91 e 8.213/91 no Diário Oficial da União, de 11 de abril de 1996. Nessa consolidação das leis permaneceu a redação defeituosa do art. 95, na parte em que instituiu os crimes previdenciários sem prever as respectivas sanções.


Estará, então, a previdência social destituída da poderosa proteção que é conferida pelo Direito Penal, como a ultima ratio para a garantia de seus interesses e proteção jurídica de seus bens?


Poderão então os indivíduos e as empresas, por seus dirigentes, tranquilamente agir sem que sejam molestados pelo soldado de reserva da ordem jurídica que é o Direito Penal?


Nosso entendimento inclina-se pela resposta negativa.


Uma interpretação mais ligeira da norma estaria a indicar que ela ofende o princípio da legalidade, tão bem insculpido na fórmula latina de FEUERBACH: nullum crimen, nulla poena sine lege, inserido na Constituição Federal, em seu art. 5º, XXXIX e reproduzido no art. 1º do Código Penal.


Apesar dessa lacuna, as hipóteses elencadas nas citadas alíneas continuarão a ser punidas. Ocorre que a lei 8.212/91 é especial em relação à lei anterior, de nº 8.137/90 e aos dispositivos do Código Penal em que se amoldavam condutas que violavam bens e interesses da previdência social. Os chamados delitos previdenciários, embora previstos em lei especial não escapam às teorias e princípios gerais do Direito Penal.


De fato, muitas das condutas enumeradas naquelas alíneas do art. 95 já se encontravam anteriormente descritas na lei 8.137/90 e, ainda que não houvesse a previsão típica desta lei, de caráter geral em relação a de nº 8.212/91, mesmo assim, muitas delas estariam perfeitamente elencadas no Código Penal, de modo que, subsidiariamente haveria a previsão legal de punição, obedecendo assim ao princípio da legalidade. Compare-se, por exemplo, a título exemplificativo, as condutas descritas nas alíneas “g”, “h” e “i” do art. 95, que nada mais são do que a mesma conduta descrita no art. 299 do Código Penal, que define o delito de falsidade ideológica. Tome-se, ainda, como exemplo, a conduta definida na alínea “j” e a descrita no art. 171, § 3º do Código Penal. Em verdade, estas alíneas reproduzem as anteriores definições dos delitos de falsum, do estelionato.


Não se trata de aplicação de analogia, proibida em Direito Penal em matéria de normas incriminadoras. Trata-se, apenas, da aplicação dos princípios próprios que regulam o instituto da tipicidade, segundo os quais, o tipo está na lei, que contém a descrição abstrata da conduta, e a tipicidade, encontra-se na ação, que revela o comportamento do agente amoldável àquela descrição. Desse modo, pode haver subsunção típica das condutas do art. 95 em tipos da Lei 8.137/90 ou em tipos previstos no Código Penal, aplicados subsidiariamente. Deixa de haver a tipicidade pela lei especial, porém, está ela presente na norma incriminadora de caráter geral.


A solução do problema dar-se-ia pela simples aplicação do princípio da subsidiariedade: lex primaria derogat legi subsidiariae.


Na impossibilidade de aplicação do art. 95, alíneas “a”, “b”, “c”, “g”, “h”, “i” e “j”, da Lei nº 8.212/91, aplica-se a Lei nº 8.137/90, ou disposições incriminadoras do Código Penal, se for o caso, àquelas condutas que se amoldam nos tipos penais descritos nestas leis, porque, sempre que um tipo especial não puder, por um motivo qualquer, abrigar tipicamente o episódio que se analisa e examina, o tipo geral, subsidiária e supletivamente, como reserva do tipo especial (já que este contém todos os seus elementos), outorgará guarida típica ao fato (FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO - Conflito Aparente de Normas Penais - RT 673/294).


A não previsão da sanção, que deixou a norma incompleta, não significa que as hipóteses elencadas nas alíneas “a”, “b”, “c”, “g”, “h”, “i”, “j”, do art. 95 da Lei nº 8.212/91 não serão punidas. Aparentemente, tal punição viria de encontro com o princípio da legalidade.


Entretanto, tal princípio em sua formulação completa impõe o reconhecimento de que não basta a existência de lei. Se faz necessário que a lei seja anterior - falando-se, então, no princípio da anterioridade da lei penal, tal como definido no art. 1º do Código Penal, em combinação com o disposto no art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal.


Assim, as condutas descritas no art. 95, alíneas “a”, “b”, “c”, “g”, “h”, “i” e “j” se amoldam, ou na adequação típica dos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, ou então, nas descrições típicas dos arts. 171, 299, etc. do Código Penal. A concretude dos fatos e sua subsunção em uma norma penal incriminadora é tarefa que se apresentará ao julgador no momento da decisão, em que dirá da certeza do direito a ser aplicado.


