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Introdução da revista Estudos de Religião nº 16

Etienne Alfred Higuet1

O presente número de Estudos de Religião traz as contribuições apresentadas no V Seminário em Diálogo com o pensamento de Paul Tillich, organizado pelo Projeto de Pesquisa Paul Tillich do Curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP e pela Sociedade Paul Tillich do Brasil2. Reatamos assim com a perspectiva interdisciplinar já presente no primeiro número da mesma revista, publicado há quatorze anos3.

O tema do encontro inscreve-se no projeto de Teologia da Cultura elaborado por Tillich nos anos vinte e parcialmente continuado depois da emigração para os Estados Unidos em 1933. A teologia da cultura se distingue da teologia ecclesiástica pelo fato de não se dedicar à sistematização e justificação dos conteúdos da mensagem bíblica e da tradição cristã, mas de praticar uma leitura hermenêutica da totalidade e dos elementos das culturas na intenção de manifestar a sua dimensão de profundidade, o seu sentido radical ou sua preocupação suprema. Entre outras preocupações, Tillich manifestou sempre um grande interesse pela psicologia profunda e pela psicanálise, sobretudo junguiana.

Foi amigo de Kurt Goldstein, Erich Fromm e Rollo May ( que escreveu, com o título Paulus, uma biografia psicanalítica do mestre). Manteve um diálogo com Carl Rogers e outros psicólogos e psicoterapêutas. Pronunciou várias conferências e escreveu vários artigos sobre as relações entre psicologia, religião e teologia. Seguindo os passos dele, reunimos um grupo de interessados na mesma temática para um debate, cujos resultados comunicamos a seguir.

Os dois primeiros textos fornecem uma introdução teórica à problemática do seminário. Geraldo de Paiva apresenta um rápido panorama da discussão atual do tema "psicologia e religião". Depois de delimitar o objeto da Psicologia da Religião como atividade acadêmica: o psicológico na religião ou a apropriação individual da religião (com ampla abertura a todos os tipos de "experiência religiosa"), entendida substantivamente (relação declarada com entidade transcendente) ou funcionalmente (resposta à preocupação fundamental), o autor descreve as principais teorias psicológicas utilizadas atualmente no estudo do comportamento religioso, de cunho pré-consciente ou inconsciente ou de cunho cognitivo. Apresenta, finalmente, a discussão contemporânea do princípio de exclusão metodológica do transcendente que, sem negar o caráter empírico da Psicologia da Religião, insiste no religioso substantivo como perspectiva adequada da disciplina. Ressaltamos vários pontos de contato entre as perspectivas psicológica e teológica: analogia entre o conflito débito - desejo e o conflito gratuidade divina - pecado; necessidade de uma representação "divina" para unir os fragmentos da experiência no desenvolvimento psíquico da criança; importância da relação com o sagrado - ou do choque ôntico de Tillich -  para a constituição do self; necessidade de um quadro de referência perceptual religioso como condição de possibilidade da experiência religiosa.

A conferência de James Farris introduz, de modo biográfico, às relações complexas de Tillich com a psicologia. Destaca alguns dos pensadores e algumas das escolas de psicologia que influenciaram Tillich e/ou que foram influenciadas por ele. Na segunda parte, inicia um diálogo entre a teologia de Tillich e a psicologia, ressaltando os temas da aceitação ou justificação, da ansiedade e da culpa, da coragem, do Novo Ser e de Deus além de Deus. Tillich estava menos interessado em psicologia geral, do que em psicanálise e psicologia profunda.  A razão disto é que estas eram as áreas que lidavam diretamente com o "conhecimento da alma", procurando entender quem é o ser humano como um todo integrado e ajudar na superação da personalidade fragmentada. Sendo a alienação psicológica causada pela separação com o Ser em si, teologia e psicanálise devem colaborar em vista de alcançar a cura verdadeira dos conflitos existenciais, que só será conseguida pelo contato com o poder do Novo Ser, como o poder do amor ou de Deus.

 De um modo ou de outro, as três contribuições seguintes tratam da linguagem simbólica em relação com a experiência religiosa. Numa perspectiva junguiana, Liliane Wahba realça o caráter revelatório dos símbolos, reunindo pensamento racional e pensamento analógico. "Simbolizar representa o processo de dar forma a um significado profundo, atemporal, unindo o consciente e o inconsciente: a forma e a matéria bruta da imaginação." Entre conteúdos do consciente e do inconsciente, o símbolo provê as pontes necessárias, unindo o que aparentemente é irreconciliável e realizando a individuação, a superação parcial da nossa cisão originária entre terra e céus, entre racional e irracional. Orientando a psique, "o símbolo aponta para o significado do que se vive" e "símbolos poderosos são os que representam a totalidade". 

