Corpo e Risco |
O conceito de risco é nômade, pois orienta múltiplas práticas e recebe conteúdos diversos segundo os diferentes campos de saber que suscita, como a ciência política, a economia, a medicina, o direito, a engenharia e a ecologia. Em sua face positiva, este conceito supõe que tenhamos roubado o futuro das mãos dos deuses, remetendo-nos ao planejamento e à possibilidade de aventurar-se cientificamente, isto é, com segurança e controle no uso de tecnologias bastante complexas (12). Se não fossem calculadas as margens de segurança para válvulas, por exemplo, não poderíamos construir foguetes para ir à lua. Sua outra face, porém, é a advertência constante sobre as conseqüências de nossos atos.
Quando se pensa uma substituição, estão sendo propostas relações de continuidade e descontinuidade. O risco provém de uma longa história; sempre poderemos traçar suas conexões com os conceitos de pecado e norma e reafirmar a pertinência de nossa cultura à cultura judaico-cristã. Nestes conceitos, está em jogo um modo de regrar o prazer. O recuo pode ser maior; encontraremos então sua continuidade com a cultura grega, na medida em que esta instalou o projeto ocidental de fundar a ação na verdade. Como os conceito de meio termo e norma, também o risco pretende conectar fato e valor, ser ao mesmo tempo verdade e lei. Sua ambição seria substituir a atividade de valoração pelo cálculo do futuro.
Ao mesmo tempo, podemos, com o conceito de risco, constituir a singularidade de nossa cultura. Nas estratégias que o presente tem de se pensar historicamente, a designação de rupturas é decisiva. Através da emergência do risco, podemos apreender a invasão do cotidiano pela ciência e pela tecnologia, a articulação nova entre mídia e ciência e a mídia legitimando-se por ocupar o lugar daquele que na sociedade adverte da existência dos riscos e propõe os meios de contorná-los. Não experimentamos apenas a estetização do cotidiano; experimentamos ainda a cientificização de nossas vidas e mortes. Uma pesquisa mostra que 40% das chamadas de primeira página em jornais americanos dizem respeito à gestão do cotidiano tendo em vista os hábitos de vida e os riscos que se corre (13).
A cientificização do cotidiano através da divulgação midiática dos riscos é um dos modos de se promover o ajuste entre o vetor tecnológico e o vetor econômico. O corpo, virtualizado na forma de pesquisas sobre riscos associados a predisposições genéticas e hábitos de vida, é um bem a ser administrado - os médicos costumam usar o conceito de capital saúde. Relação gerencial entre pensamento e corpo que se dá como cuidado subjetivo de evitar o advento de doenças dado o que se possui ou se contraiu de riscos. Este cuidado deve operar nas práticas de prazer de cada indivíduo. Ao mesmo tempo, o corpo é um bem a ser explorado pelos indivíduos na sua capacidade de provocar sensações. Nosso dever, asseguram as diversas peças publicitárias, é ser feliz e a felicidade requer o consumo. Surgem, ao mesmo tempo, os bancos de dados sobre fatores de risco e sobre hábitos de consumo. As pesquisas sobre decisão tanto estudam o modo de escolher quanto os perigos existentes no nexo entre decisão e prazer. Em suma, a investigação científica do corpo opera na tensão entre o que pode estimular o consumo e o que pode limitá-lo, não de uma vez por todas, mas para que se continue a consumir; estrategicamente, trata-se de encontrar, dinamicamente e às cegas, um nível ótimo de consumo evitando a sua ausência por incapacidade ou satisfação - limiar inferior - e o excesso que impede sua continuidade, seja pelo endividamento excessivo, seja pela despreocupação com o risco - limiar superior.
A passagem de um corpo trabalhado socialmente como força a um corpo questionado e proposto na tensão entre o risco e o prazer pode ser apreendida no surgimento histórico de práticas esportivas. A sociedade disciplinar resgatou os esportes olímpicos; afinal, pensava-se o corpo como energia e fonte de movimento: mais alto, mais rápido e mais longe. Desde a década de 50, começam a surgir novos esportes. Em alguns, o decisivo é entrar em uma onda, em um movimento prévio, e ali experimentar prazeres com o máximo de duração - surfe, wind-surf. Em outros, está em jogo um risco controlado e o prazer que se experimenta em ser capaz de arriscar e de se controlar diante do risco - retorno do alpinismo, quedas com elástico.
A mídia tem uma função decisiva na nova forma de o poder ser exercido. Através da publicidade, dos bancos de dados e da moda, tenta constituir um consumo para além da necessidade, assegurando sua continuidade tão preciosa quando há superprodução. Por outro lado, quando se trata de limitar o excessivo para garantir a duração, o exercício do poder como uma ação sobre a ação possível dos outros é uma informação sobre o futuro, ou melhor, trata-se de realizar uma descrição valorativa do presente e informar, diante do descrito, o que pode ser o futuro. Este jogo, válido para a política e a ética, procura estabelecer quando e o quanto se deve arriscar.
