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Corpo e Risco

Em uma primeira definição, elaborada como procedimento e relação entre indivíduos, o poder é uma ação sobre a ação possível do outro visando produzir uma resposta desejada ou, ao menos, delimitar o leque de respostas possíveis de modo a evitar o imprevisível (4). Poder, nesta definição, é jogo estratégico de antecipação do comportamento. O cuidado, aqui, é o de não se deixar levar por uma compreensão paranóica do jogo estratégico. Não há um grande outro, seja ele o capitalismo, o Estado ou a CIA, que está nos manipulando. Uma tal compreensão origina-se na definição tradicional do poder como repressor que supõe uma relação de exterioridade entre o indivíduo e a sociedade.

Para o pensamento moderno, esta exterioridade autorizava pensar que o poder agia por reprimir a realização histórica de uma essência humana, operando assim no interior de uma história finalizada e da separação entre sujeito de fato  e sujeito de direito, entre o sujeito que é condicionado historicamente e aquele que, por princípio, é capaz de sair do condicionamento ao descobrir sua verdade e propor a sua realização no tempo. Quando se deixa de acreditar no fim da história, quando começamos a pensar que a história não tem fim em todos os sentidos do termo, precisamos pensar o poder como produção de subjetividade. Neste caso, seu alvo não é o sujeito verdadeiro, mas o processo de constituição do sujeito. Ao invés de funcionar como adiamento por ser repressão e ideologia, o poder é interferência contínua no processo de subjetivação, processo que pode ser descrito, quando se trata de uma sociedade que se pensa historicamente, como a problematização da pertinência cultural de crenças e valores. Neste processo, para se constituir em sua autonomia, o indivíduo apreende a pertinência cultural dos seus modos de pensar e agir e se propõe, com a ajuda de outros, a inventar o mundo e a si mesmo. Processo constituído pela colocação incessante de uma questão: em que medida a vida pode ser mais do que aquela que nos é proposta por nossa cultura? Questão resultante da conexão entre o questionamento de si e a atração pela vida, por mais vida (5).

Quando se analisa práticas de poder, o problema se torna o de saber o modo como se dá a interferência no processo de subjetivação. Eis algumas indicações provisórias sobre este funcionamento. Como é preciso haver uma interferência contínua, pode-se pensar que o condicionamento cultural de crenças e valores se dá pela constituição de uma dívida infinita no interior do indivíduo quando este pensa o seu ser e se propõe a transformá-lo. Infinita porque é impossível de ser paga e, assim, conduz o indivíduo, na problematização que faz de si mesmo, a continuamente pensar no que deve ser e fazer, mas não no que pode.

Como se trata da interferência num processo de problematização, a relação de poder pode ser caracterizada também como a produção de uma economia cognitiva, no duplo sentido do termo economia: tanto propicia a ordenação de si, quanto simplifica o questionamento. Trata-se de uma estratégia onde o indivíduo pensa a sua singularização a partir das crenças e valores geradas pela sua sociedade. Concretamente, trata-se, primeiro, de naturalizar estas crenças e valores, propor que nossa cultura enfim descobriu a verdade do homem e do mundo, reduzindo assim o que pode haver de inquietante no fato de que os homens já pensaram e agiram diferentemente e que, portanto, não há necessidade no modo como pensamos e agimos. Um outro procedimento de simplificação é propor um sentido para a vida, evitando que se coloque em sua radicalidade a questão do que nos pode ser a vida. Nestes dois procedimentos, o que faz problema é a ambigüidade do cuidado. Certamente que se constituir como sujeito requer a constituição de si como objeto de cuidado; inversamente, cada cultura irá designar o que precisa ser cuidado a partir de um jogo de ameaça com o descuido e, simultaneamente, irá dispor alguns indivíduos da capacidade de cuidar em verdade dos outros. Promete-se o bálsamo na condição de criar a ferida e dar legitimidade a alguns que nos conduzirão pelo reto caminho (6).

