Site hosted by Angelfire.com: Build your free website today!

Globalização e 
Experiência de Tempo


Pensar a globalização não implica apenas deter-se sobre o novo ritmo do capital financeiro ou sobre o jogo entre identidades locais e globais. É preciso também ater-se à nova experiência de tempo, onde o possível é gerado pela tecnologia e possui uma força intrínseca de realização, um dinamismo acelerado. Nesta nova experiência, o decisivo é, primeiro, um estranho feedback entre presente e futuro, onde a conseqüência antecipada torna-se condição da ação, e, segundo, a experiência subjetiva deste possível exterior ao desejo, acelerado e dinâmico, experiência desta evolução tecnológica que não é integradora, apresentando-se aos indivíduos na simultaneidade paradoxal de oportunidade e dever. Procura-se então esboçar as condições de possibilidades destes discursos atuais que tanto ressaltam a oportunidade de reinvenção da democracia e da experiência subjetiva, quanto estipulam uma série de ameaças para os indivíduos e a sociedade.

Embora para muitos historiar seja uma prática moderna, apresentar uma história sintética da discussão da crise do pensamento moderno permite esclarecer o que hoje faz questão. O início do questionamento é certamente a crise da utopia. Se a utopia é o universal no futuro, sua crise abre duas estratégias opostas: ou bem construir um conceito de verdade desvinculado de uma filosofia da consciência, ou repensar a relação que o sujeito pode estabelecer com o tempo. Ou a manutenção de uma ética da objetividade, ou a oportunidade de uma ética da diferença.

Habermas e Lyotard podem figurar como exemplos da oposição tornada possível pela crise. O primeiro formula o conceito de pragmática universal, postulando o consenso  como horizonte último e obrigatório de toda e qualquer discussão humana. Esta redefinição da verdade - situando-a no diálogo e sendo um horizonte transcendental - permite a Habermas manter do pensamento moderno tanto a superação da alienação, quanto a suposição de que a passagem do tempo é orientada e auspiciosa. O problema estaria no modo com que os pensadores modernos definiam a verdade e não em suas esperanças (1).

A segunda estratégia consiste em questionar a utopia como forma de o sujeito habitar o tempo. Desvela-se na tensão entre presente e futuro, entre a opacidade a si e aos outros que reina no presente e a transparência do futuro, um desejo de controlar o acaso e o efêmero. Trata-se, na estratégia adotada por Lyotard, de pôr em questão a própria esperança moderna e, neste caso, a crise do universal torna-se a oportunidade de um novo modo de o homem viver o tempo. Ao invés da verdade do sujeito no tempo, trata-se de pensar uma relação verdadeira entre sujeito e tempo (2).  A esperança de realizar-se origina-se no desejo de controlar o que acontece e, neste caso, limita o que o futuro pode ser. Lyotard nos propõe um exemplo do que costumamos denominar de ética da diferença, aquela que sustenta a abertura do sujeito à diferença, seja em relação a si mesmo, aos outros e ao tempo. Diversas são as conexões possíveis, mas todos os pensadores postulam uma relação entre a abertura ao inconsciente, à multiplicidade cultural e ao acaso.

Pode-se dizer que esta primeira discussão sobre o pós-moderno ainda estava por demais presa ao pensamento moderno. Talvez ela seja a reencenação de uma oposição entre pensadores utópicos e trágicos que já operava desde o final do século XIX, oposição perceptível na alternativa de interpretação da famosa fórmula de Freud: "lá onde está o isso, lá devo chegar?" (3)  Tratar-se-ia de tomada de consciência ou de abertura ao inconsciente? De uma realização no tempo ou de uma abertura ao acaso? O que está em jogo é o sentido a dar à alienação e, neste caso, Marx e Nietzsche podem servir como figuras emblemáticas das duas estratégias, um postulando a utopia e o outro, crítico de toda e qualquer utopia, na medida em que esta supõe uma condenação do sofrimento inerente à vida, ao tempo.

Esta pertinência a uma problemática moderna pode ser percebida pela detecção de uma ausência. Embora questione as filosofias da história, o primeiro debate sobre a crise da Modernidade deixa intocada a separação entre natureza e cultura, justamente aquela que permitia atribuir um sentido à história, aquela que permitia conceber a passagem do tempo como sendo a luta de uma essência humana, constituída neste instante originário, por realizar-se no tempo. Sintoma desta ausência é a insistência em questionar o lugar da cultura ocidental no presente. Via-se na utopia o perigo da pretensão ocidental de habitar o universal: tem uma cultura o direito de falar em nome de toda e qualquer cultura? A contrapartida desta ênfase na diversidade cultural é a irrelevância de se pensar o que a ciência e a técnica inventadas pelo Ocidente estavam realizando no presente. A segunda etapa da crise da Modernidade foi aquele onde o foco não estava apenas no fim das utopias, mas também no espanto diante do poder tecnológico. Descobre-se então que a separação entre natureza e cultura é correlata ao surgimento da separação entre ciência e sociedade.