Partindo de Freud, José Tolentino Rosa pretende situar a experiência religiosa como "a expressão de uma complexa rede de representações psíquicas que, longe de ser ilusão, constitui importantes componentes estruturantes do sentido de identidade e do crescimento mental." Isso requer que a pessoa renuncie  à onipotência infantil, de ser um Homem-como-Deus, e passe a ser um Homem-com-Deus. Usa-se para esse fim o inconsciente como matriz que constantemente gera significados a partir de símbolos preexistentes. Confrontando Freud e Tillich a respeito da coragem e do medo, o autor conclui que precisamos ficar com os dois: "o homem tem líbido - desejo e medo de viver - e mortido, desejo e medo de morrer".

Rui de Souza Josgrilberg explicita três concepções de símbolo relacionadas com a religião: em Freud, Cassirer e Tillich. Trata-se de três hermenêuticas diferentes: teoria pulsional do símbolo, teoria da sua função transcendental e teoria onto-religiosa. Para Freud, o símbolo "é uma transformação da pulsão ou por transferência ou por deslocamento do sentido". O símbolo é, então, uma das muitas formas de "volta do reprimido" por substituição. "O símbolo aparece como uma função de sentido de uma hermenêutica retroativa no corpo e no tempo". Como Freud, o filósofo neo-kantiano Cassirer vê a função simbólica como origem da cultura: "a produção de formas culturais é a criação de formas simbólicas significativas para o mundo humano, fruto da atividade transcendental e a priori da razão". O símbolo é a chave que coloca o pensamento numa outra dimensão que não é mais determinada exclusivamente pelo biológico ou pulsional. Simbolizar é um ato essencial pelo qual o universo das pulsões é superado dialeticamente pelo universo simbólico do sentido. A linguagem, a arte, a religião, a ciência constituem as várias fases do processo de autolibertação do homem. Para Tillich, enfim, "a experiência religiosa é a chave da interpretação do símbolo autêntico como um modo essencial do sentido ontológico aparecer e oferecer-se à consideração." Longe de ser apenas um substituto, o símbolo aponta "para algo além" do sentido. A hermenêutica ontológica do símbolo exprime a relação pela qual o condicionado e o finito podem se abrir para o sentido do fundamento último, do incondicionado e do infinito. Partindo do religioso - ou seja, partindo da própria coisa para interpretá-la - e não do pulsional ou do cultural, Tillich vê na expressão religiosa uma manifestação do sentido do ser mesmo.

O seguinte bloco de duas conferências expõe diretamente a reflexão de Tillich, que será brevemente comparada à psicanálise junguiana e à medicina psicossomática. Para Eduardo Rodrigues da Cruz, a aproximação se faz pelo viés do gnosticismo, e não apenas através da noção de "símbolo". Referindo-se tanto ao gnosticismo da antigüidade tardia como a outras formas esotéricas que percorreram a história ocidental até os nossos dias, o autor caracteriza a gnose como conhecimento superior colocado como elemento primordial no processo de reerguimento da alma humana, livrando-a do seu estado precário, prisioneiro em que se encontra aqui no corpo terreno. Para Tillich, a penetração da gnose no pensamento cristão permitiu estabelecer uma ponte entre o tipo histórico e o tipo não-histórico da expectativa do Novo Ser, o segundo sendo incorporado e subordinado ao primeiro. Tillich aponta claramente para os perigos - bem atuais - de acentuar unilateralmente a dimensão histórico-institucional ou a dimensão mística-espiritual. Acontece que Tillich - e também Jung - beberam do idealismo alemão de Hegel e Schelling, que também possuem raízes gnósticas. Em particular, a noção de vida em Tillich desenvolve-se numa dialética entre um lado claro, positivo e um lado escuro, negativo, num processo de saída de uma unidade primordial, de uma experiência de alienação e de uma volta a outra unidade em nível superior. Freqüentemente essa concepção sobrepõe-se às considerações que fez sobre a história, relativizando-as a partir de uma perspectiva existencialista transcendental. Jung, por sua vez, incorporou a seu pensamento numerosos elementos gnósticos e seus discípulos atribuíram conceitos junguianos a cada uma das entidades ou emanações presentes no gnosticismo. Os gnósticos não teriam sido os primeiros psicanalistas? Jung compartilhava com os gnósticos a ontologização do mal. Não teria sido o caso também de Tillich, especialmente na leitura feita por seu discípulo, o teólogo e psicanalista Rollo May? Eduardo Cruz termina salientando a historicidade da experiência religiosa como salvaguarda contra a inflação mitológica e os excessos especulativos de toda forma de gnose.

