Liminar, faca de dois gumes

Celso Ribeiro Bastos
Professor de pós-graduação de Direito Constitucional e Direito das Relações Econômicas Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Diretor-geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional

A medida liminar é uma providência cautelar destinada a preservar a possibilidade de satisfação pela sentença do direito do impetrante. Ela tem, pois, a sua vida, umbilicalmente ligada ao menos no nascedouro ao mandado de segurança instituído pela Constituição de 1934. A essência da liminar consiste justamente em desfazer a deficiência da Justiça consistente no fato de ela não poder ser instantânea. Se um juiz pudesse, chamando os dados ao computador, dali extrair o resultado, não haveria necessidade de liminar. Mas como não há nada tão antagônico como a jurisdição e a informática, a verdade é que, muitas vezes, as pessoas batem às portas do Judiciário em situações que, se atendidas logo, terão condições de evitar a lesão iminente e definitiva ao seu direito. Daí a razão de ser da liminar.

Durante muito tempo, cumpriu ela essa função profícua de proteger o impetrante sem precisar causar prejuízo aos impetrados. O uso da medida era feito de molde a não implicar em situações irreversíveis, que trouxessem um dano ao interesse público que não pudesse ser coberto ela denegação da segurança e reversão ao ‘‘status quo ante’’. É bem de ver, outrossim, que, embora regulada por lei ordinária, a concessão de liminar encontra assento jurídico no próprio texto constitucional assegurador do mandado de segurança. Se este objetiva a reparação ‘‘in natura’’ do direito ofendido, a utilização pelo Judiciário de medidas acauteladoras dos interesses lesados impõe-se, ainda que não disponha aquele de condições, na ocasião, para proferimento de uma decisão definitiva.

Assim, a liminar não envolve prejulgamento do mérito. É uma decisão autônoma, no sentido de que não vincula o juiz a mantê-la, posto que é precária, nem a permitir que ela influa na formulação do seu juízo por ocasião da sentença, que deverá ser prolatada com a mesma liberdade, tanto no caso de concessão quando no de denegação da liminar.

Acontece, entretanto, que o instituto, a partir da sua implantação, sofreu gradativamente uma transmutação profunda. Citemos as principais. Hoje as liminares não são privativas do mandado de segurança, mas encontram-se instauradas em diversas outras ações. Não se limita ela a suspender atos administrativos, mas suspende a própria lei. Podemos estar certos de que em país nenhum do mundo se suspende uma lei por despacho de um ministro isolado do STF. E o que talvez seja o mais importante, a liminar passou não somente a assegurar situações para que a sentença possa ser cumprida afinal, mas entrou também a conceder a fruição de direitos ao requerente em situações de total dubiedade quanto à possibilidade de este vir a reparar ou, se preferirmos, a restituir a situação ao ‘‘status quo ante’’, no caso de denegação do pedido.

Embora com outro nome, mas com efeitos parecidos ao da liminar, já agora a medida produz efeitos contra particulares e não somente em relação a atos administrativos dos quais era tida, para um dos nossos grandes juristas, já falecido, como o antídoto do ato administrativo.

Assiste-se, pois, a um exagero nas aberturas dadas ela lei para a utilização de liminares. Como a temperança continua a ser a virtude mestra da vida, a situação estava a demandar um corretivo.

Quer-nos parecer que a Medida Provisória nº 1.570, de 26 de março de 1997, andou bem. Em primeiro lugar, estendeu às demais ações, que comportam liminar, a proibição historicamente instaurada em torno da liminar concedida em mandado de segurança. A razão sendo a mesma, nada mais certo do que o direito ser o mesmo. Em suma, condicionou a outorga de liminar às mesmas restrições previstas para o mandado de segurança.

Estas preocupações não são novas para nós. Há vinte anos já meditávamos sobre a necessidade de garantir a Administração contra aqueles casos em que a outorga de uma liminar pudesse não vir acompanhada da certeza da restituição do direito ao estado inicial da lide e em obra monográfica sobre o assunto. ‘‘Do Mandado de Segurança’’, editada pela Saraiva, expúnhamos como uma das fórmulas possíveis de evitar essas injustiças:

‘‘Outra alternativa seria a estipulação de exigência constante de caução, nos casos em que a suspensão dos efeitos do ato administrativo fosse cercada de circunstâncias que deixassem antever a inocuidade da sentença denegatória para restaurar o ‘‘status quo ante’’, a exemplo do que faz o nosso atual Código de Processo Civil, no art. 804. Prevê ele que, em certos casos de concessão de medida cautelar sem audiência da parte contrária, o juiz pode determinar que o requerente preste caução real ou fidejussória bastante para ressarcir os danos que o requerido possa vir a sofrer. (‘‘Do Mandado de Segurança’’, Saraiva, São Paulo, 1978, p. 27).