Por último, o processo de subjetivação supõe a capacidade de o indivíduo não apenas mudar a si mesmo, mas também a sociedade em que vive. O poder também interfere neste processo se consegue suscitar no indivíduo um sentimento de impotência diante das transformações sociais que estão ocorrendo ou não ocorrendo. Trata-se da necessidade como estratégia. Na Modernidade, a impotência tinha o contorno da modificação social almejada que não ocorre. Em nosso mundo, a impotência está articulada à velocidade das transformações sociais. Independentes do nosso desejo, só restaria a nossa conformação. Deparamo-nos com os discursos sobre o inevitável da globalização, sobre a plasticidade como dever diante da ameaça do desemprego, ou com aqueles que restringem a política ao sentimento de solidariedade - em todos eles, recomenda-se aceitar o que é.

Essa descrição abstrata do poder como interferência torna-se concreta ao situar as diferenças históricas na sua implementação. O modo de o poder funcionar em nossa sociedade ganha relevo na comparação com a sociedade moderna, descrita por Foucault como sociedade disciplinar (7). As técnicas disciplinares estavam conectadas ao capitalismo de produção; deviam permitir a separação entre a força e o produto de seu trabalho, seja por tornar aceitável a exploração, seja por permitir o uso potencializado da força. Tratava-se de produzir um corpo dócil, eficaz economicamente e submisso politicamente.

Tal objetivo requer, primeiro, a produção de uma experiência singular de tempo e espaço. As instituições disciplinares são sobretudo instituições fechadas, no interior das quais cada corpo deve ocupar um lugar determinado que define o seu ser: espaços fechados, quadriculados e hierarquizados que evitam o nomadismo e os contatos fortuitos e incertos entre os corpos. Um exemplo banal são as escolas onde se distribuíam os alunos segundo as notas que obtinham: o lugar revela o ser ao mesmo tempo em que se localizam as zonas problemáticas onde costumam ocorrer trocas horizontais.

Estas instituições se caracterizam por uma ambição pedagógica: corrigem para formar. Estacas para paus tortos, serializam o tempo e o ordenam por provas, fazendo da transição entre as séries um aperfeiçoamento. Inserindo uma temporalidade de progresso no transitório e sazonal, as instituições disciplinares geram a cisão fundamental entre tempo de formação e tempo adulto, entre a aquisição de uma competência e o seu exercício. Vocação pedagógica que não se restringe às escolas; também opera nas famílias, fábricas, hospitais, sanatórios e prisões. De modo abstrato, a operação temporal das instituições disciplinares é a duração e a descontinuidade (8): sempre é preciso tempo para se tornar um bom cidadão saudável e trabalhador.

As técnicas de poder da disciplina são modos de produzir a culpa. Para se culpabilizar, um indivíduo precisa olhar para si mesmo, para seus atos e pensamentos, com os olhos de um outro, cindindo-se entre o que deseja e o que deve ser. São técnicas, portanto, de interiorização do olhar e do juízo. Nas instituições disciplinares, para haver formação, é preciso que haja cuidado. Existirão nelas sempre figuras, que mesclam nas suas funções a autoridade e o saber -  pais, professores, médicos, psiquiatras, assistentes sociais, carcereiros, etc. - que zelarão pelo aprendizado. A condição do exercício deste zelo é a vigilância. Submeter os atos cotidianos dos indivíduos a este campo hierárquico de visibilidade é trabalhar para que cada um passe a se ver com os olhos do outro. A visibilidade dos atos é modo de agir sobre o invisível, pois cada indivíduo se inquietará com o que acontece no seu íntimo e que os outros não têm acesso. Não basta, porém, interiorizar a vigilância; é preciso ainda que cada um se julgue e deseje se julgar segundo os valores sociais vigentes. Para propiciar esta interiorização dos valores sociais é que surge a sanção normalizadora.

