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Corpo-propriedade
Os valores hoje pregnantes são a saúde, o bem-estar, o autocontrole, a bela juventude e a tolerância. Circunscrevê-los historicamente requer, claro, observar que os homens modernos orientavam seus pensamentos e emoções segundo o tema da liberação individual e/ou coletiva. Mas requer, sobretudo, notar que surgem por contraste. A contrapartida de uma sociedade hedonista é a fragilização dos indivíduos. Na relação de cada um consigo mesmo, a fragilidade significa que tudo aquilo que nos dá prazer implica, simultaneamente, riscos de adoecimento, envelhecimento e morte prematura, bem como pode produzir dependência. Nossas vidas estão ameaçadas pela virtualidade de múltiplas doenças e supõe-se que somos incapazes de gerir nossa relação com o que nos dá prazer. Na relação de cada um com os outros, a fragilidade nos restringe aos papéis de vítimas ou de piedosos.

A comparação sistemática com a sociedade moderna tal como descrita por Foucault permitirá esclarecer nosso diferencial. A primeira peça do dispositivo disciplinar era a produção do anormal como procedimento de culpabilização do desejo. Na medida em que havia a existência visível da anormalidade, os homens modernos não cessavam de se interrogar sobre a normalidade de seus prazeres e desejos. A experiência de si moderna era moldada pelo temor do anormal e pelo prazer ressentido da normalidade (5). A diferenciação hierárquica dos atos e sua correlação com o ser dos indivíduos permitia a visibilidade.

Havia um pulular de estranhos seres; contudo, as figuras maiores da anormalidade eram o perverso, o louco e o delinqüente. Estranheza que era reduzida pela causalidade psicológica. Todos estes seres tinham um passado individual que explicava porque tinham se tornado desviantes.

A segunda peça necessária à culpabilização do desejo é a constante vigilância de si mesmo, o que foi obtido graças à vigilância hierárquica. A sociedade disciplinar precisou de um imenso cortejo de mediadores na relação de cada um consigo mesmo: médicos, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais, professores, carcereiros, policiais, etc. Vigias, forçavam os homens a interiorizar a vigilância, o olhar do outro. Graças a seu desvelo, cada indivíduo moderno trazia consigo um superior que julgava em verdade o que se deseja e faz. O indivíduo torna-se o princípio de sua própria sujeição na medida em que sua reflexão sobre seus pensamentos e ações lhe provoca dor (6).

Nossa Atualidade, por sua vez, se esforça inicialmente por retirar a carga de negatividade das práticas que a Modernidade definia como anormais. Sabe-se que a tolerância em relação às diferenças comportamentais tornou-se um dos valores maiores de nossa época (7); admitimos, por exemplo, que não há hierarquia entre as formas de se obter prazer. O modo de se exercer o poder hoje prescinde dessa diferenciação entre atos. No filme Philadelphia, quando os advogados de defesa pretendiam negativizar o portador da AIDS que pleiteava uma indenização por demissão injustificada, não frisavam sua escolha sexual e, sim, caracterizá-lo como promíscuo. O foco desloca-se da diferença qualitativa entre práticas e se concentra na intensidade com que cada um se entrega a uma dada prática, qualquer que ela seja, de um modo tal a esquecer-se dos riscos. O desejável, diz-se, é uma certa relação com o que nos proporciona prazer que comporta o cuidado com o risco de adoecimento e morte prematura.

Esta mudança pode ser apreendida como o surgimento de um outro nexo entre consciência e ação. Na Modernidade, as doenças que conquistavam relevo social eram as doenças da consciência de si: monomanias homicidas, neuroses, etc (8). São doenças que colocam a interrogação sobre que diferença faz que exista consciência de si quando se age. As soluções terapêuticas devem girar em torno ao fenômeno da culpa, mesmo que haja uma oposição entre conservadores e libertadores. Há comportamento desviante porque a consciência moral é ou fraca ou excessiva: ou o desvio tem sua explicação na interiorização incompleta da culpa ou o desvio reside justamente na existência de uma culpabilidade inconsciente. Estes comportamentos anômalos são pensados sob o signo da oposição livre-repetitivo, estando em jogo a abertura do futuro: como ainda ter o futuro como alteridade, que é simultaneamente ser livre no futuro. A condição desta abertura do futuro é o estabelecimento de uma outra relação com o passado. A lembrança do que foi esquecido teria uma função terapêutica.