O que não se pode admitir é que os sonegadores e fraudadores da Previdência Social permaneçam ilesos e impunes diante da omissão do legislador. A punição é possível como demonstrado acima.


Entendemos, pois, que esta solução é mais consentânea com os princípios e postulados do Direito Penal, e atende aos fins sociais preconizados no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil que, na hipótese retratada, significa dar a devida proteção penal à Previdência Social, punindo aqueles que por meios ilícitos pretendam se furtar à obrigatoriedade de seus deveres e obrigações de contribuir com a Seguridade Social, mesmo porque, se assim não fosse, a ordem jurídica agasalharia uma gritante desigualdade. Isso porque o agente que praticasse um delito de falsum, com o fim de eximir-se do recolhimento de tributos, por exemplo, o ICMS ou o IRPF, seria punido com as sanções dos art. 1º ou do art. 2º da Lei nº 8.137/90, conforme as hipóteses comprovadas, enquanto que, aquele que praticasse a mesma conduta com o fim de sonegar o pagamento de contribuições devidas à Previdência Social não teria punição alguma, face a omissão do legislador em prever e estabelecer a respectiva sanção. Seria dar tratamento desigual aos iguais, o que contraria frontalmente o art. 5º, I, da Constituição Federal.


Assim, todos que ofendam ou venham a ofender os bens jurídicos de interesse da previdência social, cuja proteção se pretendeu no art. 95, alíneas “a”, “b”, “c”, “g”, “h”, “i” e “j”, da Lei nº 8.212/91, não escaparão da respectiva punição, apesar da inexistência da norma incriminadora, posto que, os comportamentos lesivos alí descritos se subsumem em outras disposições definidoras de delitos e o enquadramento deles nestas normas incriminadoras atende ao princípio da anterioridade da lei penal, pois, antes da edição da Lei nº 8.212/91, que almejou instituir aqueles ilícitos previdenciários, muitas condutas nela descritas já eram consideradas ilícitos penais.


Ad extremum, consideremos inexistentes as normas incriminadoras previstas no art. 95, alíneas “a”, “b”, “c”, “g”, “h”, “i”, “j”, que não chegaram a adquirir sua inteira configuração e por isso não ingressaram validamente no mundo jurídico; as condutas descritas nessas alíneas continuarão a ser consideradas ilícitas, pois, se apresentam como subsumíveis ora nos tipos definidos nos artigos 1º ou 2º da Lei nº 8.137/90, ora, algumas delas, em disposições do Código Penal. São condutas que se revelam típicas e antijurídicas em função de outras normas penais incriminadoras existentes previamente no ordenamento jurídico repressivo. Em verdade, tudo se resume a uma questão de técnica jurídico-penal, de qualificação dessas condutas à luz da teoria da tipicidade, basilar no Direito Penal. O fundamento para a imposição da pena está em o agente realizar no mundo fático, condutas que encontram sua correspondência no mundo abstrato do tipo penal, que encerra o preceito. Basta que se faça a indagação sobre a existência de normas penais que encerram as mesmas condutas descritas nas citadas alíneas do art. 95. Em caso positivo, serão elas típicas, o que legitimará, então, a imposição da sanções nelas previstas, sem que com isso se malfira o princípio da legalidade inscrito no art. 1º do Código Penal.


Por isso, é injurídico pensar-se em absolvição do agente com fundamento no disposto no art. 386, inciso III do Código de Processo Penal, que prevê a não responsabilização penal quando o fato imputado não constituir crime, porquanto, as condutas enumeradas nas alíneas “a”, “b”, “c”, “g”, “h”, “i” e “j” do art. 95, da Lei 8.212/91, podem e devem ser consideradas criminosas porque, revestidas da necessária tipicidade, tendo em vista a anterior existência de outras normas penais incriminadoras nas quais elas se amoldam. Além do mais, cabe ao julgador dar aos fatos a correta definição jurídica, nos termos do disposto nos arts. 383 e 384 do mesmo diploma legal. A inexistência da sanção naquelas alíneas não significa não possa o julgador encontrá-la em outras normas, desde que, evidentemente, faça-se presente o requisito da tipicidade.


Dessa forma, a ordem jurídica, com o emprego do Direito Penal, estará garantindo que o suor do rosto para o ganha pão será enxugado pela Previdência Social.


*Nelson Bernardes de Souza é Juiz Federal em Campinas, São Paulo.

e-mail: nbsouza@correionet.com.br

 


 





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