A norma é uma lei imanente; é uma regularidade observada e um regulamento proposto. Por exemplo, numa escola, observava-se o tempo regular - aquele dado pela média dos alunos - de aprendizado de uma tarefa; esta regularidade torna-se, na seqüência, uma regra: aqueles que se retardam, são reprovados. O juízo incide sobre o valor dos indivíduos e sua aplicação produz obrigatoriamente aqueles que escapam à regra. A função primeira da sanção normalizadora é trazer à existência, produzir positivamente no real, a negatividade ética personificada, pois deste modo consegue agir sobre o desejo. Cada indivíduo experimenta uma inquietação com a normalidade do que faz e pensa, ao mesmo tempo em que se esforça por pertencer aos normais, por adequar-se à regularidade. Genericamente, o exercício do poder na Modernidade supõe a separação dos homens entre si, sua distribuição entre normais e anormais, distribuição que produz no interior de cada indivíduo uma cisão e um esforço de se conformar aos valores sociais, tensão culpabilizadora que provoca a homogeneização dos comportamentos.

Apreende-se o funcionamento do poder disciplinar: atenção às diferenças visíveis de comportamento, hierarquização destas diferenças segundo a polaridade entre normal e anormal, atribuição de identidade aos indivíduos segundo o desejo que os conecta aos desvios de comportamento, experiência da culpa pela inquietação com a normalidade de seus atos e desejos. Trata-se da tríplice operação da norma (9). Primeiro, procura delimitar o poder da ação dos indivíduos sobre eles mesmos. A norma substitui o conceito de natureza humana, usual no século XVIII. Quando se fala que um certo comportamento é inerente à natureza humana, indicamos que nada podemos em relação à sua efetuação no mundo. Quando denominamos um comportamento de anormal, acreditamos que podemos mudar e nos obrigamos a transformá-lo. Delimitação do que depende de nós que sustenta a vigência da própria norma. Transformar o normal em anormal é corrigir e aperfeiçoar, mas é, sobretudo, não questionar os valores do presente, não mudar por supor um sentido de progresso à mudança. Segundo, a norma é um modo de reunir fato e valor, de conectar o ser ao dever-ser: o que é deve ser, pois a única mudança é a recomposição da norma. Trata-se de naturalizar os valores do presente por torná-los verdade, por apresentá-los como descoberta do que o homem verdadeiramente é. Terceiro, por ser culpabilização, a norma implica um mecanismo de feedback: sua existência a reforça ao produzir o temor do anormal.

Para se compreender a perpetuação da dívida, é preciso atentar para a existência de uma multiplicidade de instituições disciplinares, todas funcionando segundo os princípios de correção e integração e tendo como modelo analógico a prisão. Crianças, alunos, trabalhadores, doentes e loucos pareciam-se com prisioneiros; inversamente, todo prisioneiro era tido como filho, aluno, trabalhador, doente e louco. Cada instituição, portanto, propunha um trajeto para o indivíduo, trajeto marcado pelo esforço de se constituir na normalidade. Como experiência individual, a perpetuação da dívida se dava pela quitação aparente: um tempo de adiamento e recomeço (10).  Durante o período de formação, o indivíduo, vigiado e inquieto com seu ser, não pode ainda. Adia e se sacrifica para poder; contudo, o término da formação em uma instituição é simultaneamente a entrada em uma outra. A ascese, no que comporta de sacrifício e adiamento, acaba por restabelecer a dívida ao ser esforço de se normalizar e trânsito entre instituições: formas diferentes, mas sucessivas, de se pensar que não se pode, mas deve. Não se paga a dívida; muda-se o credor. O sonho de uma sociedade disciplinar é não permitir vácuos entre as instituições, é fazer com que a vida se esgote nos espaços fechados pedagógicos: "você ainda é uma criança e não um adulto; você ainda é um estudante e não um profissional; você ainda é um trabalhador e não um aposentado; você ainda precisa criar seus filhos; você está doente; você está louco; você é um prisioneiro; você está no asilo"; morre-se, enfim.

