Margin: Exploring Modern Magical Realism/"O MEU MUNDO NÃO É DESTE REINO," Um excerpto por João de Melo, no português (parte uma)

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Margin: Exploring Modern Magical Realism
U M   E X C E R P T O
O MEU MUNDO NÃO É DESTE REINO
p o r   j o ã o   d e   m e l o   ~   l i s b o a ,   p o r t u g a l

NOTA AOS LEITORES: Este excerpto está em duas porções.
Se você desejar imprimir a história inteira, recorde imprimir
ambas as peças. A ligação à segunda parte está perto do fundo
desta página.

C A P Í T U L O    1 1

QUANDO JOÃO-LÁZARO REAPARECEU NA FREGUESIA,
O DESESPERO ERA JÁ UMA GRANDE AVE NEGRA SUSPENSA,
DE ASAS ABERTAS NO MEIO DA CHUVA, E O SEU LUCIFERINO
OLHAR PAROU A CONTEMPLAR A MORTE TÃO DE PERTO
QUANTO O PUDESSE UMA CRIATURA HUMANA SEM O RISCO
DE POR ELA SER FULMINADA.

A mesma árida, loira febre lhe ardia, nesse dia, com desusada intensidade, mas a voz branca enrouquecera de muito chorar e padecer. Isso era aliás insólito na sua vida sem memória, porquanto sempre experimentara uma clareza quase fantástica e tão visível como os cristais iluminados. A sumptuosa barba ruiva, tecida de muitos fios e novelos, no meio da qual fosforesciam dois olhos de um azul de terra, os pés calejados e recurvos, assim como as velhas e sagradas unhas -- no seu todo de homem-pássaro de nariz recurvo e redondo como o osso -- encheram-se depressa desse desespero. A peste trouxera já a morte a algumas crianças e continuava em secreta visitação de casa em casa. Fora vista, segundo diziam, sentada no leito de um menino de três anos de idade que recitava salmos da Bíblia. Era uma mulher sem rosto que se exprimia apenas por gestos e largava um bafo anídrico em todos os objectos que tocava. Outros garantiam que o cheiro dela, sulfuroso e tóxico, queimava o ar talvez para sempre.

João-Lázaro voltou a pedir torresmos e côdeas com a mesma inocente voz branca do paraíso, clamando no deserto e comovendo-se até ao pranto com a miséria das mulheres e com o sofrimento das crianças. Como não tivessem nem côdeas nem torresmos para dar-lhe, começaram a oferecer-lhe moedas brancas e negras. Mas João-Lázaro apenas aceitava o dinheiro preto, por ser de valor secundário. A sua bolsa de pobre passou a andar vazia e a fome obrigálo-ia, em breve, a comer só raízes e amoras silvestres. Vagueava indiferente ao aguaceiro e ao relâmpago e começou a prestar pequenos serviços caseiros e a substituir os homens doentes ou mesmo os mortos. Em paga, davam-lhe um prato de caldo de farinha ou de sopa de mogango, e ele sorvia-o com fastio e como que ensimesmado pelo alimento. A sua inesgotável energia de velho ossudo e obstinado levou-o mesmo a agarrar no machado e a rachar montanhas de toros, sem o mínimo pingo de suor. Teimava até em chamar a si todas as outras tarefas, e com tal sentido de servidão e entrega o fazia, que em breve, depois de rachar a lenha, limpava arribanas e chiqueiros e, depois disso ainda, consertava sebes desmanchadas, cafuões derrubados pelo vento e bueiros entupidos, e caiava prédios e muros, retelhava casas, vedava fornos derruídos e procedia a toda uma infindável série de outros serviços. Por vezes, as pessoas tinham de inventar tarefas sem sentido, como acomodar medas de sacos perfeitamente enfileirados, varrer a rua ou orvalhar plantas já encharcadas, porque João-Lázaro só despegava quando o Sol se punha, dando então por findo o trabalho. Nunca ninguém conseguiu entender uma única palavra da sua boca. Mas ao darem-lhe ordens em português, explicavam-lhe as prioridades do serviço, pormenorizavam todas as necessidades, e ele dava mostras de perfeito entendimento da língua. Contudo, era impossível dialogar com ele, porquanto a sua linguagem não era mais do que uma sibilação de pássaro e grandes sílabas abertas e monótonas. Tentaram recompensá-lo com dinheiro branco de prata, carne de porco ou de galinha, ou simplesmente algumas maçarocas de milho, quartas de feijão, ovos e outros alimentos. Mas João-Lázaro obstinavase de imediato numa recusa e apenas aceitava moedas pretas, côdeas e torresmos. Se não tinham nada disso, ele não denotava qualquer contrariedade e ia-se embora.