Não deixa de ser uma razão de júbilo, embora adiado por vinte anos, ter visto a minha sugestão encampada pelo art. 2º da Medida Provisória nº 1.570/97.

‘‘Art. 2º — O art. 1º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo:

‘‘§ 4º — Sempre que houver possibilidade de a pessoa jurídica de direito público requerida vir a sofrer dano, em virtude da concessão da liminar, ou de qualquer medida de caráter antecipatório, o juiz ou o relator determinará a prestação de garantia real ou fidejussória.’’

Já o art 3º veio apenas a corrigir o que não era senão um erro da Lei nº 7.347, que emprestava força ‘‘erga omnes’’ sem qualquer restrição às decisões proferidas, com o que qualquer juiz de determinada jurisdição regional estaria apto a proferir decisões a serem cumpridas em qualquer parte do território nacional.

Em síntese, não nos parece que a medida traga em si elementos que justifiquem a polêmica que causou. Creio que esta é mais devida ao momento histórico em que vivemos, marcado por uma forte instabilidade da ordem jurídica, fruto de uma legislação polimorfa e desordenada. Outrossim, parece que se procura compensar a conhecida morosidade do nosso Judiciário, fruto dos nossos procedimentos judiciais e da carga de trabalho daquele Poder, com medidas que, de pronto, dão a sensação que se está a fazer direito rapidamente. O próprio instituto da tutela antecipada é um tanto paradoxal. O art. 273 do CPC, alterado pela Lei nº 8.952/94, diz que o juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatorio do réu. Ora, a levar a sério o pressuposto da prova inequívoca, seria melhor o juiz dar a sentença de uma vez do que prolongar inutilmente o feito.

Não há dúvida do que o estudo da liminar deve continuar a merecer um lugar de destaque nas preocupações dos nossos juristas dada a força do instituto que pode, de uma só penada, inverter completamente o resultado da situação litigiosa. A função acautelatória do direito deve ser prestigiada porque é ela, sem duvida, que mais satisfaz a segurança que a ordem jurídica deve proporcionar, uma vez que impede a ocorrência do próprio dano o que acaba por dispensar o instituto substitutivo, mas insatisfatório da reparação.

Esse avanço deve ser estimulado no máximo, desde que, pelo entusiasmo jurisdicional em evitar supostos danos, não venha efetivamente a criá-los em desfavor do réu. Aí o direito se converte na supina injustiça e se desacredita diante da opinião pública.

Nada mais doloroso do que sofrer uma lesão irreparável por força de uma decisão judicial, calcada em legislação inadequada. Seria o caso de pensar-se em fazer com que as liminares só fossem deferidas por um grupo de juízes, em torno de três ou cinco, isto porque, no mundo moderno, o magistrado é colocado diante de situações de extrema tensão humana. Por vezes e, ainda mais, freqüentemente, chegam pedidos de liminares de doentes que querem, por decisão judicial, obter pagamentos de serviços médicos, por vezes prestados até no exterior, em absoluta exorbitância do contrato celebrado com a empresa seguradora. E mesmo não querendo entrar, de leve que seja, no mérito dessas questões, até porque cada uma comporta soluções diversas, mas o que remanesce verdadeiro é que a denegação de liminar pelo magistrado pode levar na prática à morte de um doente terminal.

É óbvio que, colocado em situações desta natureza, é muito difícil esperar-se que o magistrado mantenha a sua frieza, mas é óbvio também que o problema não se resolve mediante a sistemática concessão dessas liminares. Situações como tais deveriam ter a sua responsabilidade dividida por diversas pessoas, sem falar-se num definitivo equacionamento da própria questão de fundo.

Essas linhas tiveram por finalidade demonstrar a sensibilidade e a delicadeza do instituto da liminar, e festejar o fato de o legislador não estar indiferente ao problema, procurando tenazmente enfrentá-lo ainda que nem sempre ao contento de todos, como ocorrem com todos os interesses conflitados.

 








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