Bruno Latour, em Jamais fomos Modernos, conceitua esta inesperada conexão entre a tecnologia como questão da atualidade e a separação entre política e ciência. (4) Sua atenção se dirige a um fato do cotidiano: a proliferação inesperada dos híbridos em nossos jornais. Inumeráveis discursos reúnem em uma mesma prédica a política, a ciência e a natureza. Argumentam e discutem 'objetos', como o buraco na camada de ozônio, a vaca louca e a ovelha clonada, que não sabemos definir com precisão se são naturais ou culturais. Nós, que acreditávamos ser modernos, que acreditávamos ter separado natureza e cultura, ter uma verdade sobre a natureza e um projeto de emancipação puramente humano, que obsessivamente trabalhávamos para delimitar as fronteiras entre o natural e o cultural e entre o mito e a razão, se dermos atenção a estes discursos, nos perceberemos tão totêmicos quanto as sociedades pré-modernas, já desde sempre hibridados com a natureza para constituirmos sociedade. E o que parece nos diferenciar das sociedades ditas 'primitivas' é nossa hybris em nos hibridarmos. A ciência moderna, com seu método experimental, é a prática inventada pelos humanos que ativamente inclui os não-humanos na história humana.

Latour coloca o ano de 1989 como decisivo no processo de nos livrarmos da auto-ilusão de que uma sociedade 'avançada', moderna,  se constitui por separação frente à natureza. (5) Neste ano, assistimos a dois acontecimentos simétricos: a queda do muro de Berlim e uma conferência sobre o estado global do planeta, mostrando a impossibilidade de manutenção das esperanças de conquista ilimitada e dominação total da natureza.

O trabalho de Latour indica a simultaneidade entre o poder tecnológico, a crise da separação entre natureza e cultura e a mudança no modo como se pensa a ciência. A prática científica deixa de ser discutida em termos da capacidade do Ocidente de aceder ao verdadeiro e torna-se uma outra forma que nós, estranhos primatas, inventamos para estabelecer relações com os outros seres vivos. Dito de um modo mais conceitual, a ciência é um modo de incluir os não-humanos como agentes ativos na história humana. Ironicamente, esta deflação de significado não acontece porque saberíamos hoje que a ciência não é verdadeira ou que ela seja equivalente a mitos ou à ficção; ao contrário, ocorre justamente quando nos espantamos com o seu poder. E este espanto impede que o futuro seja definido no presente. O futuro é, no mínimo, duplo; desde então, não se pode pensar qual é o projeto de realização que se teria constituído na separação entre natureza e cultura. Não há mais história com sentido, pois nosso passado não explica mais o que será; há, apenas, explicações de por que o que hoje existe pôde chegar a ser, mas esta menor pretensão explicativa é acompanhada de uma imensa abertura do futuro.

A crise do sentido completa-se. Além da perda de crença na utopia, o futuro abre-se também como catástrofe e os seres humanos são cada vez mais obrigados a se pensar na continuidade com os outros seres vivos. Este acabamento, por sua vez, torna cada vez menos sustentável a alternativa da ética da diferença. O problema se deslocou; não é preservar a abertura do futuro, mas de haver projetos dado o que já está aberto. Na realidade, existe a oportunidade, e a necessidade, de se repensar a distância da Atualidade em relação à Modernidade seja no modo como os intelectuais se situam em relação ao seu presente, seja no modo como apresentam a experiência subjetiva de tempo.


INÍCIO SEGUNDA PARTE CONCLUSÃO

NOTAS

(1)  Cf, por exemplo, J. Habermas, Dialética e Hermenêutica, Porto Alegre: L&PM, 1987.

(2)  J.-F. Lyotard, Le Differénd, Paris: Minuit, 1989.

(3)  S. Freud, “Novas conferências introdutórias”, in Obras Completas,  XXII, Rio de Janeiro: Imago, 1987, p. 102.

(4)  B. Latour, Jamais fomos modernos, Rio de Janeiro: 34 Letras, 1994.

(5)  Idem, p. 13.