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Quando a Dança do Ventre volta a ter Sentido
por: Gamila Hellua (Cínthia Nepô)
texto original:
Projeto Hécate
publicado pela primeira vez em 13/08/2002, na página do Projeto
Hécate
Uma dança exótica, sensual. Tambores hipnóticos e os movimentos convulsivos dos quadris das bailarinas causam sensações difíceis de explicar. Algumas dizem que vicia. Não duvido. Aliás, talvez tenha sido a droga mais pesada exibida na novela “O Clone”. A overdose de dança do ventre não deixou margem de comparação com nenhuma outra dança já exibida em rede nacional.
Por trás dos bastidores, porém, o glamour desaparece. O próprio nome, dança do ventre, foi um termo inventado no início do século XX, por um empresário francês, para vender nos cabarets da época uma atração diferente. Por causa disso, até hoje o estilo de show que apresenta a bailarina coberta de brilhos, tecidos finos e paetês é chamado estilo cabaret, para desespero das puristas que praticam essa dança.
Já o estilo tribal, muito em voga desde os anos 90, resgata danças praticadas entre os beduínos, Berbers e Tuaregs. Incorpora, também, elementos de outras culturas, como o flamenco e a dança indiana. Apresenta trajes mais sóbrios, maquiagem ritualística e uma dança onde as bailarinas mantêm o foco em si mesmas e no grupo, em detrimento do público. Por ter sido desenvolvido a partir de uma pesquisa de um grupo dos Estados Unidos, é chamado “American Tribal Belly Dance” (dança do ventre tribal americana).
As mulheres que praticam a dança do ventre no Brasil são, em sua grande maioria, adeptas do estilo cabaret. Apenas no ano de 2002 o estilo tribal chegou ao país. Ambos os estilos, em nosso país, passaram pelo filtro das americanas. Nossa dança com véus segue o padrão americano, com um tempero brasileiro, é claro, mas a primeira influência sempre vem de lá. Apesar de termos uma riqueza cultural inestimável, nossa baixa auto-estima nos impede de exercermos uma autonomia de criação. Com o tribal, o mesmo processo se repete, estamos embarcando na pesquisa americana. Uma lástima! Qual o motivo de pegarmos carona nas tribos alheias, se temos um referencial tão vasto de danças femininas, como as dos orixás e outras tantas indígenas e folclóricas?
Praticando a dança do ventre desde 1993, comecei a atuar profissionalmente em 1997. Resolvi desenvolver uma pesquisa sobre o universo feminino, por meio dessa dança. E minhas descobertas não foram muito animadoras. Encontrei mulheres torturadas, infelizes, desgostosas com seus corpos e suas vidas. Algumas miseráveis, outras enlouquecendo. Tive interesse em estudar esse fenômeno de maneira acadêmica, mas ainda não foi possível. Enquanto isso, fico com minhas conclusões e interpretações. Para não cair no “achismo”, resolvi falar sobre minha própria experiência como bailarina, professora e coreógrafa.
Escolhi a dança do ventre por acreditar que ela me libertaria dos padrões impostos por danças que exigem desempenhos sobre-humanos e corpos moldados para sua prática. Também chamava a dança do ventre de “dança de bolso”, já que ela podia ser levada para inúmeros espaços, desde bares, restaurantes, barcos, teatros, casas, enfim, uma gama de possibilidades. Com o tempo, fui aprendendo que não era bem assim. Para tudo existe um preço (clichê, porém muito bem empregado aqui). Dependendo do local da apresentação o tratamento é o pior possível, a bailarina não é vista como artista, tem o status quase igual ao de uma prostituta. E, com a popularização dessa dança, também desapareceu a liberdade da forma física.