Etienne Higuet retoma a mesma descrição tillichiana do processo vital, contudo numa perspectiva mais fenomenológica. O que permitirá mostrar a identidade entre a cura física e mental, restaurando a saúde e o processo de salvação religiosa. Tillich interpreta o processo de atualização da vida, ambigüidade na alienação existencial e superação das ambigüidades na presença do Espírito divino em termos de saúde/doença e cura/salvação. Isso corresponde à perspectiva do mito religioso cósmico, onde salvação e cura sempre aparecem unidas. Como vitória sobre a angústia da culpa e da morte, a cura das enfermidades espirituais ou mentais constitui a prova mais decisiva da salvação. "Os atos individuais de salvação ou cura devem ser descritos como realização fragmentária, ambígua e antecipativa da totalidade cósmica." Traçando um parallelo entre a medicina e a religião, Tillich mostra a superioridade do modelo de restauração da harmonia quebrada em relação com o modelo de purificação ou superação da contaminação. Trata-se sempre de restabelecer o equilíbrio comprometido, na unidade de todas as dimensões da vida, inclusive na dimensão espiritual que abrange todas as outras. Toda cura diz respeito à pessoa inteira e só se torna possível, afinal, na elevação do ser humano à unidade transcendente da vida não ambígua, na presença do Espírito divino. Tillich pretende, mediante essas reflexões, levar à reconciliação da medicina e da teologia. Digamos que traz também uma importante contribuição para a avaliação dos inúmeros procedimentos de "cura divina" que encontramos no atual clima religioso.

Com as últimas contribuições, entramos mais diretamente no campo da prática. Josias Pereira parte da própria atuação terapêutica para encontrar aí a presença da salvação. Toda cura é cura do sofrimento e não há cura sem fé. Salvar é curar e curar é salvar, pois é o ser inteiro que é curado. Embora, nas condições da existência, a cura seja objeto de uma constante busca. Afinal, a cura/salvação é graça. Nisso concordam Jung e Tillich. "É no contexto do sofrimento, da doença e da cura que a fé se manifesta como elemento atualizador da graça."

Yara Nogueira Monteiro estuda, em perspectiva histórica - com o exemplo da lepra na Idade Média - a relação entre doença e pecado no imaginário cristão. Acreditava-se que as doenças podiam ser decorrentes de pecados individuais e coletivos. Assim estigmatizados - do mesmo modo que os judeus e outros grupos marginalizados - os leprosos eram responsabilizados por qualquer flagelo ou acontecimento tido como prejudicial, sendo usados como bode expiatório. Judeus e "leprosos" foram acusados e perseguidos, queimados e massacrados. A exclusão dos marginalizados - que, às vezes, terminava em morte pelo fogo - se fazia numa espécie de cerimônia fúnebre pública, onde, de qualquer modo, era simbolizada a morte civil do indivíduo. Por outro lado, o leproso podia também ser visto como um "escolhido", revestido de uma certa aura de santidade ou, pelo menos, como instrumento utilizado por Deus para inspirar, na coletividade cristã, a caridade e até mesmo a vocação religiosa. Em suma, a correlação estabelecida entre doença e pecado levava tanto o indivíduo como a coletividade a buscar formas de remissão. As medidas de exclusão adotadas então por motivos religiosos continuam influenciando o pensamento médico ocidental.

Araújo Bello, adotando o ponto de vista da psicologia social, estuda a concorrência entre eficácia científica e eficácia simbólica nas terapias procuradas pelas camadas populares tipificadas pela exclusão, no Brasil de hoje. Considera-se a possibilidade de um imaginário subjacente às práticas de cura nas religiões populares, responsável por diferentes fenômenos presentes tanto em suas operações, como nas relações que se estabelecem entre os diferentes cultos. "A concepção de um trânsito de energia, a forte sensação de uma duplicidade de universos e particularmente a forma como se insere nas operações a questão do mal, comporiam uma estrutura subjetiva capaz de redimensionar tanto o cotidiano, como os fenômenos mais dramáticos da eficácia simbólica presentes nas operações de cura." A chave encontra-se na presença de uma forte dimensão mágica, tanto nas religiões espiritualistas (espiritismo kardecista, umbanda), como no neo-pentecostalismo, em particular na interpretação das causas do mal a partir da influência de "espíritos". Diferentes codificações religiosas apropriam-se dos mesmos elementos para promover estratégias diferentes como forma de articular a eficácia do simbólico. Mas tratar-se-ia sempre de mobilizar energias espirituais positivas para rechaçar as influências espirituais negativas. O que se configura como a principal estratégia utilizada tradicionalmente no Brasil, como último recurso ante a exclusão social. 