A mídia e a medicina hoje descobrem e destacam outras doenças. Eis algumas: certas doenças crônico-degenerativas (como o câncer de pulmão provocado pelo fumo ou as doenças cardíacas e o colesterol), as diversas compulsões, o fenômeno do vício, a síndrome do pânico, anorexia e bulimia, a relação entre depressão e fragilização imunológica, a AIDS, etc. Têm em comum o fato de serem doenças emocionais, ou melhor, são a resultante de um tratamento cognitivo errôneo das emoções. Para que a consciência seja pertinente, esta relação entre emoção e ação deve também incluir um nexo com o futuro na forma do risco: uma forma reflexiva onde está em questão não apenas a dor e o prazer atualmente experimentados, mas o seu efeito sobre a saúde futura dos indivíduos. Uma ação, além de seu efeito atual, tem ainda uma conseqüência arriscada. A relação entre consciência e ação não tem mais como mediadores os conceitos de culpa e desejo; os novos mediadores são a emoção atual e a emoção ligada a uma antecipação de risco ou prazer. O conceito de risco é a tradução psíquica do conhecido preceito do movimento ecológico: não existe almoço grátis. E há doença quando este delicado equilíbrio entre prazer atual e dor futura - ou o inverso (dor atual e prazer futuro) - é rompido.

Dois exemplos  mostram esta nova concepção de ação. O primeiro é midiático. No filme Fogo contra fogo, há um instante onde os assaltantes de banco devem decidir se vão ou não continuar com o plano. A pergunta que o chefe endereça a seus comparsas é única: vale a pena correr o risco, mesmo quando, como é o caso de um dos assaltantes, se tem família, propriedades e economias? A ação não é interrogada segundo sua adequação a uma regra moral, mas sob a ótica de suas conseqüências. O outro nos é dado por Antônio Damásio em seu livro O erro de Descartes, que propõe um novo modelo de consciência. Damásio define os criminosos, que denomina de sociopatas, como possuindo um limiar de sensibilidade às emoções de risco muito elevado. Os sociopatas só prejudicam os outros porque são incapazes de ter em mente o quanto suas ações podem lhes ser prejudiciais (9). São pouco sensíveis ao risco de prisão e morte, às desvantagens para eles próprios de seus atos. Sem esta insensibilidade ao risco, não fariam o que fazem. E o que seria a síndrome do pânico, senão uma sensibilidade excessiva? E o vício, senão o esquecimento do risco?

Podemos sumariar as diferenças com a Modernidade. A disciplina fazia existir a anormalidade; a sociedade da fragilidade produz o risco. Ao invés da culpa, trata-se de um delicado balanço entre a ansiedade e o prazer atual. O que se visa não é conformar o desejo; agora, o exercício do poder admite uma ampla latitude de desejos pois está assentado em um desejo óbvio: quem não quer viver cada vez mais com vigor? Tampouco é necessário hierarquizar práticas; é preciso, sim, frisar a relação entre o vínculo afetivo com uma dada prática e o risco a que se expõe. Os mediadores na relação de cada um consigo mesmo não precisam mais ser aqueles que podem vigiar; cabe, sim, aos meios de comunicação informar aos indivíduos dos riscos que correm dado o que fazem e o que trazem como herança. A forma do poder não é a vigilância, mas a da informação que adverte sobre riscos tendo em vista o próprio interesse do indivíduo: ela se dá como convite à moderação. Nada mais adequado a uma sociedade hedonista, individualista e modulada diariamente pelos meios de comunicação. Enfim, o mal hoje corporifica-se nas figuras do portador, do dependente e do endividado. Sua comunhão: graças ao que portam como herança  e ao que fizeram, não podem muito.

Um paradoxo permite a precisão conceitual. Quando o sujeito enuncia 'Eu sou portador', aparentemente nada haveria de paradoxal. Declara um estado de coisas. Contudo, se prestarmos atenção ao desnível temporal, surge a contradição. Como o que portamos são virtualidades de adoecimento e morte, devemos nos comportar como doentes sem estarmos doentes ainda. A extensão do conceito de portador ultrapassa os indivíduos que foram expostos e contraíram o vírus da AIDS. Dado a epidemiologia dos fatores de risco e os avanços espetaculares da engenharia genética, o conceito de portador conquista generalidade. Pela herança genética e por nossos hábitos, somos todos portadores de virtualidades de adoecimento e morte prematura. A confirmação patética dos efeitos deste novo modo de se exercer o poder nos é dada pelo caso de uma mulher americana que, mesmo sem ter qualquer tumor, mas devido ao fato de  sua mãe, tia e irmã terem morrido de câncer no seio, preferiu realizar a mastectomia. A confirmação trágica, cada um de nós a experimenta: a ansiedade cotidiana com que nos relacionamos com os objetos e atos que nos dão prazer.


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NOTAS

(5) Cf M. Foucault, Vigiar e punir, Petrópolis: Vozes, 1983, p. 159-64.

(6) Cf idem, p. 180-4.

(7) Cf G. Lipovetsky, op. cit.,  p. 167-78.

(8) Há uma rica historicidade das doenças que consiste no olhar médico capaz de reunir sintomas para constituir uma doença. Nas modificações deste olhar, pode-se perceber o que uma dada sociedade considera como sendo o mal. Cf G. Deleuze, Conversações, Rio de janeiro: 34 Letras, 1992, p. 165-6.

(9) Cf. A. R. Damásio, O erro de Descartes, Lisboa: Europa-América, 1995, p. 189-90.