A condição epistemológica deste procedimento do poder é a função da previsão em seres com consciência. À diferença da previsão de comportamento de sistemas materiais, as informações sobre o comportamento futuro de um sistema dotado de consciência afeta, por poder ser internalizado, o funcionamento previsto, ou ainda, o futuro simulado é condição do que será o futuro, de tal modo que uma simulação, quando é estratégia de indução de comportamentos, precisa simular o efeito da simulação sobre o comportamento do sistema simulado (14). A condição ontológica é que o futuro cada vez mais depende da ação humana; esta, por sua vez, depende da expectativa que formamos sobre o que pode ser o futuro; a expectativa, por fim, depende das informações sobre o futuro. O decisivo neste jogo estratégico é a capacidade de construir cenários considerando como uma informação sobre o futuro irá condicionar o modo de os outros simularem o futuro e, assim tomarem decisões: antecipar o modo como o outro antecipa e condicionar, através das informações, suas antecipações.
No modo de lidar com o indivíduo, a passagem da disciplina ao controle implicou o movimento de objetivação do perigo através do conceito de fator de risco. Na sociedade disciplinar, o perigo era ou subjetivado pela singularidade e força do desejo que habitava um indivíduo - preocupação com a delinqüência, a loucura e a perversão sexual - ou atribuído a condições sociais, especialmente a miséria e o que dela derivaria. Daí as estratégias de poder que a caracterizavam: corrigir pela reclusão e medidas de higiene e moralização das classes perigosas. Já na sociedade de controle a objetivação do perigo permite sua subjetivação como informação sobre riscos vinculados à práticas. Nos debates sobre bioética, por exemplo, postula-se que só se deve informar um indivíduo sobre seus riscos genéticos se esta informação permite uma ação sobre o informado: só é aceitável divulgar o risco acrescido de contrair câncer de mama, por exemplo, se for possível uma mudança de hábitos que evite ou adie o seu advento.
Quando se pensa a decisão
individual, o que faz problema é o peso que o indivíduo atribui
a esta informação quando está diante da oportunidade
de uma ação prazerosa. Uma campanha televisiva sobre a AIDS
resume a relação entre mídia, consciência, informação
e prazer. Um casal está num quarto entregue a jogos amorosos; a
televisão está ligada e nela é veiculada uma campanha
sobre a AIDS onde o locutor adverte dos riscos e recomenda o uso de preservativos.
Um dos amantes desliga a televisão; miraculosamente, contudo, ela
volta a funcionar e o casal continua a escutar a recomendação.
O milagre se repete até que o casal, enfim, para que o ato comece,
busca o preservativo. Experiência de cada indivíduo na sociedade
contemporânea; uma consciência premida entre a pressão
do prazeroso e a informação sobre o risco que é veiculada
pela mídia, a solução sendo que o prazer comporte
o risco e, assim, se comporte.
A informação sobre
o futuro produz um modo curioso de naturalização dos valores
do presente. A sociedade moderna foi perpassada por um sonho utópico;
propunha-se valores no futuro que estivessem em oposição
aos valores do presente: o futuro era o novo, a alteridade purificadora.
Mesmo a norma propunha a utopia da cura. Na sociedade contemporânea,
onde a simulação é decisiva, a naturalização
de valores não ocorre pela mera introdução do adjetivo
verdade em proposições que tratam do sujeito. A antecipação
do futuro é modo hoje de produzir um conflito entre valores do presente;
deste modo, a solução é sempre um compromisso entre
estes valores e nunca um questionamento dos valores como tal (15).
A discussão sobre os efeitos da superpopulação serve de exemplo. Há, inicialmente, dois valores: o direito à reprodução ilimitada da parte dos indivíduos e o direito a que todos tenham um mínimo para se alimentar. A seguir, faz-se uma previsão de qual seria o estado futuro do mundo se, todo o conjunto de variáveis permanecendo constante - aumento de produtividade, taxa de inovação tecnológica, etc. - mantivermos o direito à reprodução ilimitada. O resultado é a superpopulação que torna inviável o direito à alimentação. A solução é necessariamente a proposição de um compromisso entre os valores do presente, compromisso capaz de evitar a conseqüência negativa. A antecipação reforça a estabilidade dos próprios valores, pois é a simulação dos efeitos negativos da permanência inalterada de um valor, permanência que se torna conflituosa com outros. Não saímos do círculo dos valores do presente, pois a antecipação, ao propor o compromisso, os eterniza.
