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Corpo e Risco


    Este artigo visa articular a experiência subjetiva de cuidado do corpo com a sociedade. A análise do cuidado é estratégica. Viabiliza historicizar a experiência ao situar o corpo como nó de múltiplos investimentos e inquietações sociais. Inversamente, a descrição de uma mudança no cuidado permite estipular características decisivas da sociedade contemporânea. No deslocamento das inquietações e investimentos, na gênese de nossa forma de cuidado de si, emerge a produção de subjetividade  contemporânea.
    O lugar de quem descreve é restrito no tempo. Vários de nós experimentaram nos anos recentes uma imensa mudança de valores. Estamos deixando de ser o que somos. Cabe então comparar a sociedade contemporânea com a sociedade moderna para estimar este deslocamento de nós mesmos. Afinal, pensar a mudança no cuidado é descrever a mudança no que precisa ser cuidado, no modo de cuidar e no que se espera ser ao cuidar-se de si; em suma, descrever uma mudança em nós mesmos.
    Esta descrição precisa ainda selecionar o que torna possível a diferença histórica. Propõe-se aqui dois vetores de mudança as novas tecnologias e a mudança no capitalismo e uma fator de ajuste entre estes dois vetores, que seriam as relações de poder e que nos remetem à produção de subjetividade.

As novas tecnologias biomédicas e de comunicação configuram um primeiro vetor de mudança na experiência que temos de nossos corpos. As tecnologias biomédicas porque suscitam a transferência da questão ética que durante milênios orientou a relação dos seres humanos com o seu corpo. Até há pouco, o corpo, visto como marca da finitude e lugar do desejo, trazia a experiência da necessidade: sua forma, suas obstinações e sua duração não dependiam de nossa ação, ao contrário, a determinavam. Restava a nós escolher entre recusar ou aceitar o corpo.

O cristianismo, para nossa memória de homens do final do século XX, resume a atitude de recusa: cabia ao homem descobrir-se como mais do que seu corpo, descobrir-se como alma que deve lutar contra os desejos para escapar da morte e conquistar a eternidade bem-aventurada. A psicanálise exemplifica a recomendação de aceitar o corpo, pois articula o imperioso do desejo à injunção de se conceber como mortal.

Hoje, porém, o corpo começa a habitar o campo de nossa liberdade (1); podemos transformá-lo em sua forma e em sua capacidade de perseverar no ser. Pensemos, a partir do que já está sendo posto em prática, nos desdobramentos possíveis da engenharia genética, da imunologia, da cirurgia plástica e das próteses e nos espantaremos em o quanto o corpo passa a depender de nossa ação tecnologicamente potencializada.

Um modo de apreender a transição na questão ética é a aparição do transexual. Antes, na experiência da 'homossexualidade', o que estava em jogo era o questionamento daquilo que se acreditava dever ser - o questionamento da pressão identitária da sociedade - para que o indivíduo enfim 'assumisse' o seu desejo. No caso do transexual, o problema torna-se o de transformar o corpo para que ele esteja adequado à identidade. Ao invés de descobrir a verdade de seu desejo e questionar a identidade, o transexual se propõe a transformar o seu corpo para adequá-lo ao seu ser. O extremo desta prática de transformar o corpo segundo um desejo sexual se deu com o caso, amplamente noticiado pelos mídia, de uma mulher que lutou na justiça para tornar-se homem. Precisou lutar porque queria um corpo masculino não por gostar de mulheres - e, neste caso, segundo o costumeiro moralismo médico, a operação seria justificada: aliviaria um sofrimento - mas, para continuar tendo relações sexuais com homens, como homem. Do corpo que abria a questão do ser ao pensamento, passamos à questão de que corpo o pensamento pode produzir: como adequá-lo à identidade e mantê-lo belo e saudável? Quanto à duração, embora continue sendo questionável se há realmente algum poder individual em adiar o advento da morte, basta lembrar que a expectativa média de vida da população praticamente dobrou nos últimos 100 anos.

