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Missão Impossível - Relatório do agente especial Franco de Rosa

Com um sorriso meio sacana, o carteiro me entregou um pacotinho. Olhei para o pacote e compreendi o porquê. Aquele embrulhozinho parecia um filminho de sacanagem. Também me surpreendi com o volume. Não estava esperando nada parecido. Não sou cliente do “Paradise”. Era uma fita cassete. E o remetente era  anônimo. Lembrei de um anônimo que é fã do Mozart. Mas também havia um anônimo que vivia infernizando a vida do Adolfo Aizen. Botei a dita no toca-fita. Uma voz grave invadiu meu estúdio estereofônico, em “tcham” de sensurround:

— Alô, Franco! Tudo bem? Aqui é o anônimo! (Qual deles?) Preste atenção, que você está assumindo um compromisso comigo. (Eu?) Na verdade é uma missão. (Pô, mas quem pediu?) Você vai ter que dar (Isso não!) uma de espião. (Ah, bom!) Vai visitar esse tal STÚDIO do Watson e do Itamar, aí em Curitiba, e fazer um relatório sobre eles. Logo mais, você receberá novas instruções, dizendo onde pôr o relatório. (Pois sim, vou pôr é no seu...) Escuta, aqui, sacana! Se não cumprir a missão direitinho, te corto o saco! (Calma aí! Eu tava brincando!) Então mãos à obra! Esta fita se autodestruirá dentro de quinze segundos...

Clic...Ploctoc...Vapt... Tirei a fita do aparelho e joguei-a no quintal do vizinho, mais do que depressa. Antes que aquela bosta dissolvesse tambem meu toca-fita.

A MISSÃO

Fui até a casa do Gustavo, meu vizinho do lado esquerdo (sem conotações políticas, por favor). Entrei pela cozinha assobiando a senha dos vizinhos, como é de praxe entre nós, quadrinhistas da vila. Peguei o Gustavo no flagra, mexendo na bundinha da Malícia com ecoline amarelo. Papo furado pra pagar pedágio, e prossegui para cumprir minha missão secreta.

Saltei o muro do fundo do quintal do Gustavo e sobre os verdes gramados do fundo do quintal do Watson. Rafael, caçulinha do Watson, se assustou comigo e começou a chorar, como sempre, quando apareço. Então lembro que preciso cortar a juba. Daí vai ser meu filho quem vai estranhar: ele não sabe brincar comigo sem puxar minha cabeleira.

Adentrei no estúdio do Watson e, como sempre, meu narigão ficou enroscado em algumas milhares de folhas de samambaia que existem naquele antro de gibis velhos e móbiles de caças da Segunda Guerra, a apontar pra gente.

Dos estúdios de quadrinhistas em que entrei, sem dúvida o do Watson é o que perfaz um quociente maior de insanidade mental. Tá louco, meu! É entrar e ouvir o Antonio Marcos cantando lá no canto, acompanhado pelo coral formado pelas filhinhas do Watson, que conhecem as músicas da rádio Atalaia de cor.

Na altura do meu umbigo, em uma estante de vidro, dessas que a gente só vê em farmácias, tinha uma fileira de miniaturas de super-heróis, protegendo suas respectivas revistas empilhadas nas estantes. Tentei pegar um gibi do Homem-Aranha, do Steve Ditko, mas a manga da minha camisa esbarrou naqueles malditos super-heróis. Caíram todos os Vingadores, mais o Surfista Prateado. Não consegui pegar a revista e ainda tive que suportar um olhar gelado e agudo do “cabra da peste”, que me censurava por desarrumar suas coisas.

O pernambucano é todo “cheio de dedo”. Tudo no lugar. Arrumadinho e espanado. Aviões, miniaturas de carrinhos de ferro, réplicas de uma dezena de revólveres do faroeste, caveiras de gesso, água pra lavar pincel em três vidros separados — com detergente para tirar o excesso de nanquim e do guache — e um pacotão de cigarros Galaxy no canto da prancheta.