Correram assim os dias, e a chuva persistia, arregoando a terra, abatendo as barreiras e abrindo fendas nas terras por lavrar. Os caminhos estavam praticamente intransitáveis por causa das quebradas e das águas amarelas que redemoinhavam na inundação até se partirem em sucessivos desvios ao longo das ruas. Aos poucos, a Achadinha recolhia ao ovo original, fechando-se por dentro das casas para deixar que os aguaceiros cumprissem a profecia das águas bíblicas. Ao mesmo tempo, as odiosas febres da peste, com seus vómitos e agonias, seus delírios, cefaleias e náuseas, deixavam as pessoas biliosas e com a língua cor de enxofre, possesses de uma sede pecaminosa, sem urinar e com o corpo pejado de bubões. Morriam, às vezes, a meio de um gesto ou de um passo, quando se erguiam da cama; morriam de braços flectidos e pernas retesadas e pestanejavam convulsamente, como se tivessem recebido um dardo no coração. A morte tinha todas essas formas súbitas, feita de sede e de inesperadas sufocações, e a boca aflita das pessoas abria-se para dar passagem a uma língua que ardia como um fósforo aceso no lume das goelas.

João-Lázaro andava indiferente a tais tragédias familiares, sem ouvir os prantos, os lancinantes prantos das mães sobre o leito dos filhos, o choro amargurado dos homens sem mulher, o vagir das crianças e dos animais, ao passo que os ratos se devoravam uns aos outros e rebentavam por vezes a beber a água das chuvas. João-Lázaro não via sequer os funerais de quase todas as horas, debaixo de chuva, com o padre a abrigar-se sob uma espécie de pálio de bispo, e abstraía mesmo do significado daquelas caixas de criptoméria que iam sendo sobrepostas nos carros de bois. Tinham esquecido por completo os seus olhos azuis de prodigío e os antigos efeitos desse olhar sobre os cães, os touros e as pedras, assim como a inocência de uma tal mansidão, e por esse facto fora ele reassumindo progressivamente a condição de mendigo. Simplesmente, deixara de peregrinar em redor da Ilha, a fim de ser útil à desgraça e à morte. E de novo os garotos experimentaram atirar-lhe pedras e atiçar-lhe os cães, supondo que a chegada de João-Lázaro coincidira com o surto da peste e com a chuva dos noventa e nove dias sem cessar. Acabaram mesmo por tomá-lo por um idiota, porque jamais tinha sido possível vislumbrar nele qualquer indício de sabedoria. Peto contrário, tudo se conjugava para que o votassem ao desprezo, por admitirem que só uma pessoa de fraco tino enjeitava moedas de prata e guardava ciosamente o dinheiro preto.

João-Lázaro garantia, aliás, que era uma criança de tenra idade, dizendo-o por um gesto dos dígitos: quando um rapaz lhe perguntou quantos anos tinha, mostrou-lhe dois dedos e ficou assaz contrariado com o riso que esse seu gesto provocou nos presentes. E, ao inquirirem onde nascera e de onde viera, virou costas e afastou-se pela rua acima a murmurar coisas desabridas na sua estranha linguagem. Os rapazes ganharam logo alguma coragem e foram atrás dele. Começaram por dar-lhe um puxão de gadelha, depois rasgaram-lhe a jaqueta, e um deles mostrou-lhe um pénis erecto, fazendo menção de lho encravar no ânus. Foi então que a sua medonha ira fez uso do báculo de acácia e varejou em redor com uma energia satânica, capaz de esmagar a primeira cabeça. Os rapazes garantiram, depois, que o seu olhar crescera de forma inconcebível e que naqueles globos oculares se enrolavam serpentes de lingua bífida, pois o brilho desses olhos era de novo líquido de metal, exactamente como as cobras e a venenosa mordedura da saliva.