Já as novas tecnologias de comunicação afetam a experiência do corpo ao promover a mediação generalizada. A materialidade do corpo e da experiência sensorial é constitutiva da definição do imediato da experiência, do aqui e agora. Sabe-se que as tecnologias de comunicação são modos de mediar uma tal experiência: a escrita, ao substituir o oral, torna presente alguém que pode nem sequer estar vivo; a secretária eletrônica torna desnecessário que duas pessoas estejam presentes em simultâneo para haver comunicação, a televisão e a Internet tornam próximo o que está longínquo no espaço, etc. Acontece que, hoje, é tamanha a mediação tecnológica das relações dos homens com o mundo, dos homens entre si e de cada um consigo mesmo que tornou-se concebível pensar que nunca houve experiência imediata; ao contrário, existem apenas diferentes experiências da presença segundo as diferentes mediações tecnológicas viáveis em cada momento histórico.

Apreende-se o modo como as novas tecnologias de comunicação podem estar transformando a experiência de corpo: o sentido da presença, a definição do próximo e do longínquo no espaço e no tempo, a distinção entre real e imaginário - todas estas fronteiras interdependentes estão sendo postas em questão pelas novas tecnologias, especialmente a Internet e a realidade virtual. Ao investirem no modo como o corpo apreende o mundo para tornar a simulação tão presente quanto o simulado e ao permitirem que o próximo e o simultâneo se estruturem segundo a conexão, a velocidade e a prótese, estas tecnologias modificam o que é o mundo e o que é estar corporalmente no mundo.

O surgimento do estranho termo 'tempo real' ilustra a transformação da experiência promovida pelas novas tecnologias de comunicação (2). O desenvolvimento das técnicas de registro do som permitiu que as gravações da voz e dos instrumentos que compõem uma música pudessem ser feitas separadamente, em diferentes momentos. Desde então, tornou-se necessário acrescentar o adjetivo 'real' ao conceito de 'tempo' para designar o tempo fenomenológico do aqui e agora - trata-se de uma gravação onde todos estão simultaneamente reunidos. A marca do "ao mesmo tempo que" foi posteriormente trabalhada até passar a designar o tempo onde alguma ação é possível. O que nos interessa aqui é como a mediação tecnológica, concretamente, vai 'acrescentando' novos ritmos além do 'imediato' historicamente anterior; na realidade, não se trata de uma adição, mas do surgimento de um novo imediato. Nossa experiência de tempo foi sendo composta por outros ritmos e, neste sentido, modificada.

Pode-se resumir o sentido das transformações na experiência de corpo provocada por este primeiro vetor. As tecnologias biomédicas pesquisam e propõem aos indivíduos que há mecanismos tecnológicos para se regrar a forma do corpo, reduzir a distância entre o que quer o pensamento e o que quer o corpo - moderadores de apetite, óleos sem colesterol ou caloria, drogas para controlar a impotência sexual, a insônia, a angústia, a depressão, etc. - e estender, para o indivíduo, a duração do pensamento na matéria. De um ponto de vista, as tecnologias da comunicação também propiciam uma certa independência do pensamento em relação à materialidade do corpo na medida em que fazem do imediato - definido pelo nexo entre a extensão perceptiva e motora do corpo com o entorno espacial - apenas mais um modo de os homens interagirem entre si e com o mundo. Descrevendo positivamente, isto é, não abrindo espaço a uma interpretação que insiste em ver na mudança a troca da experiência real por uma ilusória, pode-se dizer que nossas interações perceptivas e motoras com o meio estão cada vez mais, e ainda uma vez, sendo mediadas por tecnologias cognitivas e comunicacionais, de modo a que hoje sejamos obrigados a modificar nossa concepção do que é corpo, espaço e tempo.

O segundo vetor de transformação da experiência de corpo é a nova articulação entre este e o mercado. Durante o capitalismo de produção, o corpo entrava no mercado como força de trabalho: tratava-se de, ao comprá-la, encontrar meios de usar ao máximo esta sua capacidade de produzir. Pesquisava-se o corpo como força a ser domada e preservada. Já o nosso mundo caracteriza-se por um capitalismo da super produção, onde o que faz problema é consumir o que se produz em excesso comparativamente à necessidade. Desde então, o corpo entra no mercado como capacidade de consumir e ser consumido.