Watson estava esboçando uma página do Zamor, mas começou a tocar no rádio uma velha canção do Roberto Carlos, e ele largou a prancheta num piparote. Saltou por um puta vaso que tem no meio do estúdio (eu juro que tem até cobra naquele mocó), e pegou o violão e começou a desafinar junto com as filhas, que entraram saltitantes no estúdio.

Contemplei aquela pilha de gibis que rodeavam o ambiente e saquei que o Watson é uma ilha rodeado de gibis por todos os lados.

A música do Roberto acabou...

— Diz aí, “pernóstico”! — falou Watson, depois de engolir um copo de café e acender o 19º cigarro daquela manhã.

— Só vim pedir uma xícara de nanquim emprestada, vizinho! — gaguejei temendo revelar-me em missão especial para o anônimo (qual deles?). Ao mesmo tempo em que tentava engolir o “pernóstico” sem demonstrar insatisfação.

— Porra, que cara chato! Só pede as coisas emprestadas! — bradou o cara do Recife.

— Nem tudo eu peço emprestado, né, meu! Eu trouxe a xícara! —gaguejei.

Ao que Watson divagou:

— Quando eu era garoto, ficava sonhando em ser o Jayme Cortez. Quando eu lia A Múmia, queria ser Sérgio Lima. Quando lia Raio Negro, queria ser o Gedeone. Me imaginava como Colonese, como o Edmundo Rodrigues. Vivia imaginado como os desenhistas brasileiros viviam. Queria saber como eram meus idolos! Hoje imagino que muitos leitores pensam assim a nosso respeito. Muitos pensam em ser como eu. Já pensou, cara? Coitado do cara que pensa ser como o Franco de Rosa! Vai dar num pernóstico!

Não aguentei! Peguei a xícara sem o nanquim, dei uma olhada no original emoldurado do Mozart Couto, na parede, e fui para a casa do Itamar, a casa vizinha pelo lado direito.

O BOM RAPAZ

Itamar: — Entra! — gritou do estúdio, para mim, que batia à porta da rua!

Franco: — Vim te pedir uma xícara de nanquim, vizinho! — Tava eu lá usando o mesmo truque, para cumprir minha missão pro anônimo (qual deles? Seria um terceiro? ou um agente dos quadrinhos colonialistas?).

Itamar: — Pode pegar aí, à vontade! — entregando-me um vidrão de 20 litros de nanquim.

O Itamar é assim mesmo. Compra tudo em grande quantidàde: lápis, borracha, papel Chamex — Champion 500;linha d’água, então, que ele usa para desenhar, comprou 100 pacotes. Outro dia, resolveu pintar uma tela. Comprou 83, em todos os formatos. A primeira experiência deu na capa desta edição que você está lendo. O cara é bom mesmo. Sabe empregar seus 10 anos de desenho.

Franco: — Itamar, você não se ofende se eu fizer uma pergunta? O seu Exterminador tem algo a ver com o filme?

Itamar: — Só tem! Eu tava passando no centro e vi um cartaz lá: "Breve o Exterminador!” E tinha a figura do cara com o capacete e as armas. Me amarrei no tipo. Imaginei: esse filme eu não perco. Mas, quando voltava pra casa, fiquei imaginado como seria o personagem. Começei a achar uma razão para ele ser um exterminador e acabei bolando o meu Exterminador.

Franco: — Pois é. Inclusive o sou Exterminador não tem nada a ver com o cara do filme. E exterminadores sempre existiram. A Marvel tem um bandido com esse nome; o Bilal desenhou um pra Metal Húrlant; até a Bíblia fala de um exterminador (um anjo que desceu para acabar com Sodoma e Gomorra). Achei legal o seu personagem. Violento e sentimental. Faz meu gênero. Ainda mais nesse seu estilo arrojado e dinâmico. Como você foi mudar aquele desenho comportado, carregadão, para esse seu trabalho atual, limpo e dinâmico?