Um dia, alguém notou uma espantosa circunstância: a peste estava a desaparecer e, mais notável ainda, fora nas casas por onde João-Lázaro andara a prestar os seus serviços que ela deixara de apoquentar as pessoas e os animais. Os doentes acordavam de súbito do seu sono larvar, pois estando sem acordo na penumbra da morte, tão brancos e transparentes como a cera, logo se erguiam das camas e olhavam alvoroçadamente em volta, mal acreditando no que lhes sucedia. Por sua vez, as crianças de tenra idade, com os pesadíssimos cílios roxos, começavam por espreguiçar-se e logo procuravam o seio das mães, terminando assim um duelo mortal com a escuridão.

Quem começou por relacionar os factos e por os anotar nos seus canhenhos foi o curador Cadete, a quem a peste subtraíra já um numeroso rol de pacientes. O homem encetara uma tenaz maratona científica contra a morte. Tentara inventar um produto químico na base de múltiplas essências minero-vegetais, ora pela cozedura, ora peta xaropagem da destilação e, por fim, servira-se de um alambique para aclarar o produto das ervas cruzadas, resultado de numerosas e pacientes experiências de alquimia. Tudo porém resultara em vão. Se conseguia estancar as diarreias, não suprimia a febre nem hidratava os corpos; se eliminasse os febrões, então a diarreia esguichava e a sede tornava-se ainda mais devoradora -- e a morte era apenas incomodada no seu trânsito, mas não abolida do seio das famílias. Perdida a coragem, confessando a sua impotência, voltou-se para a consulta dos astros, esperando conseguir por via astrológica o que de outras formas não produzira ainda o mínimo efeito prático.

Uma noite, desistiu. Havia fenómenos neste mundo que eram da estrita competência de Deus, e não dos homens ou sequer dos astros. Tentou rezar, mas não soube. Se existia Deus, devia ser tanto para o bem como para o mal. Por isso, que se fodessem as rezas. Então não estava à vista de Deus que Ele devia actuar de imediato? Para quê então rezar? Aqui no mundo, entre os pequeninos deuses da Terra, inventara-se o socorro por uma questão de egoísmo, o que era proibido a Deus -- porque Deus era um ser alado que voava por cima de todos os objectos e obstáculos, podia muito bem dispensar-se de ouvir pedidos de socorro. Cadete julgou inútil a rigorosa inscrição da sua divisa e voltou-a contra a parede. Depois, aproveitando o mesmo impulso, voltou também ao contrário todas as outras inscrições, desde aquela que dizia O MAR É BRANCO até à outra, a formidável frase de Bárbaro, o peregrino: POIS O BRANCO NÃO É A MAIS ANTIGA COR DO MUNDO?, e assim sucessivamente, até o consultório ficar com um ar de quaresma, como quando se veda aos santos a observação do mundo.

Sentou-se então na cadeira dos seus momentos de desânimo e procurou adormecer. Mas vendo passar João-Lázaro de regresso à sua fossa animal, no extremo norte da freguesia, ergueu-se de repelão e lembrou-se de que era sábado, dia em que aquela alma costumava volitar à toa de casa em casa, pedindo as suas côdeas e os seus torresmos. Decidiu logo seguir-lhe os passos e, tomando o chapéu, veio andando atrás dele, sempre à distância. João-Lázaro não andava; era uma forma flutuante como uma ave atordoada à procura do ninho para dormir. Experimentou uma vaga fascinação pelo jeito miúdo daqueles passos e pelo modo como se elevava por vezes acima das paredes da rua.