Eis aí o lugar central ocupado pelo conceito de risco na sociedade contemporânea. A informação sobre o que o futuro pode ser é modo de obter um futuro que se deseja; a simulação é modo de delimitar aquilo que os homens podem fazer, pois informar sobre os riscos é dizer aquilo que pode e deve ser feito; por fim, antecipar o futuro para propor compromissos é modo de estabilizar os valores do presente na medida em que não são confrontados com um mundo onde valores totalmente outros pudessem vigorar. Trata-se sempre de preservar o mundo e os indivíduos e não de transformá-los.
Esta mudança na ética é também uma mudança no modo como se pensa a ação dos indivíduos. Inicialmente, como um jogo entre a conseqüência de uma escolha e o prazer que podemos extrair desta escolha. Deste modo, podemos dizer que a hesitação não se dá entre dois objetos de desejo, de tal modo que aí apareça a hesitação e se conecte as escolhas à identidade do sujeito, como ocorria nas problematizações do sujeito na Modernidade. A hesitação, quando ela aparece, é aquela entre fazer e não fazer algo, entre o prazer e o risco futuro, entre a emoção imediata derivada de uma ação e o futuro simulado. Na realidade, a hesitação não pode ser positivada, pois trata-se sempre de uma decisão sob pressão temporal: há pouco tempo para agir, muita coisa está em jogo - entre praticar o ato sexual ou não, entre comer ou não uma feijoada, pode se estar decidindo a vida inteira - a informação é insuficiente e de difícil aplicação (16). Ao mesmo tempo que se propõe ao indivíduo o direito, e mesmo o dever, de ser feliz por consumir, alerta-se para as conseqüências de um vínculo excessivo com as práticas que lhe proporcionam prazer. Na realidade, o jogo é entre o vício e o risco: o quão a perda de controle na relação com o que nos dá prazer pode implicar de descuido em relação ao futuro.
Como se trata da capacidade de se arriscar e de se controlar, os objetivos da ação são preservar-se e dispor, no futuro, de uma vasta gama de opções. No presente, decide-se sobre o lugar de decisão no futuro. O negativo é que, graças a uma decisão tomada no presente, o indivíduo se depare, no futuro, com uma gama de escolhas por demais limitadas, que sua margem de manobra se estreite (17). Se sou um piloto de avião, o importante é dispor de informações para evitar zonas de turbulência onde se restringiu minha margem de manobra e estou ameaçado de não levar a viagem ao seu termo; se quero emagrecer e sou por demais afeito a doces, devo evitar festas; etc. A moral do controle é a lógica do controle remoto. Mais uma vez, o risco se articula com o capitalismo de superprodução: o desejável é sempre dispor de uma oferta ampla de opções prazerosas.
Resta agora descrever como se dá a constituição e a perpetuação da dívida entre indivíduo e sociedade. É preciso notar, primeiro, que o lugar de aplicação da dívida é o prazer vinculado a atos, os quais podem sempre ser pensados como consumo. Dito de outro modo, a dívida se constitui no e pelo consumo, pois o dever hoje é ser feliz e a felicidade é proposta como bem-estar propiciado pelo consumo; o importante é conquistar a capacidade de consumir e, após a conquista, ser sábio no consumo, pois este necessariamente endivida e estamos o tempo todo ameaçados de sermos expulso deste mundo mágico.
Se o futuro na forma do risco é o que orienta nossas escolhas, o incerto deriva da própria ação humana. Sua forma é a relação entre um prazer momentâneo e o que, na sua efetivação, pode ameaçar a continuidade do prazer. Neste caso, o sacrifício não têm o sentido do esforço para se conformar à normalidade e se tornar um bom cidadão. Objetiva, sim, manter-se em vida consumindo. Compromisso entre a lógica instantânea do hedonismo e a continuidade do consumo, pois a única recompensa de uma renúncia ao prazer é a sua renovação. Explica-se a insistência social na eficiência, autocontrole e juventude prolongada; todo indivíduo, se é eficiente e controlado, tem o direito a ter prazer durante muito tempo.
O interessante neste modo de constituir a dívida é uma diferença de temporalidade entre os que acessaram o mundo do consumo e aqueles que não o conseguiram ou estão ameaçados de expulsão. Estes não conseguem aceitar o diferido implícito na proposta de multiplicar o prazer - sua duração e seus modos - por restringi-lo no presente; limitam suas opções, nada sacrificam e a tudo arriscam. Explorarão ao máximo as potencialidades de prazer do seu corpo, serão ineficientes, aceitarão um horizonte de vida extremamente limitado e procurarão estratégias velozes de ganhar dinheiro mesmo que ao preço da violência. Surgem os 'meninos de rua', os traficantes, os viciados, seres que tentam ser velozes e que se caracterizam pela precocidade das experiências, pelo risco no modo de conseguir dinheiro e de aproveitar a vida (18).
