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Conversa com Mário Seabra



Dando sequência a essa série de entrevistas com os grandes autores de jogos do Brasil, tivemos oportunidade de passar uma tarde com Mário Seabra, em um restaurante nas redondezas de Atibaia. Participaram do encontro Luiz Dal Monte e nós três da Página dos Jogos de Tabuleiro (Sílvia Zatz, Sergio Halaban e André Zatz). A seguir trechos da conversa.

 

Jogar faz parte da vida

Nós: Nos surpreendemos em várias ocasiões ao perceber que a maioria das pessoas, quando joga, se diverte. Não joga com mais freqüência simplesmente porque perdeu o contato com o hábito de jogar a partir de uma certa idade. Mas assim que retoma esse contato, reencontra o antigo prazer.

Seabra: Na verdade, ninguém deixa de jogar. Às vezes a pessoa nem sabe que joga. A vida é um jogo. Você vê, em inglês jogar é play. Em francês jouer. A palavra para designar um ator que representa ou um músico que toca também é play, jouer. Qual o limite com o jogo? Um financista não joga? Você pode falar com um ator e ele pode dizer que não gosta de jogar. Mas a profissão dele é jogar. Ele joga todo dia, mesmo que não se dê conta disso.

 

Elo de Amadores de Jogos

Seabra: Eu era o presidente do clube e Dal Monte, na época com vinte e poucos anos, o vice. O clube era freqüentado por apreciadores dos mais variados tipos de jogos. E não apenas por jogadores. Muitos vinham mesmo sem gostar tanto de jogos, pela atividade social e cultural. Entre os freqüentadores estavam muitos formadores de opinião. Havia jornalistas, empresários do setor, muitos estrangeiros. Era uma vitrine e um ambiente para contatos. Muitos negócios se fechavam ali. O clube em si não dava lucro, nem era essa sua intenção. As mensalidades eram praticamente simbólicas.

Nós mantínhamos um restaurante no casarão onde o clube funcionava. Isso por termos percebido que o pessoal ficava lá jogando, e a uma certa altura saía para jantar. E não voltava mais. Então tive uma idéia. Trouxe o chefe de cozinha de um restaurante francês tradicional, o Freddy. Com isso, o clube passou a contar com um restaurante de nível internacional, com 150 pratos e com preços muito reduzidos, preço de custo e às vezes até menos. Afinal, não era esse o negócio. Esse era apenas um atrativo a mais.

 

Pesquisando esse universo

Seabra: Sempre pesquisei muito sobre jogos. Sempre gostei muito de ler, pesquisar e estudar. Ir a fundo nas coisas.

É interessante ver como os jogos evoluem no tempo. Muitas vezes refletindo características de uma sociedade, de uma época. O Chaturanga da Índia, por exemplo, foi para a Pérsia tornando-se o Shatrang; depois passou pelos países árabes até chegar à Europa e assumir a forma do Xadrez que conhecemos atualmente. O elefante se tornou o bispo, e um resquício da transformação pode ser visto até hoje. Um resquício para o qual não se poderia dar uma explicação sem saber dessa passagem. A rachadura que o bispo traz na origem eram rachaduras que representavam as orelhas do elefante. E é só na Europa que a mulher apareceu no jogo; o vizir foi substituído pela rainha, ou dama.

 

Processo de criação

Nós: Como é para você o processo de criação? Essa é uma questão que nos interessa. Às vezes criamos uma mecânica interessante e a revestimos de um tema. Outras vezes temos um bom tema e aí procuramos a mecânica. E muitas vezes, ao longo do processo de criação de um jogo, aparecem elementos que não servem para esse jogo mas vão servir para outro.

Seabra: É assim mesmo. Muito desse “lixo” que nós juntamos à medida que trabalhamos, se torna útil mais tarde. Às vezes temos uma idéia ou recebemos uma encomenda para a qual temos algo arquivado que se encaixa direitinho. É por isso que esse trabalho todo não é perdido. É o acúmulo de algo imprescindível.

Às vezes quando me procuram para desenvolver um produto, me perguntam quanto tempo leva para fazer um jogo. E eu digo que, sem querer ofender, leva mais ou menos de 20 minutos a 1 ano. E é verdade. Tem jogos que levam muito tempo. Outros estão prontos quando a pessoa que faz a encomenda ainda está explicando o que quer. Uma vez, enquanto almoçava, pensando numa encomenda que acabara de ouvir, comecei a olhar para a toalha quadriculada, o saleiro... e o jogo apareceu. Outro jogo, o Inglês Divertido, que eu fiz para a Toyster, surgiu a partir de uma toalha. A toalha já está velha e minha mulher pensou em jogar fora. Acho que eu vou dar para a Toyster.