Mentalmente, o curador Cadete reconstituiu todos os pormenores da passagem de João-Lázaro pela freguesia, desde o dia da chegada com o rancho dos romeiros até à noticía dos seus prodígios e mistérios pelos povoados em volta. Cadete encabeçara a iniciativa da sua expulsão, à frente de um grupo de arruaceiros, e pudera presenciar o estranho caso do magnetismo do seu olhar sobre os cães: era um olhar de ofídeos e batráquios, como o puderam testemunhar também os garotos e algumas mulheres supersticiosas. Nessa altura, o que deveras preocupara o curador Cadete fora a eventualidade de na sabedoria de João-Lázaro se disfarçar algum poder ainda oculto, capaz de disputar os doentes e os crentes à sua arte de expurgar doenças e malefícios. Tão célebre era já a notícia dos seus feitos na freguesia e na Ilha que se sabia ser exacto bastar a invocação do seu nome, o nome de Cadete, ou dirigir um olhar na direcção da sua casa, e logo certas doenças inferiores se apagavam com um sopro, deixando de constituir segredo ou motivo para preocupação. De sorte que, tendo soado um novo entusiasmo com a chegada daquele profeta da Bíblia, Cadete pusera-se em campo para o esconjurar: convenceu o padre a dar público testemunho do seu pacto com o Demónio e a excomungá-lo; arregimentou alguns dos mais fervorosos defensores dos bons costumes, imaginou novos defumadouros para embalsamar o seu espírito, pôs a correr as mais tendenciosas versões acerca da sua voz branca e proclamou a sua loucura.

A expulsão de João-Lázaro estava iminente, quando um novo surto de peste invadiu o Rozário. Então, novos e profundos trabalhos foram pedidos a Cadete para que descobrisse um remédio contra a epidemia. Fechou-se novamente no laboratório, disposto, dessa vez, a desafiar o próprio Deus, e colocou do lado de fora da porta uma tabuleta contendo uma severa inscrição:

Era uma lousa marcada a giz e suspensa por um barbante encodoado pelo sebo e tão sagrada como um hieróglifo, a qual os habituais frequentadores da sua consulta, doentes crónicos de muitas, repetidas e desusadas maleitas, respeitavam até ao pânico. Seis dias e seis noites enfrentou ele o cheiro do sulfúrio, das tinas e dos tubos de ensaio, com uma obstinação que lhe cavou grossas manchas à volta dos olhos. Era o desespero da agonia e da morte dos outros contra o desespero da peste, sabia-se. Mas o intenso inventário das suas origens e causas, os testes, as experiências terapêuticas, tudo isso se perdeu em nada, e o curador Cadete voltou a reconhecer, dessa vez em definitivo, a sua impotência. Só Deus, caso existisse e quisesse, poderia suprimir a epidemia, não os homens vulgares nem os sábios.

Cumpriu-se assim todo o ciclo da morte pela peste até ao dia em que João-Lázaro foi definitivamente aceite como um ser inofensivo, mais próximo dos animais e das crianças do que das pessoas adultas, e iniciou trabalhos e pequenos serviços de casa em casa, a troco de umas côdeas para a ceia. Aonde houvesse sofrimento, ele chegava, manhã clara ainda, e batia à porta, e uma energia eufórica, o nervo ossudo e os grandes pés sagrados, entregavam-se às miúdas tarefas de uma casa de gente, rachando lenha a vigorosos golpes de machado, agarrando numa forquilha para limpar chiqueiros, raspando atalhos enlameados, podando sebes de cana e de buxo. Começavam aí, sem que ninguém o suspeitasse, os seus prodígios.

O curador Cadete, seguindo-o à distância, nesse sábado ao anoitecer, fez um último esforço para entender a mais extraordinária coincidência de toda uma vida de sensações. Ele operava toda a sorte de prodígios pela ciência, porém estava muito para aquém daquele poder sobrenatural de curar a peste através do olhar. Nessa altura, jaziam ainda muitos enfermos nos quatro cantos da freguesia, mas era de todo evidente que a doença não só afrouxara o avanço como acabara por deixar em paz as crianças da Rua Direita e também os animais das suas casas.