Itamar: — Foi logo que eu assisti aquele filme, “Mad Max”. O filme tinha muitas angulações e cenas violentas. Percebi que tinha que passar aquilo para os quadrinhos. Aquele tipo me tocava muito, aquilo me refletia, me fazia muito bem. Sabe como é, né? A gente fica o dia inteiro sentado nessa prancheta, pacatão. E essa violência toda que acontece pelas ruas... Quando eu morava em São Paulo, no Rio, presenciava cada uma! A minha infância, minha vida toda cheia de repressão. Sempre fui reprimido. Então preciso me extravasar em alguma coisa, eu me desforro no desenho ou curtindo filmes violentos. Tudo pra limpar a alma.

Franco:   — Concordo com você! Acho que seus leitores deviam saber disso! Aliás, eles devem sentir isso. Por que eu curto esses troços violentos, com um bom pique de movimento. Sempre gostei, e nunca virei bandido, como certos pedagogos acreditam acontecer com quem gosta deste tipo de diversão. Bandidos são aqueles que crescem no meio da violência e do crime e não mais se seúsibiizam com isso. Os Quadrinhos, ao contrário, sensibilizam e elucidam. O seu Exterminador ilustra bem o que falei: o homem é realmente produto do meio em que vive!

Daí comecei a olhar a pilha  de originais que o Itamar iria entregar no dia seguinte para o Seto. Reparei também que a pilha de páginas do Itamar é sempre maior que a de todo mundo. Várias HQs de mais de 2O páginas cada uma.

O DESENHISTA-PADRÃO

Franco: — Você não dorme, Itamar? Como você consegue desenhar tantas páginas por dia?

Itamar: — E que eu sou rápido! Já tenho meus métodos! Tive um leitor que reclamou da anatomia dos meus desenhos. Mas eu não acho que o conhecimento pleno da anatomia seja necessário. Não no meu caso. Eu comecei a melhorar quando vi o “Mad Max”. Daí encontrei o Gene Colan, que já tem uns 30 anos de quadrinhos, e agora só usa distorções e angulações. Eu me identifiquei com o trabalho dele.

Franco: — É, mas seu desenho, suas figuras, nio tem nada a ver com o trabalho do Gene Colan. E esse domínio que você tem de preto e branco, o traço seguro, isso é pessoal. Só se “ganha” com o tempo, com a prática...

Uma música country disparou no FM estéreo do Ita. Ele estava na prancheta fazendo arte-final (passando tinta nanquim sobre o desenho a lápis). Os traços supervelozes do Superarte-fmalista pareciam acompanhar o ritmo da música.

Franco: — Música legal, essa aí!

Itamar: — Ei Eu, quando estou fazendo arte-final, gosto de músicas rápidas. Inspiram-me mais, fazem-me cócegas nos dedos, deixam a mão elétrica. Quando estou esboçando (fazendo desenho a lápis), ponho fitas de músicas lentas. Só trabalho com música. A noite, vejo televisão, fazendo arte-final. Mas, na hora de esboçar, tem que ter músicas suaves e concentração. Arte-Final é um troço sem mistérios. Vai diretão.

Franco: — Pra você, né? Pra mim, ainda é um puta grilo. Mas eu vou superar essa lenha. Mas... eu ainda acho que você não dorme. Você desenha páginas pra caralho! Outro dia, você tava almoçando aqui na prancheta mesmo! Você deve trabalhar pelo menos umas 27 horas por dia, né?

Itamar: — Que nada! Pela manha, não faço porra nenhuma! Acordo meio bobão e fico grogue até perto da hora do almoço, quando começo a esboçar. Depois fico passando nanquim até umas dez da noite. Dá umas sete horas por dia, diretão. Desenhista tem que trabalhar mesmo. A vida tá dura. Tenho que pagar a TV em cores, comprar uma bicicleta mais veloz, pra fazer ginástica pela manhã. Vida de quadrinhista é fó...

Ei! Parados aí! Sabia que reconheceria o jeito de falar do anônimo da fita K7. Era o Seto. Puta merdal Por que não identifiquei a voz antes? Tudo bem. O resto desse relatório será destruído em 15 segundos. Vou dar para meu filhinho de um ano.

Rasg, Grasb, Ressssp, Reeecc!

Fim