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Conto Antônio Maragno Lacerda* |
Encontrei o Andarilho, pela primeira vez, no pátio que serve de poço de ventilação entre os edifícios de escritório. Estava sentado numa pilha de caixotes, e, desde então, habituei-me a levar-lhe, todos os dias, uma refeição. Enquanto ele come, sem pronunciar palavra, nossos olhares se cruzam e fico sempre sobressaltado ao ver que os olhos brilham alegremente como se estivesse guardando uma alma muito jovem. Mas, ele é velho. Sinto pena de seu traje esfarrapado, quase sempre úmido, os profundos vincos que descem pela fronte até o pescoço, o maxilar desmesuradamente inchado e salpicado de minúsculas crateras. Os pêlos loiros que lhe crescem pelo rosto, seu desordenado cabelo, o queixo forte e o semblante vermelho dão-lhe uma aparência estrangeira - possivelmente holandesa. Numa destas manhãs, um homem amarrado foi trazido, e o oficial remeteu-o imediatamente para a delegacia. Era o Andarilho que fora capturado. Todos pareciam saber que haviam centenas de razões para que fosse condenado, mas, na apresentação das provas, soube-se que era acusado de estar carregando uma grande quantia em dinheiro. Ele obstinou-se em afirmar que o dinheiro fora ganho honestamente. Ninguém acreditou, mas, à falta de provas, só puderam encarcerá-lo por vadiagem. Essa reclusão durou uma semana, durante a qual ele ficou na ignorância absoluta do destino que lhe era reservado. Na tarde do sexto dia de cárcere, foi solto, e tonto de alegria, voltou correndo para o poço dos edifícios. À noite reunia em torno de si os caixotes e trambolhos em forma de barricada e, tendo no silêncio seu vigia, quedava-se meio sonolento como se estivesse à espera de alguma cilada. - Um dia, apareceu pelas redondezas, outro andarilho. Vestia um blusão de couro, e carregava sempre, debaixo do braço uma pasta larga de papelão. Era um homem grande, forte: um desses tipos rudes e cabeludos que produzem a sensação de serem indomáveis e perversos. Dizia-se um desenhista moderno e todas suas forças e tempo eram dedicados ao abstracionismo. Por este motivo, deixara de trabalhar e pusera-se a viver de expedientes. Estava sempre a ponto de sufocar de sujeira e mau cheiro, mas, sendo forte e saudável não se importava com isto. Parecia preferir ser sufocado a dar-se ao trabalho de tomar um banho. O fato é que nunca desenhava, e os desenhos que trazia debaixo do braço, eram velhos, ensebados e esmaecidos. Estava sempre à procura de modelos abstratos. É impossível dizer como ele fez amizade com o Andarilho. Foram amigos até o dia que o Desenhista se inteirou da pequena fortuna do outro. Planejou rouba-lo, mas na noite que se levantou, empunhando uma faca, o Andarilho desferiu-lhe um soco formidável. Em seguida, apoderando-se de um saco vazio enfiou-o na cabeça do Desenhista, amarrou-o, pulou a cerca e desapareceu. Os habitantes da redondeza nunca mais viram qualquer dos dois. Fazia dez dias que estava em Paris. A suave brisa, os exercícios, e o sol haviam me restabelecido completamente das noites de malandragem, e já principiava a achar aquela vida muito monótona, quando um fato imprevisto aconteceu: encontrei o Andarilho. Sim, o Andarilho, aqui em Paris. Achei-o sentado na porta de um hotel de terceira classe. Ao passar por ele fui reconhecido. Parei e o convidei a tomar uma bebida. Estava com a esperança de saber algo sobre ele, pois me sentia terrivelmente curioso... Depois do quarto copo ele me contou que veio da Romênia muito jovem. A princípio perambulou sem emprego e sem dinheiro, mas logo arrumou um lugar de aprendiz de sapateiro. Mais tarde montou oficina própria e exerceu profissão. Os anos passaram, e aos poucos, cansado de bater solas todos os dias, habituou-se a pensar na terra natal. Em seu coração medrou o desejo de voltar à Romênia. Era sozinho. Economizou avaramente. Um dia percebeu que havia envelhecido e não podia mais trabalhar. Saiu pelas ruas, esmolando. Continuou guardando dinheiro até averiguar que tinha o suficiente para a viagem e para viver em paz na sua aldeia. Veio a Paris para embarcar. Ele contou sua vida, sem pressa, pois não precisava mais esmolar. Depois ficamos longo tempo em silêncio, e, como nada mais tínhamos a dizer, partiu. Meses depois encontrei o Andarilho numa rua movimentada. Nada nele havia mudado, mas estendia a mão aos passantes, e isto me surpreendeu. Acerquei-me dele, e indaguei porque não havia partido. Oh! Aquele olhar morto. O brilho juvenil de seus olhos tinha desaparecido. Todas as forças de sua vitalidade, até as mais fortes, desapareceram. Sua voz era cava, e olhou-me demoradamente sem me reconhecer. Contou o que lhe sucedeu com dificuldade, como tentando lembrar-se de algo muito remoto: "Uma noite, quando passeava pelo cais, foi derrubado, por um homem alto, forte, que vestia uma jaqueta plástica. Recebeu violenta pancada na cabeça e desmaiou. Antes mesmo de despertar por completo, percebeu que fora roubado. Nem se deu ao trabalho de procurar o bolso." Enfiei-lhe uma nota qualquer na mão, e por um beco misterioso vi desaparecer o homem que não tinha o vigor do corpo, e que conservou durante muito tempo, a juventude que o malandro roubou. Nunca mais o encontrei, mas li nos jornais que ele tem ido à delegacia em busca de notícias referentes à captura do larápio. Os investigadores andam procurando o homem da jaqueta plástica. Jamais o encontrarão. Tive o cuidado de enterrá-la num lugar que ninguém descobrirá. Paris - Abril 1.968 |
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