Antes da novela, era comum que eu escrevesse textos que explicassem o que era a dança do ventre. Hoje não é mais necessário explicar, já que a grande maioria da população se tornou expert em cultura árabe, islamismo e, por tabela, dança do ventre. Confesso que preferia minhas referências às mulheres misteriosas com roupas esvoaçantes e brilhantes, cabelos compridos, muita maquiagem, causando espanto, admiração e muita curiosidade a respeito daquilo que faziam.
Agora, comparam-se os shows às performances da novela. Os corpos precisam obedecer à estética de modelos e atrizes. As barrigas, que eram até bem vistas por causa das tremidas e ondulações, hoje são um incômodo que precisa ser retirado com urgência. A minha barriga, com estrias de uma linda gravidez, nunca esteve tão em foco como agora. Ganhei de presente uma plástica de abdômen depois de um show. Fiquei pasma em pensar que aquela pessoa, que me ofereceu um presente tão caro, provavelmente não tinha prestado atenção à minha dança, porque minha barriga se sobressaiu. Não houve grosseria, muito pelo contrário, a pessoa me cobriu de gentilezas dizendo que eu dançava muito bem e merecia ter um corpo esculpido. Por algum tempo fiquei em dúvida. O desespero em atender ao padrão das mídias é um vírus que poderia me contaminar. Mas fui imunizada por um texto do Arnaldo Jabor, onde ele dizia que as mulheres querem ser mercadorias sedutoras, disputadas e consumidas como um bom eletrodoméstico ou uma BMW, “porque ‘objeto’ é feliz e não sofre”.
Constatei embasbacada que a minha dança da libertação feminina poderia ser a grande armadilha que me levaria a querer ser igual às mulheres das revistas, das novelas e comerciais de cerveja. Lembrei da depressão pela qual já havia passado, na época em que fazia tantos shows que perdi a noção do que acontecia em minha vida. Dependendo da apresentação eu conseguia me sentir como uma peça de carne na vitrine de algum açougue, um pianista de churrascaria, malabarista de circo, dançarina em programa de televisão, enfim, nunca chegava a hora em que eu seria uma deusa etérea em contato com o divino feminino. E nunca chegaria, se eu não mudasse o rumo das coisas.
Como professora, posso dizer que minhas alunas também estão torturadas por causa de seus corpos. Sonham em retirar dobras, lipoaspirar barrigas imaginárias. Eu sempre as incentivei a se aceitarem como são, até porque são realmente lindas. Tenho tentado ampliar os horizontes de nossos grupos de estudo, mas para isso é preciso sair um pouco do tema ‘dança do ventre’, explorar o universo feminino a partir de novas referências. Danças de Orixás, Danças Indígenas, mas principalmente a Dança Interna, aquela que cada uma pode criar a partir de seu repertório pessoal, têm sido o bálsamo de que precisávamos para reencontrar nossas essências. Como coreógrafa, percebo que esse novo caminho pode melhorar a impressão da dança feminina junto ao público.
Venho realizando esse trabalho há um certo tempo, e nem assim fiquei imune aos efeitos da “globalização” da dança do ventre. Descobri, com muito entusiasmo, outras iniciativas parecidas. O sagrado é em cada uma de nós. O acesso não está automaticamente ligado ao aprendizado de uma dança, mas na tomada de consciência e no despertar. Um pequeno esforço é necessário. Estar atenta é tarefa constante.
Quanto à minha barriga... Bem, ela virou patrimônio das mulheres que comigo se identificam. Ontem mesmo, a mãe de uma das minhas alunas disse que, quando me viu dançar, ficou de alma lavada. Ela nunca imaginou que poderia deixar de lado o complexo de ter barriga e dançar. Depois do meu show, percebendo que eu estava feliz e segura, resolveu que também poderia. Ela não foi a primeira e não será a última a se sentir assim. Portanto, não tenho o direito de eliminar um instrumento tão eficaz de elevação da autoconfiança feminina. Minha barriga é sagrada, ela é o meu ventre. O termo dança do ventre adquire, assim, uma conotação absolutamente positiva.
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