Abílio da Costa-Rosa, enfim, examina novamente a relação entre religiosidade e curas, a partir de uma pesquisa de campo junto a freqüentadores da umbanda e das igrejas pentecostais renovadas. Um grupo de controle foi acompanhado na procura dos ambulatórios de saúde pública. A "pesquisa partiu do objetivo de aferir se há ou não eficácia terapêutica nas práticas da umbanda e das igrejas pentecostais renovadas, auto - designadas como procedimentos de cura". Além disso, pretendia-se verificar os fundamentos da eventual eficácia simbólica. Tendo respondido positivamente à primeira indagação, a pesquisa concluiu que "um dos fatores da eficácia das práticas místico-religiosas parece residir na sua maior sintonia com as visões de mundo dos seus adeptos. (...) a adição de sentido é instrumentada através da fé como um meio de engajamento dos indivíduos na solução dos seus problemas". Uma outra conclusão é que a procura crescente dessas práticas está relacionada sobretudo com a exacerbação dos efeitos da cultura do narcisismo, em uma de suas variantes, para indivíduos que estão à margem da produção e do consumo, tanto de bens materiais quanto simbólicos.

O seminário deixou clara a importância de manter um diálogo entre psicologia, ciências da saúde em geral e teologia, em particular sobre os temas vinculados à religião: princípio de exclusão metodológica do transcendente nas ciências empíricas; interpretação do comportamento e da experiência religiosa;     representação de Deus e do sagrado; origem do mal e do sofrimento, angústia, culpa, coragem e justificação; linguagem e eficácia simbólica; relação da saúde com a salvação; presença de "espíritos ou do Espírito"; alienação e integração da pessoa em totalidade; processo de individuação; mística e história; busca de um sentido radical e último; cura religiosa e exclusão social4.

Reproduzimos no final as mais importantes "comunicações livres" apresentadas durante o seminário. Primeiro, um texto de Eduardo Gross, que relaciona o pensamento político inicial de Tillich com a sua ontologia. Para Eduardo Gross, a concepção teológica da política elaborada por Tillich se relaciona intimamente com suas noções sobre ética, sobre filosofia da história, sobre decisão existencial e sobre a compreensão simbólica da realidade na sua ontologia. As concepções políticas de Tillich não só se manifestaram nos conceitos utilizados, mas inclusive ajudaram no desenvolvimento de alguns deles. O autor verifica essas afirmações a partir da análise dos conceitos de Kairos e Teonomia, princípio socialista e princípio burguês, princípio protestante e Gestalt de graça entre outros.

 Enfim, Victor Linn trata a relação entre teologia e psicanálise no pensamento de Eugen Drewermann. Para esse psicanalista e teólogo alemão, a teologia e a psicanálise se unem em torno de uma "interpretação religiosa do religioso" que permite compreender a mecânica da autodestruição posta em movimento pelo pecado e superar o medo pela força da confiança em Deus. Drewermann encontra no pensamento existencialista de Kierkegaard, na psicologia profunda de Jung e na psicanálise freudiana e, ainda, no estudo comparativo das religiões as referências teóricas para desenvolver sua hermenêutica. Para resgatar a relevância da teologia para a existência humana atual, ainda é preciso criticar a teologia cristã acadêmica ocidental, que transformou o falar religioso numa fala estéril, por meio de uma falsa historização do mito, de uma demonização do psiquismo humano e da transformação da pregação de Jesus acerca do Reino de Deus em ideologia da Igreja.


1. Professor no Curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP, Coordenador do grupo de pesquisa Paul Tillich e Presidente da Sociedade Paul Tillich do Brasil.

2. Em São Bernardo do Campo - SP, de 06 a 08 de novembro de 1998.

3. Religião e Psicologia. Estudos de Religião, Ano I, número 1, março de 1985.

4. A respeito da relação entre saúde física e mental e religião, remetemos a: Aldo Natale Terrin. O Sagrado Off Limits. A experiência religiosa e suas expressões. São Paulo, Loyola, 1998. Especialmente os capítulos 5: Saúde e Salvação. Reflexão fenomenológica sobre a função terapêutica das religiões e 6: A doença? Síndrome de Desarmonia do Espírito, que tratam a questão de um modo muito parecido ao nosso; A provocação da fé pela psicologia: revista Concilium, n.º 176, 1982/6; Doença e Cura: revista Concilium, n.º  278, 1998/5.

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