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Corpo-propriedade

É nesta sociedade da fragilidade que o conceito de corpo-propriedade torna-se pertinente para descrever a forma da experiência de cada indivíduo com o seu corpo. O conceito de corpo-próprio, tão importante para o pensamento moderno, designava um corpo que participava da gênese de uma identidade podendo, por isso mesmo, questioná-la. O corpo-propriedade designa aquele adequado a uma identidade. Pensemos, por exemplo, no fenômeno contemporâneo do transexual. Este conceito descreve também a segunda forma do corpo entrar no mercado. Se o capitalismo industrial erigiu o corpo como fonte de energia, o capitalismo da superprodução o requer como corpo que consome e que é capaz de ser objeto de consumo. Não se trata apenas da imagem bela e jovem que pode ser vendida porque vende; trata-se ainda daquilo que as novas tecnologias tornaram possível: venda ou aluguel de órgãos.

As duas últimas características são as decisivas. Hoje, o corpo é simultaneamente capital e dívida. Capital porque imagem sedutora a ser oferecida aos outros. A importância política dos corpos belos e midiáticos suplantou já há algum tempo aquele dos intelectuais. E dívida pela herança genética e pelos hábitos. Hoje, só aceitamos sacrifícios, só abdicamos do prazer momentâneo, quando temos em vista nossa imagem futura ou os riscos que as ações implicam. De modo genérico, toda e qualquer produção hoje, seja ela de bens ou de si mesmo, depende da antecipação. Por fim, se ele é capital e dívida, a relação entre consciência e corpo é administrativa. A consciência deve assegurar a boa gestão dos riscos e do potencial de sedução. Eis porque os comportamentos compulsivos ganham destaque na mídia e nos profissionais de saúde mental: perturbam a boa gestão do corpo, são uma forma de sublevação do corpo que o arruina. Um exemplo acadêmico. Jaques Ruffié, médico e membro do Collège de France, em seu livro recente Naissance de la médecine predictive, propõe qual será o resultado dos avanços na genética: "graças ao conhecimento de nossos fatores de risco, em pouco tempo nós poderemos fazer de nossos velhos centenários alertas. Na condição, porém, de conhecer nosso 'capital saúde' e de assegurar a sua autogestão, do mesmo modo como gerimos nosso patrimônio imobiliário."(10)  Como este 'capital saúde' são fatores de risco, virtualidades de adoecer segundo a conjunção entre herança genética e hábitos, o que devemos administrar são nossas dívidas.

O trecho acima já possibilita entrever a nova experiência da morte que está se formando em nossa Atualidade. O objetivo da administração de dividas é o prolongamento da vida. Na realidade, a propagação pela epidemiologia do conceito de morte prematura já nos adiantava esta nova experiência. Só é possível falar de prematuridade se porventura for concebível algo como a hora certa de se morrer. O recuo às experiências cristã e Moderna permitirá a percepção do que nos distingue, ao mesmo tempo em que torna menos abstrusa a concepção atual de limite.

A morte na Modernidade era pensada como finitude. Uma experiência constante do limite, seja ele provocado pelo corpo, pelo acaso ou a própria morte. A constância a diferencia da experiência cristã. Nesta, o nada está lá, à distância, distância que esvazia o que está aquém de seus limites apenas para nos encher de esperanças e temores com o que está além. Limite que tornava a vida passageira uma passagem  para a eternidade. Já quando o nada se interioriza e se torna constante, o limite torna-se intransponível e abre para uma existência ilimitada. A vida passageira nos condena à eterna passagem, à errância. Inultrapassável, desenha um espaço labiríntico onde quem nele se encontra está desde sempre já perdido, jogado no 'rio de mil braços, no mar de mil caminhos' (11). A experiência do limite insuperável era o que permitia justamente pôr em questão os limites que a sociedade impõe às experiências que cada um pode ter de si mesmo, dos outros e do mundo. Segundo a concepção de ser-para-a-morte de Heidegger, é só quando antecipamos uma possibilidade que, se realizada, desvanece toda e qualquer possibilidade que nossas vidas não tem mais caminhos obrigatórios, que nos tornamos capazes de ser autenticamente (12). Em suma, a experiência do reino ilimitado do Limite nos abre à transgressão de todo e qualquer limite social e temporal.

O surpreendente de nossa Atualidade é a mescla de ateísmo e retorno do limite à distância. Afinal, não é preciso grande argúcia filosófica para observar que é a crença no além o que torna a morte uma linha longínqua separando dois reinos, duas formas de tempo, o efêmero e o eterno. Nosso ateísmo? É suficiente pensar no debate ético-legal acerca da obrigação dos mortos de doarem seus órgãos para os vivos. Sabe-se que a existência de ossadas é um dos critérios da antropologia para marcar o início da cultura: implicaria a consciência da morte e a crença na vida após a morte. Hoje, porém, o cadáver não precisa ser preservado; deveria, sim, dizem filósofos e médicos, poder ser retalhado para o uso dos vivos.