A sociedade disciplinar teve seu ápice no início do séc. XX. Desde meados deste século, porém, ela entra em crise, crise que nos anos 90 se completa. Mudaram as técnicas de poder, mudou o sentido da vida que nossa cultura nos propõe, mudou o sujeito. Por estarmos no seu início, por ainda assistirmos a instalação de uma nova forma social, é difícil precisar seus contornos. A exposição só pode ser comparativa e estratégica; apreender o fim da forma disciplinar pela relativa pacificação no que antes, nos comportamentos humanos, inquietava e o aparecimento de novos objetos de preocupação social. Nas doenças sexuais, por exemplo. A disciplina inquietava-se com a forma dos atos e vinculava a identidade dos indivíduos às predileções por certos desvios: pensava-se, por exemplo, que praticar o ato sexual com alguém do mesmo sexo era causa e efeito de perturbações psíquicas. Este argumento valia para tudo o que a ciência sexual decretava como não sendo canônico, normal. Hoje, contudo, cada vez mais são toleradas socialmente as diferenças na forma do ato; na realidade, o 'desvario sexual' em suas diversas formas aparece positivamente na indústria cultural. Em contrapartida, surgiu uma nova doença do sexo:  a dependência sexual. Com critérios que fazem de todos os adolescentes viciados, para a sua existência, não importa a forma do ato, mas a relação que se estabelece com o prazer: seríamos capazes de autocontrole em relação ao que nos proporciona prazer? E levaríamos em conta a possibilidade de contrair AIDS?

A mudança pode ser apreendida na transição do que merece ser pesquisado pela estatística. O sucesso da estatística no século XIX deveu-se à descoberta de que havia regularidade no desvio de comportamento: também ali, onde impera a vontade desregrada, aparecia o regular (11). Estudava-se a regularidade do suicídio e de suas formas segundo cada sociedade, a freqüência de divórcios, de crimes, etc. Como se viu, a existência da norma era modo de reforçá-la; fazia-se existir a regularidade - o casamento -  e o desvio - a existência de divorciados ou celibatários empedernidos, seres cuja sexualidade era passível de suspeição. Visava-se assim suscitar o desejo de se casar. O que nossa mídia agora divulga são estatísticas vinculando, por exemplo, a solidão e doenças cardíacas, retardo da maternidade e maior incidência do câncer de mama. Claro que as pessoas não decidirão se casar pelo risco acrescido de doenças; contudo, problematizarão sua solidão também a partir das doenças que pode comportar. O que inquieta não é mais o jogo entre a diferença visível e a identidade dos indivíduos; é, sim, o jogo entre um hábito e sua conseqüência, entre prazer e futuro.


PRIMEIRO PARTE INÍCIO CONCLUSÃO

NOTAS

(4) Esta definição de poder é proposta por Foucault. Cf Foucault, M., “The subject and power” in Dreyfus, H. e Rabinow, P., Michel Foucault – Beyond Structuralism and Hermeneutics, Chicago: The University of Chicago Press, 1983, 2a ed.

(5) Sobre esta mescla de atração e questionamento, cf. Foucault, M., “La pensée du dehors” in Critique, no 229, 1966.

(6) Trata-se aqui do tema do poder pastoral proposto por Nietzsche e retomado por Foucault. Cf Nietzsche, F., A genealogia da moral, São Paulo: Brasiliense, 1987 e Foucault, M., op. cit.

(7) Cf Foucault, M., Vigiar e Punir, Petrópolis: Vozes, 1983, 2a ed.

(8) Cf Deleuze, G., “Post-scriptum sur les sociétés de côntrole”, in Pourparlers, Paris: Minuit, 1990.

(9) Cf Hacking, I., The taming of chance, Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

(10) Cf Deleuze, G., op. cit.

(11) Cf Hacking, I, op. cit.