O corpo é consumido como imagem bela que permite vender e como partes que se pode vender para que outros tenham sua capacidade de perseverar no ser acrescida. Faz-se referência aqui à importância social do corpo jovem e belo e aos fenômenos, tornados possíveis pelas tecnologias biomédicas, de aluguel e venda de órgãos. E capacidade de consumir por que, em primeiro lugar, o consumo passa a ser pensado como atividade que provoca prazer e não como o que é ditado pela necessidade; ao menos para a maior parte da população dos países ricos e para as camadas médias e altas dos países desenvolvidos, não se consome mercadorias porque, por exemplo, se está com fome ou por precisar se vestir. Um exemplo curioso deste modo de experimentar o consumo é a aparição dos 'endividados anônimos' ou da doença conhecida como 'credit card addiction'. Descreve-se, nesta síndrome, o comportamento de pessoas que não conseguem deixar de consumir mesmo quando não tem mais recursos. A novidade está em considerar estes comportamentos como a resultante de uma adição, do mesmo nível que a toxicomania e o alcoolismo. Consumir é um prazer tal que algumas pessoas caem na armadilha repetitiva do excesso.

Este corpo que consome não é mais investido como força; ao contrário, o que se pesquisa é o corpo como máquina de prazer e dor, como o que deve ser investido nas sensações que provoca no pensamento, tanto para permitir uma ação sobre sua capacidade de consumir, quanto para evitar os seus desvarios. Existe hoje, nas literaturas médica e psicológica, um grande número de modelos que procuram estipular seja a relação entre emoção e doença, seja a relação entre emoção e simulação de futuros: que relações existem entre depressão e fragilidade imunológica?; e entre depressão e câncer? que relação há entre dor e futuro simulado?; a inteligência não seria, antes de tudo, emocional? (3). Ao invés de supor que estas pesquisas estão, enfim, descobrindo a verdade do homem, o interessante seria encontrar suas condições de possibilidade no novo modo de inserir o corpo no mercado. Ao invés de pensar o acontecimento através do conceito de progresso, a estratégia analítica apreende o surgimento de novas inquietações sociais. Mais do que pensar os limites e a domesticação da força, trata-se, hoje, de pesquisar a relação entre emoção e ação.

Uma segunda característica é decisiva no investimento social na capacidade de consumir do corpo: o que se vende é a possibilidade de se permanecer vivo e belo. Não se pode esquecer que a indústria que mais cresceu nos últimos 30 anos é a farmacêutica, vendendo juventude, bem estar e beleza. O corpo consome principalmente a si mesmo.

Os dois vetores  (novas tecnologias e transformação do capitalismo) de mudança na  experiência de corpo não apontam obrigatoriamente para a mesma direção. O primeiro, ao transformar as questões éticas que nos colocamos para nos constituirmos como sujeitos, pode ser a ocasião de inúmeras experimentações: reinventar relações sexuais, reinventar a forma do corpo, a experiência da identidade, do tempo e do espaço, o sentido de comunidade, etc. O segundo, porém, diante do desdobrar de possibilidades do vetor tecnológico, requer restrições, pois seu problema é que o corpo consuma o suficiente durante muito tempo. É preciso um terceiro fator que faça o ajuste entre as possibilidades tecnológicas e a padronização de comportamentos exigida pelo capitalismo de superprodução. Aparece aqui a transformação nas relações de poder, transformação que pode ser descrita como a passagem da norma ao risco. Um breve excurso sobre o modo como podemos pensar as relações entre indivíduo, poder e sociedade será esclarecedor.


INÍCIO SEGUNDA PARTE CONCLUSÃO

NOTAS

(1) Sobre esta passagem da necessidade à liberdade, cf. Serres, M., Eclaircissements, Paris: François Bourin, 1992, e Bruno, F., Do sexual ao virtual, São Paulo: Unimarco, 1997.

(2)  Sobre este exemplo, cf. Poster, M., The second media age, Cambridge: Polity Press, 1995.

(3)  Um exemplo é Damásio, A, O erro de Descartes, São Paulo: Companhia das letras, 1996.