Apesar dessa  preferência pelo aqui e agora, dois acontecimentos colocaram a morte à distância. Em primeiro lugar, é inegável que a medicina do século XX e a industrialização acelerada nos possibilitaram um maior controle sobre a morte. As marcas do tempo no corpo tardam a se revelar; nossos próximos tornam-se cada vez mais longevos; a própria predominância das doenças crônico-degenerativas como causa de morte serve já como signo. Tal poder afasta, para grande parte da humanidade, a iminência da morte. Segundo, este limite à distância é sócio-técnico. Social porque a expectativa de vida é calculada segundo a média de idade com que as pessoas morrem. Técnico porque um tema maior de pesquisa da medicina contemporânea é justamente se o envelhecimento e a morte são necessários; se o forem, qual seria o limite biológico imposto à espécie humana e, neste caso, se podemos alterá-lo. Há diversas teorias. Uma supõe que só envelhecemos pelo uso; logo, evitando a deterioração das células, poderíamos prolongar a vida: aqui, aparece a medicina orto-molecular. Outra, apoiando-se na relação inversa entre número da prole e duração de vida, afirma haver um limite genético à sobrevivência, que estaria em torno dos 100 anos. Uma terceira, apoiando-se na indestrutibilidade do ADN, supõe que morremos apenas porque há mutações genéticas provocando doenças crônico-degenerativas e é só quando aumenta a expectativa de vida que estas mutações podem afetar a vida dos homens.

O efeito da colocação à distância é fazer do limite uma meta (13). Tanto o limite é uma meta para os indivíduos, quanto ele é a meta da pesquisa biomédica que visa o seu recuo. Dado os riscos que portamos, devemos agir para morrer quando devemos. O limite-meta repõe a dívida e um sentido para a vida. Enquanto na Modernidade a antecipação do Limite era condição do questionamento dos limites sociais, na Atualidade, o afastamento do Limite possibilita haver limites sociais em uma sociedade individualista e pós-cristã.

Dois exemplos do limite-meta. Um é o debate sobre a aceitabilidade da eutanásia. O nó do debate é a  possibilidade de estar havendo um prolongamento artificial e doloroso da vida. Enquanto a medicina moderna surgiu pela aceitação de que ainda havia processos vitais mesmo após o indivíduo estar morto, de tal modo que a vida podia ser pensada como o conjunto de funções que resistem à morte, hoje nós pensamos que é possível um indivíduo estar morto mesmo que ele esteja vivo: as técnicas lhe fizeram ultrapassar o seu limite. Damásio, mais uma vez, nos oferece o segundo exemplo. Um longevo seria um sábio: a inteligência se define pela duração de vida (14). O quão afastada está a concepção romântica de gênio, daquele que era capaz de sacrificar a vida para realizar a obra.

O problema com o limite-meta é o fato de a dívida ser propriamente impagável: trata-se da capacidade de vida dos indivíduos. A única forma de quitá-la, ou melhor, de não ficar assombrado com a possibilidade de ser cobrado é a própria cobrança, a morte. A vida torna-se um estado de moratória a ser indefinidamente prolongado (15): o sentido de nossas ações é o de evitar que a dívida seja cobrada quando ainda era possível rolar. Trata-se de consumir sem se consumir.


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NOTAS

(10) J. Ruffié, Naissance de la médecine predictive, Paris: Odile Jacob, 1993, p. 75.

(11) M. Foucault, História da loucura, São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 12.

(12) Cf. M. Heidegger, Ser e Tempo II, Petrópolis: Vozes, 1989, p. 15-51. Na realidade, a relação entre o Limite e os limites sociais é constitutiva de todo o pensamento moderno. O homem é histórico porque é mortal; a história, por sua vez, permitirá aos homens ultrapassarem os limites do que vivem em seu presente.

(13) O conceito de limite-meta diferencia-se do conceito de imortalidade em tempo real proposto por Baudrillard. Para este, o que interessa é mostrar o absurdo de um tal desejo, ao mesmo tempo em que ele é mais uma das formas com que a sociedade midiática procura acabar com a alteridade: correríamos o risco de perder o que seria, aos olhos de Baudrillard, a maior invenção do homem: a morte. Já a intenção do limite-meta é a de mostrar uma nova forma de produção de sentido para os homens. E a resistência a este procedimento residiria não na relação entre morte e alteridade, mas naquela entre vida e multiplicidade. Cf J. Baudrillard, A ilusão do fim, Lisboa: Terramar, 1995, p. 133-48.

(14) Cf Damásio, op. cit.,  p. 205.

(15) Cf Deleuze, op. cit.,  p. 222.