Isso do tempo muito variável vale também para outros trabalhos de criação. Esse material e esse conhecimento acumulados ao longo de anos e décadas de trabalho têm um valor. É isso que permite às vezes resolver um problema num tempo tão curto

Quanto ao ponto de partida de um jogo, ele pode variar muito. Uma vez a Grow me procurou com a seguinte encomenda: tinham produzido uma grande quantidade de Mah-Jong que tinha ficado encalhada nos depósitos; como aproveitar aquelas réguas de suporte para cartas (usadas no Mah-Jong, pois 14 cartas é demais para segurar na mão)? Seabra criou o jogo Eleições, que aproveitava as réguas. Um jogo para até 5 pessoas, pois a forma pentagonal acomodava o número máximo de jogadores sem que um visse as cartas dos outros.

É curioso que algum tempo depois, o jogo foi pirateado na Argentina, com uma modificação: permitia 6 participantes. Uma dessas cópias que conseguem piorar o original.

Nós: E você já lançou algum jogo fora do Brasil?

Seabra: Não, nunca tentei. Mesmo assim, alguns jogos meus foram publicados na Argentina, pirateados. Mas o que se vai fazer? Nem compensa mover uma ação. Sai mais caro do que o que você pode ganhar. No começo, eu patenteava meus jogos. Mas se ainda fizesse isso, acho que eu ia estar pedindo esmola. Não compensa.

 

Fauna de criadores

Seabra: A profissão de criador de jogos pode parecer estranha. Muitas pessoas olham torto para nós. O engraçado é que entre os que se dizem criadores de jogos, há realmente uma fauna peculiar.

Entre os criadores que nós conhecemos, havia um médico, por exemplo, que usava um óculos com lente em uma vista e nada na outra. Não porque tinha quebrado e faltou tempo para consertar. Ele usou esse óculos por longo tempo. Disse que uma vez a mulher o obrigou a escolher entre ela e os jogos. Ele escolheu os jogos.

Outro criador, um argentino de aparência séria, que parecia inteligente e tinha até algumas boas idéias, após alguns copos de vinho disse que tinha uma confissão a fazer. Teria ele copiado os jogos? Não, nada disso. Confessou que era um extra-terrestre. No final da conversa, despediu-se de mim sugerindo que permanecessem em contato... por telepatia!

Muitos candidatos a criadores têm boas idéias, mas não conhecem o mercado nem sabem o que está envolvido no processo de produção, e acabam pensando em coisas totalmente inviáveis. Nesse ponto, minha experiência com as artes gráficas ajudou muito.

 

Qualidade dos componentes de um jogo

Seabra: Tão importante quanto o jogo em si é a qualidade de sua apresentação. Imagine que o inventor do Xadrez viesse com um protótipo em que as peças fossem pedaços rasgados de papel com os dizeres: rei, dama, bispo, etc. Teria tido sucesso? É difícil visualizar todo o potencial de um jogo sem ver e sentir seus componentes. Mesmo para quem está acostumado a jogar.

O prazer de jogar um jogo está muito ligado aos componentes, ao prazer dos sentidos.  O peso da peça, a distância do braço para mover uma peça, o peão com tamanho proporcional às casas. Alguns jogos perdem muito com isso.

 

Jogo de tabuleiro versus jogo eletrônico

Nós: Será que os jogos de tabuleiro e mesa perderão definitivamente seu espaço, sucumbindo à concorrência dos jogos eletrônicos?

Seabra: O jogo de computador não é esse catalisador de relações que é o jogo de tabuleiro, pretexto para o bom convívio. Além disso, boa parte dos jogos eletrônicos tem temas ruins e repetitivos e pouco do que poderíamos chamar de lúdico. Em muitos deles é só sair atirando, tic - tic - tic (representa com os gestos um jogador diante do videogame), uma coisa que se torna às vezes mais obsessão do que brincadeira.

Sempre haverá espaço para os jogos de tabuleiro e de mesa. São séculos de tradição. A mesma coisa foi dita quando surgiu o cinema. Será que o teatro acabaria? Mas não acaba. Tem algo no teatro que não tem no cinema, uma relação de energia entre atores e público. Cada um tem o seu espaço. A mesma história voltou quando apareceu a televisão. Seria o fim do cinema? Não foi. E por trás dos jogos de tabuleiro, de cartas, tem princípios muito sólidos. Isso faz com que tenham uma força grande.

 

A conversa estava tão boa que quando nos demos conta o restaurante estava vazio, já eram quase 5 horas da tarde e um garçom fazendo cara feia nos olhava com ar desesperado. Era hora de fechar. A contragosto nos levantamos para sair.

Esse foi o dia em que conhecemos Mário Seabra. Nos despedimos com a esperança de podermos nos reencontrar muitas outras vezes.



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