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Fernando
Pessoa está sentado à chuva na esplanada da Brasileira. Dentro do café
está o Almada. Ou esteve. Durante largo tempo habituei-me a vê-lo numa
parede em auto-retrato dos anos vinte, na companhia de duas senhoras sofisticadas
que pareciam estar à espera de qualquer coisa que havia de vir. Chuvas corridas, tristezas crescidas e venha aguardente
para lavar as feridas", dizem os lisboetas de taberna. No entanto, o Pessoa,
que sabe disso até de cor porque decilitrou em balcões de muita Lisboa,
continua na esplanada à chuva e ainda para mais sem copo. "Lá está ele, o pai de todos", dizia Sebastião Opus Night fazendo sinal para a estátua do poeta, sempre que passávamos no Chiado ao lusco-fusco. Não achava bem que o tivessem sentado cá fora para que os turistas viessem tirar a fotografiazinha em tu cá, tu lá com ele, mas antes sentado do que a cavalo como certos heróis de estátua porque, na opinião de Opus Night, o Pessoa devia ser de perna fraca. Em todo o caso era o autor da Mensagem e, como tal, pai de todos os desempregados que andam aos poemas por esse Tejo fora, dizia ele. "Sim, na cadeira de convidado do Pessoa só Antonio Tabucchi
é que estaria certo", murmurava eu invariavelmente e invariavelmente Opus
Night guardava silêncio. Para um enfastiado de Lisboa como ele, Tabucchi
devia ser um escritor maldito, se é que alguma vez o leu. À sua frente, no largo, tem um frade putanheiro que há para cima de três séculos fez versos jocosos e que agora chora diarreia de pombas pela cara abaixo, sentado num pedestal. Chiado, é dele que se trata. |
deixaram o Passeio Público de Garrett para subirem ao Grémio Literário. Chiado, um cenário, um ritual. De charuto a fumegar à porta da Havaneza, Ramalho Ortigão assistiu à passagem por aqui du tout Lisbonne do seu tempo. Snobérrimo como um gato de salão, era uma figura do Álbum de Glórias de Bordalo transposta ao vivo para as tardes urbaníssimas, mão enluvada, bengala fina e o Figaro a espreitar do bolso do fraque. Cumprimentava Teófilo Braga com subida consideração e talvez discutissem os dois alguns parágrafos de Proudhon, não me admirava nada. o Fialho de Almeida via-o em bom dia e passe bem, uma vez que a parada das letras com janotas de província como o Fialho ficava uma penúria de se olhar por cima da luneta, achava ele. Com o Eça encontrava-se muito, apesar de o Eça andar constantemente misturado com as personagens que descrevia. Logo abaixo da Havaneza, no Hotel Universal, tinha sempre um cavalheiro dos seus romances de passagem pela capital, e na Pastelaria Ferrari costumava reservar mesa para certos diálogos e certas cnas de capítulo para uso muito dele. Passear, passeava na companhia do Ega e do Carlos d'Os Maias em voltinhas compassadas pelo Loreto e pelo Largo de Camões, e para dar gosto à malícia ia até ao Conselheiro Acácio que ficava logo ali, na Rua Victor Cordon. À Luísa, tudo leva a crer, procurava-a no Jardim de São Pedro de Alcântara que era onde aquele coraçãozinho costumava fazer horas para cair nos braços do Primo Basílio, esse galdério. "Subir o Chiado". Quando nesse tempo alguém dizia isto era como se anunciasse um privilégio do século. Opera no São Carlos, ceias no Tavares Rico, o Grémio Literário com cavalheiros na varanda para o Tejo à espera dos paquetes da Mala Real e dos jornais da Inglaterra, senhores, tanto viver era realmente subir. Isso por um lado; por outro, porque o Chiado tinha ganho novas alturas e estava a ganhar muitas mais.
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Aquilo era só atravessar a rua e estava-se na Brasileira, mesa com mesa com os mestres das artes e os boémios culturais, para não falar já dos jornalistas que farejavam meio mundo com passagem pela Leitaria do Araújo onde Stuart de Carvalhais rascunhava caricaturas entre dois copos de tinto. Rua Garrett, o nervo do Chiado, como alguém disse. A Via dos Consagrados para lá dos anos e da morte: Aquilino Ribeiro, pesado de anos, à porta da Livraria Bertrand, lado a lado com um Columbano em estudante de pintor oitocentista, e no passeio em frente, junto à Sá da Costa, António Sérgio em conversa com um Antero quase menino. Mais abaixo Carlos de Oliveira, muito ao fundo dum café que já se esfumou na memória com o nome de Chiado: está só ou, antes, vislumbro-o a receber homenagens de Raul Brandão, nada mais natural. A uma esquina ponho um pintor em visita que tanto podia ser um expatriado dos anos vinte como da geração dos novíssimos de Paris ou da Slade School de Londres, e numa outra, desconfiados como gatos, Gaspar Simões e alguns críticos literários de várias épocas a espreitarem os poetas e romancistas em trânsito. Chiado, Rua Garrett, durante mais de um século o meridiano das artes e das letras portuguesas. Bailarinos do São Carlos, cantores da Academia dos Amadores de Música, ali perto. Jornalistas, poetas adiados, conspiradores. De quando em quando passavam damas ao vento e vendedeiras de violetas, faltaria alguma coisa num cenário de tanta vida? Faltava, faltava sempre. A cada notícia, a cada encontro, havia uma ideia a contestar para logo outra nascer. Realismos, futurismos, surrealismos e todas as muitas rimas que as artes iriam lançar passaram, umas atrás das outras, pelos retiros do Chiado. |
O MERIDIANO DAS TERTÚLIAS
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