"Ora," concluiu Cadete, "foi exactamente por essa rua que João-Lázaro dispendeu os dias a labutar de sol a sol, a troco de dinheiro preto, côdeas e torresmos."

Estava tudo descoberto e sem mais equívocos. Cadete sentiu de súbito a pobre carne do seu pergaminho mortal apanhada a meio de um arrepio, como se tivesse avistado o Diabo numa esquina, e deitou pela rua abaixo em passo de corrida, receando a perseguição dos seres sem rosto e sem olhos que habitualmente povoam a noite. A enorme boca da escuridão estava escancarada nas suas costas, excepto nos pontos que assinalavam os postigos das casas ou as portas das tabernas. Um misto de euforia e medo impulsionava aquele pesado corpo protuberante para a frente e sempre para frente, aos tropeções ao caminho, e baqueava nas valas e fazia eco no entroncamento das ruas. Esbaforido, suado e com os olhos redondos pelo terror de tantas deduções, enfiou pela casa de padre Governo e abateu sobre o primeiro assento o seu disforme corpo de elefante, a abanar o lenço e a enxugar o pescoço.

"Descobri tudo, santidade. Acabei de descobrir tudo, tudo..."

O ouvido do padre enrijara tanto como as cordas que incham na água ou como os grãos de milho numa sertã, e ele adquirira o hábito de falar muito alto, como quem tem absoluta necessidade de ouvir-se a si mesmo primeiro do que aos outros. As pessoas tinham sido, de resto, contagiadas por essa inusitada maneira de berrar e falavam, elas próprias, mais alto do que seria aconselhável.

"Ora, meu amigo, vamos lá. Descobriste o quê?"

Sobreveio-lhe um acesso de tosse de insecto, dessas que zunem por dentro das veias do pescoço e endurecem a língua, e o padre encheu-se repentinamente de irritação, sem paciência para ouvir mais boatos e intrigas acerca dos flagelos que fustigavam a vida da paróquia. E, aliás, não tinha por hábito receber qualquer pessoa àquela hora da noite. Sendo um espírito prático, não avezava com demoras e discursos supérfluos.

"O homem!" -- disse, por fim, Cadete. -- "Aquele homem tem artes de bruxo, ou de apóstolo, ou então de doutor da Igreja. Ele cura a peste."

"O homem? Mas qual homem? Que estás tu para aí cogitando?" -- bradou o padre do fundo da sua confusa surdez. E alvoroçou-se todo, empinando o espinhaço para fora do cabeção como uma tartaruga que acordasse da sua concha. -- "Isto é que está uma terra de veneno!"

Cadete abriu muito as mãos à sua frente, num acto de apaziguamento, e lá lhe foi expondo a base científica e os pormenores da sua teoria acerca de João-Lázaro. Podia ser uma reencarnação, sibilou. Ou uma alma errante encerrada na aparência de um andrajo humano. Mas, garantido, só isto: casa onde tivesse entrado João-Lázaro era casa liberta de peste. Senão, visse sua santidade... -- e enumerou com excessivo e vivo detalhe datas e factos relacionados com as andanças de João-Lázaro. Tão prolixo e completo foi nessas convicções que o corpo do padre inteiriçou de repente e entrou logo numa espécie de convulsão vulcânica. Erguia-se, sentava-se e de novo se erguia, e havia nas suas pernas uma força impulsora semelhante à das manivelas das máquinas de costura. O rosto dele ficou tão cinzento como o líquene dos bustos das praças públicas, e um frio de certeiras agulhas percorreu os lóbulos das suas orelhas, enormíssimas e arqueadas para a frente e sempre tão sôfregas de som e de entendimentto. O seu espírito prático fez então um apelo desesperado às forças carnais e exigiu-lhes acção. Num repente, as pernas e os braços, que pareciam assumir todos os pequenos actos como peças da maquinaria heróica da sua vida, entraram em fria sintonia com a lógica. A antiga energia, que o fizera restaurar a igreja, abrir o cemitério numa chã e inventar o cimento e as cruzes, empurrou-o para o seio grande da noite, em cujos olhos sem luz o padre tropeçou, coxo, velocíssimo, empurrado pela mão invisível de Deus, que o conduzia ao encontro de Lázaro e da sua furna decrépita e desabrigada. Ia tão absorto nos pensamentos que nem deu fé da multidão que o seguia já e passava palavra de porta em porta, como num alevante contra os corsários e invasores e pilha-tulhas que outrora ameaçavam a freguesia, pouco tempo após a sua fundação.