A perpetuação da dívida se dá através da constituição de uma moratória ilimitada, forma de dívida onde não se tem a ilusão de pagá-la, mas apenas a de adiar a sua cobrança (19). Dívida impagável, pois diz respeito à capacidade de se manter em vida consumindo, o que institui, como cobrança, a expulsão do consumo pelo desemprego ou morte. Um exemplo seria o conceito de portador. O que se porta é uma virtualidade de adoecer e, por isso mesmo, por portar, não se pode, mas deve; neste esforço, o que se consegue é apenas evitar, por um tempo indeterminado, a atualização da doença.
Generalizando, a dívida é impagável por que vivemos em uma sociedade sem exterioridade. As antigas instituições disciplinares começam a se abrir e eliminam o que seria a sua alteridade, mesmo que esta fosse uma outra instituição disciplinar. Trata-se de um duplo movimento; de um lado, elas tendem a se confundir por interpenetração; de outro, cria-se um espaço homogêneo e aberto, sem limite visível. Subjetivamente, a experiência é a de nunca poder terminar nada. A sociedade disciplinar separava tempo de formação e tempo adulto, criando a infância, a escola e a fábrica. Hoje, porém, postula-se a necessidade de cada vez mais cedo as crianças irem para a escola; existem pesquisas que chegam ao desvario de propor um aprendizado uterino. Por outro lado, multiplicam-se os discursos e as práticas que propõem aproximar a escola da empresa e fazer da empresa uma escola. Surge a formação permanente, onde nunca se pode parar de estudar senão corre-se o risco do desemprego. O mesmo vale para a separação entre saúde e doença. O conceito de portador cria um estado durável de quase doença, não necessariamente manifestado como mal-estar e que implica a permanência do cuidado. A dietética pode ser vista como o fim da separação entre alimentação de hospital e alimentação cotidiana; a um tempo, generaliza a comida de hospital e estabelece um compromisso com o prazer: como alimentar-se com prazer cuidando da saúde e da forma do corpo. Estes movimentos são encontrados em diversos lugares; ocorrem na conjunção entre crise dos hospícios e surgimento dos neurolépticos, ocorrem na crise da aposentadoria e o direito de, na velhice, aproveitar a vida: pede-se agora que os Estados distribuam gratuitamente remédios contra a impotência. Em todos eles, o resultado é a sensação subjetiva de nunca terminar nada: nunca cessaremos de aprender, trabalhar e cuidar do corpo.
A moratória ilimitada constrói
um modelo neoliberal de subjetividade.
Articulando bem-estar e consumo,
propõe como finalidade da vida consumir sem se consumir. É
também um modo de padronizar comportamentos quando não existem
mais limites exteriores à sociedade capitalista. Advertir dos riscos,
valorizar a eficiência e o autocontrole, tudo isso é modo
de, no próprio ato de consumir multiplamente solicitado, encontrar
e definir limites ao que se pode fazer. A moratória ilimitada gera,
por fim, uma nova inquietação do indivíduo com o seu
lugar. Não se trata mais da perturbação experimentada
quando se está entre a normalidade e um desejo singular. A dívida
não diz mais respeito à identidade. A dificuldade do indivíduo
hoje é a de se situar entre a sensação de uma imensa
impotência - somos constituídos e atravessados por riscos,
ameaçados de dependência, insignificantes diante das mudanças
aceleradas provocadas pelas tecnologias no mundo do trabalho e encontramos
dificuldades para estabelecermos alianças uns com os outros visando
mudanças sociais - e a solicitação social de que sejamos
responsáveis por nossa vida e morte. Impotência e responsabilidade
que bem se articulam com a crise das instituições estatais
anteriormente responsáveis pela educação, trabalho
e saúde.
PRIMEIRA PARTE | SEGUNDA PARTE | INÍCIO |
(12) Cf Bernstein, R., Contra os deuses – a notável história do risco, São Paulo: Objetiva, 1997.
(13) Cf Laudan, L., The book of risks, Nova Iorque: John Wiley & Sons, 1994.
(14) Cf Amsterdamski, S., “Previsão e Possibilidade” in Enciclopédia Einaudi, vol. 33 – Explicação, Lisboa: Imprensa Nacional, 1996.
(15) Cf Amsterdamski, S., op. cit.
(16) Este modo de pensar a decisão está presente em diversos textos de teoria da administração. Cf, por exemplo, Klein, G., Sources of power – How people make decisions, Cambridge: MIT Press, 1998 e van der Heijden, K., .Scenarios – the art of strategic conversation, Nova Iorque: John Wiley & Sons, 1996.
(17) Cf Dennett, D., Elbow room, Cambridge: MIT Press, 1984.
(18) Trata-se do tema do individualismo negativo. Cf Castel, R., As metamorfoses da questão social, Petrópolis: Vozes, 1998.
(19) Cf Deleuze, G., op. cit.