"Vai ali o nosso padre. Vamos lá, vamos lá."

Já então os rapazes haviam tomado a dianteira. Ouvia-se um chocalhar de vozes à toa e um marulhar de galochas na calçada, e vinham mulheres à janela que diziam:

"Credo em cruz, que mistério é este?"

Subindo a Rua do Caminho Fundo em direcção à Eira Velha, a multidão engrossara e, no meio dela, apareceram alguns archotes acesos. As velhas ruças e enrugadas de fadiga postavam-se atrás dos vidros e murmuravam rezas e exclamações que se não ouviam cá fora. Mas as crianças choravam, cães latiam com as fauces em alicate na direcção da Lua, e o alvoroço parecia uma coisa marítima que levava cavalos e ondas no seio, e naus e sensações de perigo e naufrágio, até ao momento em que alguém subiu à torre da igreja e se pôs a tocar os sinos da noite. Esta voltou a partir-se em muitos pedaços sonoros e sinais de fractura, como o vidro. Quando, por fim, chegaram ao abrigo de João-Lázaro, viram-no sair de um buraco vindo do centro da Terra, e o corpo, à luz dos archotes, apresentava-se pálido e rígido como o eixo das pedras. Dir-se-ia coberto de cobre ou de bronze. Pararam ao longe a admirar a majestosa barba ruiva, tecida de fios e novelos, os pés descalços, recurvos e calejados, com velhas unhas sagradas. Viram que a roupa se fizera em tiras e farrapos, e que as calças findavam a meio das pernas. Mas os cabelos mantinham-se tão espessos e longos que ninguém se apercebeu da meia nudez do corpo. Então, padre Governo fez um sinal à multidão, num gesto de gravidade semelhante à multiplicação dos peixes e do pão, acercou-se de João-Lázaro e teve a repentina sensação de se encontrar de frente com o próprio Messias no seu regresso à Terra para salvar os homens. Cruzaram-se no olhar e podiam talvez cair nos braços um do outro. Contudo, o padre proibira a si mesmo um gesto tão profano. Estendeu os braços e gritou do fundo do silêncio vigiado pelos fogaréus dos archotes:

"João-Lázaro, espírito do bem e da paz, sejas tu santo ou pecador, ordeno-te que nos sigas e pratiques a caridade para com os doentes e os moribundos desta terra!"

João-Lázaro estremeceu todo, num medo animal de bicho acossado e solitário. Pousou devagar os olhos nas casas da freguesia e depois no padre e nos que o seguiam, e os seus ombros tremeram como duas asas de águia a arrancar para um voo derradeiro. Sem se saber como ou por que motivo, desatou a soluçar. Chorando sempre, vestiu um burel de estamenha e caminhou à frente da multidão até à primeira rua da freguesia. Entrando então em todas as portas, foi prodigioso observar o modo como os seus olhos acordavam as crianças prostradas no sono da morte. As mulheres e os homens, ao contacto das suas mãos, recebiam em espírito uma ordem, a ordem que o Cristo dera outrora aos paralíticos, "Levanta-te e anda," e erguiam-se logo da cama. Sentindo-se curados, louvavam a Deus por lhes ter enviado o Seu Filho de novo ao mundo para os salvar. Assistindo a isto, as pessoas ficaram tão comovidas que não resistiram a murmurar entre si:

"É tudo um sonho, nada é verdade; nós mesmas ainda não nascemos, por isso também não existimos" -- e pediram umas às outras que se batessem e beliscassem para despertarem, e assim fizeram. Afinal, o milagre das curas prosseguia sempre e João-Lázaro continuava a tocar os corpos, e os corpos salvavam-se, e tanta alegria haviam entonces homes e molheres e seus filhos, e ainda seus amigos e seus animais, que non tiinham outra tençom que non foosse de se abraçarem e beijarem chorando, e todos bendizerem a seu Senhor Deus-Padre, per úa tam igual mercê nunca jamais vista nem admirada em algua parte deste escuro mundo.

Era madrugada quando deram por finda a visitação dos moribundos. Nessa altura, já poucos havia em redor do padre, de Cadete e de João-Lázaro, pois tinham-se espalhado para celebrar aquele segundo nascimento em ruidosa e prolongada euforia. Mataram cordeiros e cabras e ofereceram-nos em sacrifício, e beberam vinho e cachaça enquanto a noite foi noite. Assim, não viram nem suspeitaram que um frio branco de morrer se apoderou de súbito do corpo de João-Lázaro, enfebrecido e baço de suor, começando ele a desfigurar-se tão estranhamente como se toda a sua carne estivesse sendo devorada pelo fogo ou então atacada pela cal ou por algum ácido corrosivo. O rosto encheu-se depressa de uma enorme fadiga mortal. A boca vasou um vómito de torresmos e saliva, e a língua ficou tão amarela como o enxofre, ao passo que o corpo inchou e cobriu-se de caroços. E tudo isto tão repentino foi como o acto de chover ou o nascer do Sol, ou o relâmpago ou o ruir de um muro, porquanto, daí a alguns instantes, João-Lázaro caiu no chão e começou a agonizar, e Cadete estava grave e berrava ao ouvido muito mouco de sua santidade:

"Ele absorveu toda a peste da Ilha, padre Governo. Ele vai morrer. Ele vai morrer, padre santo."

E o seu grito de "peste! peste!" ecoou de novo, voando por cima das casas de Rozário. Chegou a todos os lugares vazios, partiu e regressou sozinho, porque já ninguém o póde ouvir. Estava toda a gente embriagada pelo vinho e pelo sangue dos cordeiros e das cabras que havia sacrificado a Deus. O próprio padre Governo, tendo-se benzido à pressa, achou azado o momento para fugir da peste e recomendou a Cadete igual procedimento. Antes de fugir, apertou o nariz com um lenço e benzeu o cadáver de João-Lázaro, dizendo:

"Pois bem-aventurado sejas tu, ó pobre, porque de ti será o Reino e não este mundo!" -- e correu aos tropeções até à igreja para ungir-se com os óleos santos e com a água benta e o sal do baptismo. Foi à garrafa do vinho sagrado e bebeu, bebeu longamente desse sangue purificado de Cristo. Depois, tranquilo e fatigado, pensou em ir dormir, certo de que já nenhuma epidemia poderia entrar no seu corpo aspergido pelo vinho dos sacramentos.

No outro dia, puseram o corpo de João-Lázaro numa caixa de madeira em forma de triângulo. Trouxeram um carro puxado por duas mulas e colocaram-lhe em cima o ataúde. Sepultaram-no num lugar repousado, a um canto do cemitério, entre dois renques de buxo e junto ao muro das lamentações. Oito dias depois, cresceram cabelos por cima da sepultura, e supõe-se que uma voz branca clamava inaudivelmente do fundo da terra, porque o seu corpo respirava ainda e a própria terra se elevava e descia, muito devagar, ao ritmo dessa respiração. Mas, se perguntassem de quem era o corpo ali sepultado, ninguém se lembraria do seu nome -- pois na verdade só eram de considerar duas hipóteses: ou tinham perdido por completo a memória dos seus actos, ou então era mesmo certo que João-Lázaro jamais existira.

ESTA É A EXTREMIDADE DA PARTE UMA
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Rev'd 2003/08/25